Quem é o pai?

Do filho presumido

Para a Biologia, pai sempre foi unicamente quem, por meio de uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho. O Direito, ao gerar presunções de paternidade e maternidade, afasta-se do fato natural da procriação para referendar o que hoje se poderia chamar de “posse de estado de filho” ou “filiação socioafetiva”. Assim, a desbiologização da paternidade, ainda que pareça ser um tema atual, já era consagrada há muito tempo, aliás, desde a época dos romanos, pelo aforismo pater est is quem nuptiae demonstrant.

O Código Civil considera concebido na constância do matrimônio o filho nascido pelo menos 180 dias após o casamento de um homem e uma mulher ou 300 dias após sua dissolução (art. 338[1]). Essa presunção busca prestigiar a família, ou, conforme Zeno Veloso, preservar a paz das famílias”,[2] único reduto em que era aceita a procriação. Desvincula-se o legislador da verdade biológica e gera uma paternidade jurídica baseada exclusivamente no fato de alguém haver nascido no seio de uma família constituída pelos sagrados laços do matrimônio. A ciência jurídica conforma-se com a paternidade calcada na moral familiar.[3] Como afirma Taisa Maria Macena Lima, verdade e ficção se confundem no vínculo jurídico paterno-filial.[4]

Do filho ilegal

A necessidade social de preservação do núcleo familiar – ou melhor, preservação do patrimônio da família – levou a lei a catalogar os filhos de forma absolutamente cruel. Fazendo uso de uma terminologia encharcada de discriminação, distinguia filhos naturais, ilegítimos, espúrios, adulterinos e incestuosos. Essa classificação tinha por critério único a circunstância de a prole haver sido gerada dentro ou fora do casamento, isto é, proceder ou não de justas núpcias dos genitores, para usar a expressão de Clóvis Bevilaqua.[5] A situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos, conferindo ou subtraindo não só o direito à identidade, mas o direito à própria sobrevivência. Basta lembrar o que estabelecia o art. 358 do Código Civil em sua redação originária: Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. Como lhes era vedado investigar a paternidade, não podiam sequer buscar alimentos. O próprio Bevilaqua já se insurgia contra tal dispositivo, ao afirmar: A falta é commettida pelos Paes e a deshonra recáe sobre os filhos, que emm nada concorreram para ella. A indignidade está no facto do incesto e do adullterio, e a lei procede como se ella estivesse nos fructos infelizes dessas uniões condemnadas. Acaba o mestre por trazer as palavras indignadas de CIMBALI: Estranha, em verdade, a lógica desta sociedade e a justiça destes legisladores que, com imprudente cynismo, subvertem, por completo, os mais sagrados princípios da responsabilidade humana, fazendo do réo victima e da victima reo, condenando a expiar, inexoravelmente, a pena de um crime, que não cometeu.[6]

Depois de alguns equívocos legislativos, a Lei nº 883, de 21/10/1949, assegurou a possibilidade de haver o reconhecimento dos filhos havidos fora do matrimônio, após a dissolução do casamento. Mas, enquanto o genitor se mantivesse no estado de casado, o direito de investigar a paternidade servia para o fim exclusivo de buscar alimentos, tramitando a ação em segredo de justiça. Ainda assim, tais filhos só teriam direito, a título de amparo social, à metade da herança que viesse a receber o filho legítimo ou legitimado.

A Lei do Divórcio, em boa hora, assegurou a todos os filhos o direito à herança em igualdade de condições, afastando o tratamento diferenciado da prole.

Do filho atual

A concepção não mais decorre exclusivamente do contato sexual, e o casamento deixou de ser o único reduto da conjugalidade. As relações extramatrimoniais já dispõem de reconhecimento constitucional. Também não se pode mais deixar de albergar no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas, apesar de posturas discriminatórias e preconceituosas, que, por puro conservadorismo, insistem em não emprestar visibilidade a ditos vínculos familiares.

A Constituição Federal alargou o conceito de entidade familiar, emprestando especial proteção não só à família constituída pelo casamento, mas também à união estável formada por um homem e uma mulher e à família monoparental, assim chamada a convivência de um dos genitores com sua prole.

Consagrou a nova ordem jurídica como direito fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Transformou a criança em sujeito de direito, afastando-se do sistema anterior que privilegiava o interesse do adulto. Deu prioridade à dignidade da pessoa humana, abandonando a feição patrimonialista da família para fins de identificação do indivíduo. O § 6º do art. 227 da Carta Constitucional proibiu qualquer designação ou discriminação relativa à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos nascidos ou não da relação de casamento e aos filhos havidos por adoção.

A legislação ordinária não define a família, limitando-se o Estatuto da Criança e do Adolescente a identificar família natural como sendo a comunidade formada pelos pais, ou qualquer um deles, e seus descendentes. A lei menorista cria a expressão “família substituta” para permitir a colocação de crianças e adolescentes, sem, no entanto, declinar a estrutura ou o formato de tais famílias.

A família sofreu alterações estruturais, tornou-se nuclear. Além disso, o ingresso das mulheres no mercado de trabalho as afastou do lar, o que acabou por se refletir nos papéis paterno-filiais. Cada vez mais está o pai não só auxiliando, mas dividindo as tarefas domésticas e participando do cuidado para com a prole. Esse crescente envolvimento tem levado o homem a reivindicar uma participação mais efetiva na vida do filho. Mesmo quando os pais deixam de viver sob o mesmo teto, mantém-se a convivência física e imediata dos filhos com ambos os genitores, o que levou ao surgimento da figura da guarda compartilhada.

Do filho real

A possibilidade de identificação da verdade genética alcançou um altíssimo grau de certeza por meio dos chamados exames de DNA, o que ocasionou uma reviravolta nos vínculos de filiação. Desencadeou uma corrida na busca da verdade real, em substituição à verdade jurídica definida muitas vezes por presunções legais.

De outro lado, avanços científicos permitindo a manipulação biológica popularizaram a utilização de métodos reprodutivos, como a fecundação assistida homóloga e heteróloga, a cessão do útero, a comercialização de óvulos ou espermatozóides, a locação de útero, e isso sem falar na clonagem.

Diante desse verdadeiro caleidoscópio de situações, cabe perguntar como estabelecer os vínculos de parentalidade.

A resposta não pode mais ser encontrada exclusivamente no campo genético, pois situações fáticas idênticas ensejam soluções substancialmente diferentes. Assim, não há como identificar o pai com o cedente do espermatozóide. Também não dá para dizer se a mãe é a que doa o óvulo, a que aluga o útero ou aquela que faz uso do óvulo de uma mulher e do útero de outra para gestar um filho, sem fazer parte do processo procriativo.

Ante essa nova realidade, imperiosos novos referenciais, pois não mais se pode buscar nem na verdade jurídica nem na realidade biológica a identificação dos vínculos familiares. Como afirma Jédison Daltrozo Maidana, a coincidência genética deixou de ser o ponto fundamental na análise dos vínculos familiares.[7]

Do filho desejado

Cada vez mais a idéia de família se afasta da estrutura do casamento. A possibilidade do divórcio e do estabelecimento de novas formas de convívio, o reconhecimento da existência de outras entidades familiares e a faculdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação no conceito de família. Assim, é necessário ter uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos familiares, devendo ser buscado o elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar o relacionamento de duas pessoas. O desafio dos dias de hoje é identificar o toque diferenciador das estruturas interpessoais a permitir inseri-las no Direito de Família.

Esse ponto de identificação só pode ser encontrado pelo reconhecimento da existência de um vínculo afetivo. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do Direito Obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no Direito de Família, cujo elemento estruturante é o sentimento do amor, o elo afetivo que funde as almas e confunde os patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos.

Essa nova realidade também se impõe nas relações de filiação. Conforme João Baptista Villela: As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade.[8]

A mudança dos paradigmas da família reflete-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, posse do estado de filho.

Todas essas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do Direito de Família. Tal como aconteceu com a entidade familiar, agora também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. O Direito ampliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal.

Cabe o questionamento feito por Rodrigo da Cunha Pereira: Podemos definir o pai como o genitor, o marido ou companheiro da mãe, ou aquele que cria os filhos e assegura-lhes o sustento, ou aquele que dá seu sobrenome ou mesmo seu nome?[9] A resposta só pode ser uma: nada mais autêntico do que reconhecer como pai quem age como pai, quem dá afeto, quem assegura a proteção e garante a sobrevivência.

A filiação socioafetiva corresponde à realidade que existe, e juridicizar a verdade aparente garante a estabilidade social. A posse do estado de filho revela a constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe, não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, frutos de uma convivência afetiva.[10]

Do filho do afeto

No atual estágio da sociedade, não mais se questiona a origem da filiação. Ante as facilidades que os métodos de reprodução assistida trouxeram, hoje é possível a qualquer pessoa realizar o sonho de ter um filho. Para isso não precisa ser casado, ter um par ou mesmo manter uma relação sexual. A essa realidade não se pode fechar os olhos. Igualmente não dá mais para crer que os casais de pessoas do mesmo sexo, por não disporem de capacidade reprodutiva, simplesmente não podem ou não devem ter filhos.

Esses vínculos que passaram a ser chamados de “uniões homoafetivas”[11] se constituem da mesma forma que as uniões heteroafetivas. A presença de um vínculo de afeto leva ao comprometimento mútuo, e o enlaçamento de vidas de forma assumida configura uma entidade familiar. Muitas vezes um ou ambos são egressos de relacionamentos heterossexuais de que adveio prole. Quando, após a separação, o genitor que fica com os filhos em sua companhia resolve assumir sua orientação sexual, passando a viver com alguém do mesmo sexo, imperioso questionar a posição do companheiro frente ao filho do guardião. À evidência, ele não é nem o pai nem a mãe do menor, mas não se pode negar que a convivência gera um vínculo de afinidade e afetividade. Afora isso, o parceiro do genitor muitas vezes participa da formação e criação da criança, zelando por seu desenvolvimento e educação, podendo até assumir o seu sustento.

Se esse convívio acaba gerando um forte vínculo de afetividade, ambos, o pai e seu companheiro, passam a exercer de forma conjunta a função parental, tornando-se imperioso constatar a presença de uma filiação socioafetiva. Como lembra Sérgio Resende de Barros: O afeto é que conjuga. Apesar de a ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, pai e mãe.[12]

Vetar a possibilidade de juridicizar dito envolvimento só traz prejuízo à própria criança, pois ela não vai conseguir cobrar qualquer responsabilidade nem fazer valer qualquer direito com relação a quem de fato também exercita o “pátrio poder”, isto é, desempenha função paternal, hoje nominado de “poder familiar”.

Outra possibilidade cada vez mais comum é o uso de bancos de material reprodutivo, que permite que um do par seja o pai ou a mãe biológica enquanto o outro genitor fica garantido pelo anonimato. Para quem usa tal método e é casado ou vive em união estável, o cônjuge ou companheiro assume a paternidade, tanto que, pelo novo Código Civil, essa é uma das hipóteses em que se opera a presunção de paternidade.[13] Utilizando o par homossexual os mesmos métodos reprodutivos, impedir que o parceiro do pai biológico tenha um vínculo jurídico com o filho gestado por mútuo consenso é olvidar tudo o que vem a Justiça construindo com relação aos vínculos familiares a partir de uma visão ampliativa que melhor atende à realidade social.

Cabe trazer como exemplo o procedimento levado a efeito por um par inglês, que utilizou o sêmen de ambos para fecundar uma mulher, a qual veio a dar à luz um casal de gêmeos bivitelinos. Por desígnio mútuo, não foi investigada a filiação biológica dos filhos. Também as mulheres que resolvem ter um filho extraem o óvulo de uma, que, fertilizado in vitro, é implantado no útero da outra, que vem a dar à luz. Em ambos os casos, é imperioso perguntar: afinal, quem são os pais dessas crianças? Qualquer resposta que não reconheça que os bebês têm dois pais ou duas mães está se deixando levar pelo preconceito.

Imprescindível reconhecer que não há restrição alguma nem pode haver qualquer obstáculo legal para impedir o uso de tais práticas. Muito menos descabe tentar encontrar alguma justificativa para afastar a criança de seu lar e da companhia de quem considera seus pais. Tais posturas afrontam cânones consagrados constitucionalmente, como o direito à liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana. Igualmente infirmam o princípio do melhor interesse da criança, que tem direito à convivência familiar.

Diante de situações já estabelecidas, para a identificação do vínculo parental, cabe questionar se goza a criança da posse do estado de filho. Reconhecida a existência de uma filiação socioafetiva, com relação aos dois parceiros, imperativo afirmar a possibilidade – ou melhor, a necessidade – de ambos, ainda que sejam do mesmo sexo, estabelecerem um vínculo jurídico, visando principalmente à proteção de quem, afinal, é filho dos dois.

O que cabe é tão-só perquirir o modo de “legalizar” essa situação dentro do sistema jurídico pátrio.

O Estatuto da Criança e do Adolescente regula de forma minudente uma gama extensa de situações para reforçar os vínculos parentais, possibilitando a colocação de menores em “família substituta” mediante guarda, tutela ou adoção.

Não identifica o ECA o formato dessa estrutura familiar, o que permite concluir que não necessita corresponder ao que o próprio Estatuto chama e define como família natural: a comunidade formada pelos pais, ou qualquer deles, e seus descendentes (art. 25). Assim, possível reconhecer como “família substituta” uma só pessoa, conclusão da qual não se pode fugir tanto pelo fato de a Constituição Federal considerar família também o vínculo monoparental, como porque o Estatuto autoriza que maiores de vinte e um anos, independente do estado civil, adotem (art. 42).

De outro lado, descabe afastar a possibilidade de ser conferida a guarda de uma criança a mais de uma pessoa. Ora, diante da falta de definição do que seja família substituta, é possível sustentar que a entidade familiar formada por duas pessoas do mesmo sexo pode ser reconhecida ao menos como uma família substituta. A mesma linha de raciocínio pode ser utilizada para a concessão da guarda ao par, se nenhum for o pai biológico, ou somente ao companheiro do genitor.

O instituto da guarda não é regulamentado nem no Código Civil nem na Lei do Divórcio. Ambas as leis se limitam a identificá-la como um atributo do poder familiar a ser deferido ao genitor com quem o filho passa a residir. Mas a guarda configura verdadeira coisificação do filho, que é colocado muito mais na condição de objeto do que de sujeito de direito. Tal qual o conceito de propriedade (que pode se desdobrar em nua-propriedade e usufruto, posse direita e posse indireta), também o poder familiar e a guarda admitem igual fracionamento. Ambos os pais o detêm, mas a guarda fica com um deles, sendo assegurado ao outro apenas o direito de visita.

Sob a denominação de “guarda”, cuida o ECA da situação de crianças e adolescentes que não convivem com qualquer dos pais, ou seja, que estão em situação de risco, com “direitos ameaçados ou violados” (art. 98). Independente de sua situação jurídica, a lei visa a regularizar a “posse” de fato, com a colocação em família substituta, o que não implica a suspensão nem a extinção do poder familiar (art. 33). Também pode ser deferida a guarda, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela ou adoção. Ditas possibilidades dão a entender que a situação de guarda possui caráter precário e provisório. No entanto, o próprio Estatuto determina que o poder público estimule, por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, o acolhimento, sob a forma de guarda, de crianças órfãs ou abandonadas (art. 34), a deixar evidenciada a possibilidade de tal situação perpetuar-se no tempo. Assim, ainda que, em um primeiro momento, possa parecer que a concessão da guarda serve para atender a situações emergenciais em caráter temporário, tanto a falta de previsão de qualquer termo de sua vigência, como a inexistência de um procedimento para a regularização dessa precária situação mostram que a guarda pode ser definitiva.

Cabe questionar se há óbices em se regularizar a situação dos lares homossexuais exclusivamente por meio do instituto da guarda. O § 3º do art. 33 do ECA diz: a guarda gera a condição de dependência, para todos os efeitos de direito, inclusive previdenciários. Resta a dúvida sobre se essa dependência gera, por exemplo, efeitos sucessórios. Ou seja, se concorre o menor à sucessão hereditária do guardião. Se a resposta é negativa, o falecimento de um ou ambos os guardiões deixará o menor em total abandono, sem qualquer direito. Fácil reconhecer a frágil situação dessa criança pela falta de definição de responsabilidades, o que, além de gerar extrema insegurança, também pode ser fonte de um grande desamparo.

Igualmente, a ausência de uma terminologia adequada que identifique a relação que se estabelece entre o guardião e o menor sob guarda e sua revogabilidade a qualquer tempo podem gerar sentimento de insegurança e medo, tanto para um como para o outro. Por isso, não se pode limitar ao instituto da guarda a forma de estabelecer uma vinculação jurídica de parceiros do mesmo sexo com quem está sob seus cuidados, uma vez que essa modalidade protetiva não garante todo o leque de direitos que a Constituição Federal assegura aos cidadãos de amanhã.

A precariedade da situação de um menor nessas condições não se coaduna com os princípios atuais do Direito de Família, que privilegiam a consolidação dos vínculos afetivos. Tanto a colocação de uma criança em uma família substituta, como a concessão da guarda para regularizar uma situação de posse, sem a mínima cautela de atender ao melhor interesse da criança, considerando a temporariedade e revogabilidade, podem levar a estados de total instabilidade.

Outra modalidade de filiação é a construída no amor, na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, ao dizer que na adoção os laços de afeto se visualizam desde logo, sensorialmente, superlativando a base do amor verdadeiro que nutrem entre si pais e filhos.[14] O Estatuto da Criança e do Adolescente atribui ao adotado a condição de filho para todos os efeitos, desligando-o de qualquer vínculo com os pais biológicos.

Cabe perquirir se há algum obstáculo legal para que seja concedida a adoção de uma criança a um casal homossexual. E, sendo ela filha biológica de um deles, há algum óbice para ser concedida a adoção ao parceiro do genitor? A resposta só pode ser negativa. A única exigência para o deferimento da adoção é a constante do art. 43 do ECA, ou seja, que apresente reais vantagens para o adotado e se funde em motivos legítimos. Vivendo a criança com quem mantém um vínculo familiar, de forma sadia e segura, excluir a possibilidade de adoção para, por exemplo, institucionalizá-la só virá em seu prejuízo, comprometendo seu normal desenvolvimento. Não se pode olvidar que a lei não veda a possibilidade de duas pessoas adotarem, ainda que elas não sejam casadas nem vivam em união estável. O ECA permite que, mesmo divorciado ou separado judicialmente, o par possa adotar. Ora, pelo divórcio, dissolve-se o vínculo do casamento (parágrafo único do artigo 2º da Lei do Divórcio), e a permissão da adoção conjunta resta por autorizar, afinal, que duas pessoas, sem qualquer liame entre si, adotem uma mesma criança.

De outro lado, o simples fato de se tratar de uma relação homoafetiva não impede que o filho de um possa ser adotado pelo seu companheiro do mesmo sexo, pois, modo expresso, é permitido que um dos cônjuges ou companheiros adote o filho do outro (parágrafo único do art. 41).

Assim, diante do conceito aberto de família substituta, e em face da possibilidade de duas pessoas, ainda que sem qualquer vinculação, virem a adotar, nada obsta a que duas pessoas, independentemente do seu sexo, adotem uma criança.

Nem na Lei dos Registros Públicos se encontra óbice a que se proceda ao registro indicando como genitores duas pessoas do mesmo sexo.

A verdade real é que goza o filho da posse de estado, a prova mais exuberante e convincente do vínculo parental, conforme enfatiza Zeno Veloso, que questiona: se o genitor, além de um comportamento notório e contínuo, confessa, reiteradamente, que é o pai daquela criança, propaga este fato no meio em que vive, qual a razão moral e jurídica para impedir que esse filho, não tendo sido registrado como tal, reivindique, judicialmente, a determinação de seu estado?[15]

[1] As referências são ao Código Civil de 1916 com correspondência no art. 1.597 do Código Civil de 2002.

[2] VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 13.

[3] GUIMARÃES, Luís Paulo Cotrim. A presunção da paternidade no casamento e na união estável in Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte: Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, 2002, p. 366.

[4] LIMA, Taisa Maria Macena de. Filiação e biodireito: uma análise das presunções em matéria de filiação em face da evolução das ciências biogenéticas. Revista Brasileira de Direito de Família, nº 13, jun/2002, pp. 144.

[5] BEVILAQUA, Clóvis. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1917, p. 327.

[6] Op. cit., p. 332.

[7] MAIDANA, Jédison Ronei Daltrozo. O fenômeno da paternidade socioafetiva: a filiação e a revolução da genética. Disponível no site www.ibdfam.com.br.

[8] VILLELA. João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, nº 21, 1979, p. 404.

[9] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 144.

[10] BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 54.

[11] Expressão cunhada pela autora na obra intitulada União Homossexual: o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

[12] BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, Jul-Ago-Set. 2002, v. 14, p. 9.

[13] O novo Código Civil, no art. 1.597, além de repetir todo o elenco de presunções de paternidade, nos mesmos moldes da legislação anterior, criou novas presunções nas hipóteses de inseminação artificial homóloga e heteróloga.

[14] FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 16.

[15] VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 28.

* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

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