Em uma mesma sessão, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) identificou falhas no reconhecimento de suspeitos em três casos diferentes e, como consequência, despronunciou um réu (ou seja, reverteu a decisão que havia determinado seu julgamento pelo tribunal do júri) e absolveu outros dois.
No primeiro caso (HC 948.558), que envolvia imputação de homicídio consumado, homicídio tentado e roubo, a foto de um suspeito apresentada a uma das vítimas, retirada de um banco de dados, era uma imagem 3×4 feita nove anos antes do crime – quando o indivíduo tinha apenas 15 anos de idade.
Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator, além do longo tempo entre a fotografia e o crime, a defesa apontou divergência entre as características físicas do suspeito e aquelas descritas pela vítima. O relator disse ainda que nenhuma das testemunhas identificou o suspeito, de modo que a única prova contra ele era o “reconhecimento fotográfico completamente irregular realizado pela vítima na delegacia de polícia”.
Schietti lembrou que não foi observado o rito previsto no artigo 226, inciso II, do Código de Processo Penal (CPP), pois o procedimento se limitou à simples exibição isolada de uma foto do suspeito (técnica conhecida como show-up), sem o alinhamento dele com outros indivíduos semelhantes para que a vítima fizesse o reconhecimento pessoalmente.
“O reconhecimento fotográfico isolado, maculado por tais ilegalidades e fragilidades, impõe a conclusão de que, a rigor, não havia indícios suficientes de autoria do crime para a pronúncia do paciente”, concluiu o ministro.
Fotos de rede social embasaram reconhecimento de suspeito pela vítima
No segundo processo (HC 946.371), relativo a um caso de latrocínio, uma das vítimas disse que não conseguiu observar as características dos autores do crime, pois usavam capacetes. No entanto, dois anos depois, a vítima foi chamada na delegacia e, com base em fotografias retiradas de um perfil no Facebook, apontou o indivíduo como sendo um dos criminosos e ainda descreveu em detalhes as suas características físicas.
Para o relator do habeas corpus, ministro Sebastião Reis Junior, as provas são frágeis, pois foram formadas a partir do reconhecimento inicial inválido, e, além disso, a posterior identificação do suspeito feita pela vítima em juízo pode ter sido induzida pelo primeiro reconhecimento.
Ao absolver o réu, o ministro apontou ainda que não houve prisão em flagrante nem apreensão de objetos do crime com ele, e que as imagens de câmera de vigilância constantes no processo não permitem identificar os criminosos.
Perícia apontou divergências entre autor do crime e suspeito apontado pela vítima
No terceiro caso (HC 903.450), a vítima levou um tiro em uma tentativa de latrocínio. Com base em imagens de câmeras de vigilância, a polícia checou as características físicas e as roupas do autor do crime.
Em diligências realizadas nos arredores, os policiais abordaram uma pessoa e, ao revistarem o carro da mãe dele, encontraram uma blusa semelhante à que foi vista nas imagens do dia do crime. O suspeito foi preso e, na delegacia, a vítima o reconheceu como o autor do delito – e a blusa foi apreendida.
Contudo, o ministro Rogerio Schietti, relator, destacou que, segundo dados da perícia, a imagem do autor do crime capturada nas câmeras não coincidia com as características do suspeito preso. Além disso, o laudo pericial apontou que a blusa apreendida não era a mesma peça de roupa utilizada pelo criminoso, pois tinham características diferentes, como listras, estampa e comprimento das mangas.
Schietti comentou que a perícia, de forma minuciosa, levou em consideração detalhes anatômicos como altura, envergadura dos braços, largura dos ombros e formato do rosto, além das peculiaridades da roupa usada pelo autor no dia do crime.
Para o ministro, é notável que, apesar de haver nos autos laudo pericial oficial, tanto a primeira quanto a segunda instâncias tenham desprezado o documento e optado por manter a imputação penal com base em outras provas mais precárias, “permanecendo silentes justo em relação ao único documento de prova dos autos que foi produzido nos estritos termos da lei”.
Jurisprudência evoluiu no tema dos reconhecimentos pessoais falhos
As falhas em reconhecimento de suspeitos de crimes têm sido objeto de atenção constante do STJ nos últimos anos. No HC 598.886, julgado em 2020, a Sexta Turma adotou orientação sobre a necessidade de invalidar qualquer reconhecimento feito em desacordo com o artigo 226 do CPP.
Em 2022, no HC 712.781, o colegiado avançou em relação ao entendimento anterior e estabeleceu que, mesmo sendo realizado em conformidade com o CPP, o reconhecimento não tem valor probatório absoluto e não pode induzir, por si só, a conclusão sobre a autoria do crime.
No mesmo julgamento, a turma julgadora fixou que, se o reconhecimento estiver em desacordo com o artigo 226 do CPP, o ato é totalmente inválido e não pode ser utilizado nem de forma suplementar, tampouco para embasar decisões como a decretação de prisão preventiva, o recebimento da denúncia ou a pronúncia.
Processos: HC 948558; HC 946371 e HC 903450