Boca do povo – MP tem competência para apurar morte de João Goulart

por Pedro Abi-Eçab

As revelações feitas pelo ex-policial uruguaio Mario Neira Barreiro, preso no Rio Grande do Sul, de que o ex-presidente João Goulart teria sido vítima de homicídio executado por agentes da “equipe Centauro”, numa operação que teve a participação de Brasil, EUA e Uruguai (Folha de S. Paulo de 27 de janeiro de 2008) reascenderam uma discussão que acarreta discussões de grande relevância para o Direito.

A família do ex-presidente, na pessoa de seu filho, representou ao procurador-geral da República solicitando a apuração do crime. O chefe do Ministério Público Federal, por sua vez, anunciou que a atribuição para eventual investigação é da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul. O Ministro da Justiça Tarso Genro requisitou à Polícia Federal que colha o depoimento de Mario Neira Barreiro (Folha de S. Paulo, 30 de janeiro de 2008).

Colocada de lado a questão do exame de verossimilhança das declarações do ex-agente, na esfera jurídica fervilham os questionamentos. Argumenta-se, de um lado, que o crime encontra-se prescrito, haja vista ter decorrido o prazo de 20 anos estabelecido no artigo 109, inciso I, do Código Penal. Além disso, os fatos estariam acobertados pela Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), que anistiou de forma ampla e irrestrita os contendores do embate ditadura militar versus guerrilha. Por outro lado, não apenas a família, mas diversos setores da sociedade acompanham o desenrolar dos fatos, sendo evidente o interesse público no caso. Surge, dessa forma, a seguinte indagação: que providências podem as autoridades tomar diante do caso?

Em primeiro lugar, exclui-se evidentemente a instauração de inquérito policial pois, como já visto, o crime encontra-se prescrito. Excluído o fato penal, não haveria que se falar em atuação da Polícia Federal, conforme requisitado pelo Ministro da Justiça Tarso Genro.

Contudo, embora o fato não tenha mais relevância na esfera penal, sem dúvida interessa à esfera coletiva civil. Mais do que mera curiosidade do público ou interesse individual da família de Jango, não há dúvida de que o possível assassínio de um Presidente da República constitui fato que interessa à História e à todos os cidadãos brasileiros.

Este interesse público na apuração da verdade histórica brasileira pode sem dúvida ser considerado interesse público primário, isto é, o interesse que representa exatamente a aspiração coletiva do bem comum, e que se afasta do interesse público secundário, o qual, por sua vez, diz respeito ao interesse estatal, o interesse da Administração pública (que nem sempre reflete o interesse do povo). Este interesse público primário denomina-se interesse coletivo lato sensu, ou interesse metaindividual.

De fato, não é preciso maiores delongas para se constatar a existência de interesse público na elucidação das circunstâncias morte de um presidente da República, fato que pode alterar a História da nação brasileira e de outros países (caso se comprove o envolvimento de órgãos de segurança norte-americanos e uruguaios), influenciando na percepção de mundo de uma quantidade incomensurável de pessoas.

Dessa forma, o interesse difuso à verdade histórica é decorrência natural do interesse difuso à informação, o qual, por sua vez, é pressuposto do Estado Democrático de Direitos. A garantia do direito de informação revela-se tanto autônoma como assecuratória de outros direitos, dentre eles o de participação social, vital ao processo democrático.

Para a consolidação de uma “democracia de fato” é condição obrigatória a efetiva participação dos membros da sociedade e esta, por sua vez, não ocorrerá sem a ampla informação, que fornecerá aos cidadãos meios de atuação. Como ensina Édis Milaré, “o direito à participação pressupõe o direito de informação e está a ele intimamente ligado. É que os cidadãos com acesso à informação têm melhores condições de atuar sobre a sociedade, de articular mais eficazmente desejos e idéias e de tomar parte ativa nas decisões que lhes interessam diretamente” (Direito do Ambiente, São Paulo: RT, 2004, p. 141).

Com efeito, o direito difuso à informação é conquista das sociedades democráticas e tem sua origem no direito fundamental individual de informar e ser informado, mas vai muito além. Trata-se de um direito difuso por natureza, típico da terceira geração de direitos fundamentais, eis que se trata de interesse de uma coletividade indivisível, incomensurável, ligada entre si por circunstâncias fáticas. A Constituição o delineia no artigo 5º, incisos XIV e XXXIII.

Visualiza-se, dessa forma, que os indivíduos (no caso, o povo brasileiro) são pessoas indeterminadas ligadas por circunstância de fato, sendo titulares de um interesse natureza indivisível, isto é, o interesse à verdade histórica. Estamos, assim, diante de um interesses difuso, nos termos do art. 81, parágrafo único, inc. I, da Lei 8.078/1990. Para a proteção deste interesse, cabível a aplicação da Lei 7.347/1985, destinada a fornecer instrumento extraprocessuais e processuais para a tutela de qualquer interesse difuso ou coletivo (artigo 1º, IV).

Para a proteção deste interesse, são cabíveis os instrumentos legais de proteção dos interesses metaindividuais, como o inquérito civil e a ação civil pública, previstos na Lei 7.347/1985. No caso, ainda que desnecessário o ajuizamento de ação civil pública, seria cabível a instauração de inquérito civil (artigo 8º, parágrafo 1º) com a finalidade colheita de elementos que elucidem as circunstâncias da morte do ex-presidente.

Isto porque, diante do interesse público de todos os brasileiros em conhecer as circunstâncias da morte de um presidente da República, caracterizado está o interesse difuso à informação, sendo cabível a instauração de inquérito civil pelo Ministério Público para apuração das circunstâncias em que se deu a morte de João Goulart.

Bibliografia:

CIOCCHETTI, Motauri. Ação civil pública e inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 2001.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Os interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6a ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19a ed., São Paulo: Saraiva, 2006.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. Direito do Ambiente, São Paulo: RT, 2004, p. 141.

Revista Consultor Jurídico

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