A 2ª Turma da 1ª Câmara Regional de Caruaru do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) condenou, por maioria de votos, o município de Caruaru a pagar indenização por dano moral de R$ 50 mil a um casal por ter ocorrido o descarte ilegal e irregular de um feto de 20 semanas no Hospital Municipal de Caruaru – Casa de Saúde Bom Jesus sem que houvesse a consulta obrigatória da mãe e do pai sobre o desejo de realizar o sepultamento do filho de forma tradicional. O município ainda pode recorrer da decisão colegiada.
Durante o julgamento da apelação nº 0004856-95.2017.8.17.2480, o desembargador Paulo Augusto de Freitas Oliveira apresentou voto de divergência e foi vencedor, por maioria de votos, sendo designado como relator para lavratura do acórdão. A apelação foi interposta pelo casal contra a sentença da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Caruaru.
Na petição inicial, o casal alegou que, no dia 15 de maio de 2017, a mãe deu à luz a criança e que a equipe médica cortou o cordão umbilical e rapidamente colocou o feto num papel e o levou embora da sala. Dois dias antes, a gestante foi atendida relatando fortes dores e ficou internada para tratamento de uma infecção urinária. Na ocasião, foi informada que o bebê não seria viável porque estaria infectado. Depois do parto, o atestado de óbito, por sua vez, só foi fornecido pelo hospital no dia 22 de maio de 2017 e estava incompleto, impedindo a emissão de certidão de óbito da criança no Cartório de Registro Civil de Caruaru.
De acordo com o desembargador, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 222/2018 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) define que fetos com 20 e poucas semanas que nascem sem vida só poderiam ser descartados como resíduo hospitalar se não houvesse requisição por seus familiares. “Conforme a própria RDC Anvisa nº 222/2018, seria indispensável para o descarte que NÃO HOUVESSE REQUISIÇÃO PELO PACIENTE OU FAMILIARES. É nesse ponto em que reside falha na prestação do serviço por parte da edilidade. Ao revés de colher a autorização dos genitores para o competente descarte, nos termos da norma de regência, em afronta à vontade dos pais, o nosocômio simplesmente considerou aquele feto como “resíduo hospitalar” e o jogou fora (ID.: 23206152). Caberia ao ente fazendário oportunizar aos genitores, após a vivência de momento tão traumático, a realização do competente sepultamento, o que não foi possível e jamais será”, relatou o desembargador Paulo Augusto de Freitas Oliveira.
Para o magistrado, a falha na prestação de serviço do município violou a dignidade humana, de sorte que, apesar de não ter nascido vivo, o feto também possuía personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos de personalidade, entre eles o direito à dignidade. “Logo, a ação da municipalidade em descartar o feto violou previsão normativa, bem como não foi razoável ou proporcional, violando a dignidade humana e aumentando o sofrimento vivenciado pela família em luto. Desse modo, restam evidenciados os requisitos indispensáveis para responsabilização objetiva do município, no caso concreto, quais sejam: ato ilícito, dano e nexo de causalidade. A vida e a dignidade humana são pressupostos essenciais do estado democrático de direito e devem ser protegidos a todo custo, sendo inclusive fundamento da nossa República Federativa. Não há como mensurar a dor dos pais que perdem um filho e sequer têm o direito, legalmente assegurado, de realizar o seu sepultamento, ainda mais quando este teria sido tratado como “resíduo hospitalar”, sem qualquer dignidade e respeito. Os danos emocionais vivenciados pelos genitores tornam-se ainda mais penosos pela gritante falha na prestação do serviço da municipalidade. Muito além da aplicação fria da lei, estamos a fazer justiça, vetor essencial da atuação de todo magistrado, numa busca, ainda que utópica, de amenizar os danos sofridos pelos demandantes”, escreveu o julgador no voto.
O magistrado ainda citou, no voto, diversos outros processos e recursos julgados no Superior Tribunal de Justiça (STJ), tais como o Recurso Especial (REsp) nº 1506388/ES, de relatoria do ministro Marco Buzzi, o AgInt nº AREsp nº 2.072.411/SP, de relatoria do ministro Raul Araújo, também do STJ; o REsp nº 1615971/DF, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze; no Supremo Tribunal Federal (STF), tais como o Recurso Extraordinário (RE) nº 395942 RS, de relatoria da ministra Ellen Gracie; o AI 734689 AgR-ED, de relatoria do ministro Celso De Mello, além de enunciados e julgamentos do TJPE.
O julgamento da apelação ocorreu no dia 28 de fevereiro de 2023. Também participaram da sessão os desembargadores José Severino Barbosa, Luciano de Castro Campos, Evanildo Coelho de Araújo Filho e Honório Gomes do Rego Filho.
Apelação nº 0004856-95.2017.8.17.2480