por Leonardo Gomes Ribeiro Gonçalves
Iniciando a nossa reflexão sobre o embate conceitual entre o Código Civil de 1916 e a função social da propriedade no século XXI, podemos afirmar que o Direito Civil brasileiro, inaugurado com o Código de 1916, tinha o caráter eminentemente individualista, tendo sido elaborado sob a inspiração do ideário liberal-iluminista da revolução francesa.
Por outro lado, não podemos considerar que tais concepções eram ou são boas ou más: primeiro, porque não seria cientificamente correto; segundo, porque os citados valores eram os mais ajustados à sociedade daquela época. Com relação a este aspecto, “nada que diz respeito à definição jurídica do direito de propriedade é a-histórico, pois toda ordem jurídica é histórica, cultural e politicamente produzida – e modificada”1.
Nesse diapasão, a propriedade no espaço urbano na visão clássica do Código de Beviláqua era uma célula de um agrupamento residencial e comercial, muitas vezes não encarado de forma orgânica. Os problemas urbanos observados atualmente não tinham a dimensão observada no início do século XX. O direito conformador da propriedade, em 1916, não se dispunha a invadir o aspecto interno da mesma. Preocupava-se apenas em “proteger” o bem jurídico da atuação violenta e abusiva do Estado, numa clara manifestação da separação clássica entre Direito Público e Direito Privado.
Tudo isso é, no entanto, explicável.
Naquela época, a grande maioria da população vivia no campo e o Estado-Administração tinha “forças” suficientes para organizar e manter os equipamentos urbanos com a eficiência exigida. Os administrados eram poucos e, em conseqüência, a demanda pela atuação estatal de natureza positiva também. Não existia a crise fiscal da atualidade. A participação direta da sociedade na esfera administrativa praticamente não existia, simplesmente porque provavelmente não era necessária.
A partir da década de 1930, o Brasil iniciou um processo acentuado de industrialização, combinado com a migração no sentido campo-cidades. Estes fatos ocorreram porque existia a oferta de trabalho nos espaços urbanos, bem assim porque os camponeses passaram a buscar melhores condições de vida.
A ironia do destino é que a inicial busca por melhor qualidade de vida, por mobilidade social, enfim, pela cidadania tornou-se uma das causas de exclusão social, política e econômica, da pobreza absoluta, da violência e de tantos outros problemas inerentes às atuais cidades não planejadas.
Nesse sentido, a causa maior dos problemas urbanos vistos na atualidade pode ser definida como a dicotomia entre a realidade social criada a partir da década de 1930 e a legislação que regulamentava as urbes à época.
A vida nas cidades mudou de forma inflacionária, em progressão geométrica, e os estudos em busca das soluções para os problemas “novos” sempre foram postergados, talvez porque o câncer da exclusão sócio-urbana estivesse desenvolvendo-se longe dos “olhos” e do “coração” dos detentores do poder, do shadow state2, para quem, de fato, sempre coube a produção normativa oficial.
O direito positivo oficial, que deveria ter um papel de garantidor da Justiça, passava progressivamente a ter um papel de garantidor de liberdades negativas (propriedade privada urbana), exclusivamente daqueles que o produziam, intencionalmente ou não.
Contudo, o aparelho estatal não resistiu à pressão social, porque os controladores começaram a sentir que o problema, aos poucos, estava começando a afetar as suas vidas e os seus “direitos”. A partir de 1934, de forma desorganizada, a legislação urbanística passou a sofrer modificações, com a adoção do conceito vago de função social da propriedade (1934) além do surgimento de legislação infra-constitucional, v. g., a Lei de Parcelamento do Solo Urbano.
Mas foi após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a instituição de capítulo próprio para a Política Urbana no corpo constitucional, e com a promulgação da Lei Federal 10.257/01, o Estatuto da Cidade, que o conceito de propriedade urbana sofreu modificação significativa, incorporando-se definitivamente à conformação jurídica dela a noção de função social.
Nestes termos, a propriedade urbana atualmente deve ser destinada à promoção dos direitos à moradia, à saúde, a um meio-ambiente equilibrado, ao emprego, enfim, à dignidade da pessoa humana já há muito tempo consolidado como norte jurídico dos povos.
A função social da propriedade é conceito que propõe uma alteração dos paradigmas postos pelo modelo “clássico” anteriormente vigente. Para que a propriedade seja socialmente adequada, não basta que seja legal — no sentido jurídico-formal do termo, não basta que esteja de acordo com o código de posturas do município, etc. Para tanto, é necessário que a mesma não seja destinada à especulação imobiliária, é necessário que ela arque proporcionalmente com os benefícios e valorizações decorrentes da ação estatal, constituindo-se este um dos princípios do direito urbanístico.
Nesse ponto podemos observar de que forma se dá o embate conceitual entre a propriedade individualista estabelecida pelo Código Civil de 1916 e a propriedade socialmente adequada, da Constituição de 1988, do Estatuto da Cidade e do Código Civil de 2002.
Enquanto em 1916 o Estado-legislador partia do pressuposto de que todos são iguais (igualdade formal), hoje o Estado deve exercer as funções legislativa, administrativa e judicial com a certeza de que vivemos numa sociedade plural, na qual todos — e alguns mais que outros — são desiguais.
O Estado liberal-positivista tinha a idéia de Justiça baseada na generalidade da lei enquanto, atualmente, a Estado pós-moderno deve guardar a idéia de Justiça na concretização dos direitos, no seu aspecto material. Por isso, a idéia de função social da propriedade, que surgiu com vigor pleno entre nós a partir de 1988, com a Constituição Federal, de 2001, com o Estatuto da Cidade e de 2002, com o Código Reale, impõe uma mudança de paradigma ao sistema jurídico.
E essa mudança de paradigma deve ser concretizada porque o papel do liberalismo-positivista (que é a raiz do nosso sistema) é o de resguardar a propriedade urbana individual, fora do contexto da cidade, que é mais amplo. Na “Cidade”, por outro lado, trata-se de verdadeiro direito de todos terem uma vida digna, social e economicamente participativa.
Concluindo, observa-se que o embate conceitual entre o Código Civil de 1916 e a função social da propriedade tem vários aspectos, dentre os quais podemos destacar:
1) social, através do qual se revela a pressão da comunidade municipal por uma mudança do papel do direito com relação ao problemas urbanos;
2) político, através do qual podemos concluir que as relações inter-governamentais devem ser desenvolvidas (tanto as relações União-Municípios, como Estados-Municípios e Municípios-Municípios), com o fim de buscar, através de ações conjuntas, soluções para os problemas da propriedade urbana e a ocupação do solo;
3) econômico, tendo em vista que a função social da propriedade é uma alternativa jurídica para a regularização plena (não só formal, sob o aspecto da propriedade) das ocupações irregulares, e, via de conseqüência, propiciando melhores condições para o crescimento sustentado da atividade produtiva urbana.
Como se vê, afinal, tudo se resume ao ideal de concretização da Justiça que é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Notas de rodapé:
1. FERNANDES, Edésio. Questões Anteriores ao Direito Urbanístico. Belo Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 43
2. FERNANDES, Edésio. Questões Anteriores ao Direito Urbanístico. Belo Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 43.
Revista Consultor Jurídico