por Lilian Matsuura
A TV Globo terá de pagar R$ 19 mil por danos morais à operadora de telemarketing Maria Aparecida de Almeida Deales. Em uma cena da novela Sabor da Paixão, a personagem Clarissa interpretada pela atriz Carolina Ferraz deixou recado em um muro com o número de um celular. Era o número de Maria Aparecida. A divulgação foi o suficiente para que o seu telefone não parasse de tocar, com dezenas de pessoas à procura da bela atriz de novela.
“Um império das telecomunicações, com mais de 40 anos de existência, não poderia ter cometido falha tão crassa, digna de um canal inexperiente”, criticou o desembargador Joaquim Garcia, relator dos recursos apresentados pela TV e também pela autora da ação.
Maria Aparecida pediu indenização de R$ 101 mil por danos morais e materiais. O juiz Rodrigo Marzola Colombini, da 6ª Vara Cível Central de São Paulo, entendeu que não houve dano material. E determinou que a TV Globo pagasse R$ 4.800 para a operadora de telemarketing pelos danos morais causados.
A advogada Adriane dos Reis, que representa a operadora de telemarketing, entrou com recurso para aumentar o valor da indenização e ter o dano material reconhecido. Segundo ela, Maria Aparecida não conseguiu trabalhar porque seu telefone não parava de tocar. Uma das testemunhas no processo foi uma psicóloga, que contou que Maria Aparecida ficou abalada emocionalmente com os insistentes telefonemas.
A defesa da TV Globo também recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Para os advogados, as ligações recebidas por Maria Aparecida aconteceram em um curto espaço de tempo, “pois o andamento veloz dos capítulos da obra acaba por apagar os acontecimentos passados”. Sustentaram ainda que o fato não passou de um mero aborrecimento.
O desembargador Joaquim Garcia observou que o “fenômeno” das novelas está enraizado na cultura brasileira há muito tempo e que a influência sobre os telespectadores é notória. “Diante disso, afigura-se pueril a alegação da ré de que, por ser uma obra ficcional, a veiculação de um número de telefone, durante a exibição da novela, não causaria qualquer reação do público”, julgou.
Para Joaquim Garcia, não é preciso muita imaginação para visualizar o “inferno” que se tornou a vida de Maria Aparecida depois da divulgação do número de seu celular. “Se apenas uma pessoa, de cada Estado e do Distrito Federal, resolvesse ligar para o telefone divulgado, seriam 27 ligações à procura da pessoa errada; considerando o contingente da população brasileira, à época, estimada em quase 170.000.000 de habitantes.”
Ao imaginar a situação, o desembargador decidiu aumentar o valor da indenização por danos morais de R$ 4,8 mil para 50 salários mínimos, inclusive com relação ao ônus sucumbenciais. O pedido de indenização por danos materiais não foi aceito novamente. O setor jurídico da TV Globo vai avaliar ainda se recorre ou não da decisão.
Leia a decisão
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
5í ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA
” 2 ACÓRDÃO REGISTRADO(A)SOB
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 380.858-4/2-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que são apelantes e reciprocamente apelados MARIA APARECIDA DE ALMEIDA DEALES E T V GLOBO LTDA:
ACORDAM, em Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DA RÉ E DERAM PROVIMENTO AO RECURSO DA AUTORA, V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que íntegra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores CAETANO LAGRASTA (Presidente), SILVIO MARQUES NETO.
São Paulo, 16 de janeiro de 2008.
JOAQUIM GARCIA
Relator
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
VOTO N°: 14505
APELAÇÃO N°: 380.858.4/2-00
COMARCA: SÃO PAULO
APELANTES : MARIA APARECIDA DE ALMEIDA DEALES (AJ) E TV GLOBO LTDA
APELADAS : MARIA APARECIDA DE ALMEIDA DEALES (AJ) E TV
GLOBO LTDA
Danos materiais e morais – Indenização – Autora que teve divulgado seu número de telefone em novela da TV Globo – Parcial procedência – Insurgência das partes – Requerida que entende inexistente qualquer dano, configurado apenas mero aborrecimento – Inconsistência – Autora que recebeu inúmeras ligações de telespectadores que buscavam a atriz Carolina Ferraz – Dano configurado – Autora que pretende o acolhimento integral do pedido inicial ou a majoração do quantum indenizatório – Pedido alternativo agasalhado – Condenação aumentada para 50 salários mínimos vigentes à data do pagamento – Apelo da ré improvido – Recurso da autora provido.
Apelação interposta contra r sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, condenando a ré ao pagamento de R$ 4.800,00 a título de danos morais, não reconhecida a ocorrência de dano material, sucumbência recíproca, cada parte arcando com as custas processuais e honorários de seus respectivos patronos.
Apela a autora, pugnando pelo acolhimento integral de seu pedido, requerendo indenização total no valor de R$ 101.000,00, alternativamente, pede ao menos majoração do quantum fixado, a fim de se alcançar o efeito punitivo pretendido.
Igualmente apela a ré, alegando que a novela “Sabor da Paixão” é obra absolutamente ficcional, “não possuindo qualquer vínculo com a vida real, desse modo, acaso o número do telefone celular da autora tenha sido divulgado, “tal veiculação nunca estaria associada à realidade humana. Afirma que as eventuais ligações recebidas pela requerente ocorreram em curto espaço de tempo, pois o andamento veloz dos capítulos da obra acaba por “apagar” os acontecimentos passados. Ademais, o dano passível de indenização é aquele que tenha grande importância ou gravidade e não mero aborrecimento, necessária prova inequívoca do abalo sofrido.
Recursos tempestivos, respondidos, preparado o da ré e dispensado de preparo o da autora.
É o relatório
Trata-se de ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes da divulgação do número do telefone celular da autora, durante a exibição do capítulo 103 da novela “Sabor da Paixão”, ocorrida em 27/01/2003, a personagem interpretada pela atriz Carolina Ferraz escreve o mencionado número num muro, deixando um recado para a personagem do ator Edson Celulari.
Em que pesem os argumentos expendidos pela ré, inclusive colacionando excertos da melhor doutrina, entende-se que seu apelo não pode prosperar.
Pode-se afirmar, com tranqüilidade, que o fenômeno das novelas (ou telenovelas) está absolutamente enraizado na cultura brasileira, há décadas, a maior parte da população aprecia tal manifestação artística, acompanhando e participando ativamente dos enredos propostos. A TV Globo é, atualmente, a maior produtora de novelas, mantendo em exibição várias obras (reprises e as novelas noturnas).
É notório que, embora sejam obras ficcionais, as novelas exercem grande fascínio e, principalmente, influência sobre a maioria dos telespectadores, ditam moda, inserem novos jargões e gírias no linguajar, fomentam discussões sociais Interferem de tal modo na vida das pessoas que as acompanham, que atores e atrizes, especialmente os que interpretam vilões, já se viram várias vezes vítimas de agressões não só verbais, como físicas, por serem confundidos com seus personagens.
O rumo de muitas novelas já foi mudado em razão da força da opinião dos telespectadores, que às vezes não querem que determinado casal se una ou se desfaça, que um vilão morra ou apenas seja preso. A dinâmica se altera conforme o gosto do público.
Diante disso, afigura-se pueril a alegação da ré de que, por ser uma obra ficcional, a veiculação de um número de telefone, durante a exibição da novela, não causaria qualquer reação do público. Importante destacar que os autores se utilizam dos mais variados meios para “prender” a atenção de seu público. Tal maneira de raciocinar da rede de tevê pretende subestimar a infindável ignorância e o fanatismo do ser humano, ou, mais especificamente, do telespectador.
Ademais, a requerida não logrou comprovar que o número não teria sido divulgado, a fita VHS encartada aos autos (fl 73), demonstrou o contrário, restando verossímeis as alegações da autora, de que teve seu telefone indevidamente divulgado A TV Globo sequer argumentou ter feito uma pesquisa prévia a fim de detectar se aquele número era utilizado por alguma pessoa.
Insiste a requerida em asseverar que a divulgação do telefone da autora não lhe teria causados grandes danos, apenas mero aborrecimento, engana-se, contudo.
Não é preciso grande imaginação para tentar visualizar o “inferno” que se tornou a vida da autora, basta lembrar que a TV Globo transmite sua programação em todo território nacional e em outros países. Se apenas uma pessoa, de cada Estado e do Distrito Federal, resolvesse ligar para o telefone divulgado, seriam 27 ligações a procura da pessoa errada;considerando o contingente da população brasileira, à época, estimada em quase 170 000.000 de habitantes (conforme site do Censo 2000 -http //www ibge gov br/censo), é possível vislumbrar o caos instalado.
Impossível desconsiderar os danos sofridos pela autora, ainda que tenham ocorrido por um pequeno espaço de tempo, como assevera a ré. A requerente trabalha como autônoma e o telefone celular é o meio de contato com seus clientes, portanto, não podia mantê-lo desligado; contudo, ligado, lhe causava sérios aborrecimentos, pois as pessoas queriam conversar com a atriz Carolina Ferraz e não a encontravam’.
As testemunhas arroladas pela autora confirmaram a alteração de seu estado físico e psíquico (fls 96/103), restando configurado o nexo causal entre a conduta imprudente da TV Globo e o abalo emocional sofrido pela requerente Desse modo, outra não poderia ter sido a decisão do D Magistrado sentenciante, que reconheceu a ocorrência de dano moral e condenou a ré à respectiva indenização, o dano material ficou improvado, mantendo possibilidade de acolhida integral do pedido inicial.
Entretanto, o pleito alternativo da autora deve ser atendido, no concernente à majoração do quantum indenizatório.
Um império das telecomunicações, com mais de 40 anos de existência, não poderia ter cometido falha tão crassa, digna de um canal inexperiente. Note-se que até em rádio populares, quando são feitos sorteios de prêmios, a divulgação do ganhador se dá pelo final do número do telefone, exatamente para evitar situações como as aqui expostas.
Assim, consideradas as condições de cada parte e, especialmente a conduta desidiosa da ré, a condenação arbitrada em R$ 4.800,00 se mostra ineficaz, devendo ser majorada para o correspondente a 50 salários mínimos vigentes à data do pagamento, mantida, no mais, a r sentença, inclusive com relação aos ônus sucumbenciais.
Isto posto, dou provimento ao recurso da autora e nego provimento ao da requerida.
JOAQUIM GARCIA
Relator
Revista Consultor Jurídico