Exame de Ordem – Por que universidade é apática sobre reprovações?

por Atahualpa Fernandez

“Eu e meu clã contra o mundo; eu e minha família contra meu clã; eu e meu irmão contra minha família; eu contra meu irmão”. Provérbio Sumalí

Uma das coisas que mais me intriga no discurso “oficial” da OAB acerca da “má qualidade e das deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis” como a principal — para não dizer a única — causa dos alarmantes índices de reprovação no Exame de Ordem, não é o discurso em si (por demais simplista e reducionista), mas a apatia e o silêncio conformista por parte das instituições de ensino (pelo menos da grande maioria) insistente, periódica e veementemente apontadas como as verdadeiras — para não dizer as únicas — responsáveis por tais “deficiências” e a conseqüente “reprovação em massa” nesses exames.

Em termos comparativos, essa inusitada situação parece indicar que, por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico na questão da liberdade e autonomia universitária e de que a educação deve ter como objetivo prioritário o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o trabalho, o que conta é apenas o resultado final: a entrega do diploma universitário. E se damos essa situação por normal, se não parece razoável fazer nada para corrigi-la, talvez possamos economizar os gastos que se investem na educação porque, de uma maneira ou outra, já não servem ou servirão de grande coisa: para que tantos mestrados, doutorados e especializações, se não sabemos sequer formar bacharéis?

Assim que me preocupa a atitude das instituições de ensino quando, diante de tais acusações, continuam a adotar uma “política de avestruz”, como se o baixo índice de aprovação nos Exames de Ordem por parte dos egressos dessas mesmas faculdades de direito não lhe diga respeito ou se trate apenas de um episódio que não tem a dimensão e a transcendência que parece ter. Nada mais longe da realidade: o que de fato salta à vista, por mais que possam negá-lo — que certamente não o fazem — as autoridades e as instituições de ensino com responsabilidades na formação desses profissionais, desde as governamentais até as que dirigem o mercado da educação, é que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia.

Na verdade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma postura universitária de compromisso ético brilha, hoje, de maneira clamorosa por sua ausência. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas, como esses, o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece, é muito provável que a intenção seja uma farsa. E embora não exista — parafraseando Churchill — nenhuma terra neutral entre o bem e o mal onde alguém possa viver uma vida moralmente tranqüila, nossas instituições de ensino jurídico se comportam como se estivessem vivendo esse tipo de vida.

Depois, nunca é demais recordar que a essência da apatia reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma conseqüência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua. Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa.

Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos.

Visto desde essa perspectiva, as faculdades de Direito estão fazendo muito pouco (ou quase nada) para combater a lógica do discurso das “ deficiências do ensino jurídico”. Parece até que o que se predica só se aplica e afeta aos bacharéis; as instituições que os formaram durante 5 longos anos não têm nada que dizer a respeito. Sem embargo, se é certo que a distância faz coisas estranhas a nosso sentido moral, não menos certo é o fato de que se deixas a um grupo de indivíduos privado de oportunidades reais na estrutura social e que povoam seus interstícios sem conseguir um lugar no mercado de trabalho, o distancias das práticas e instituições sociais das que forma parte; e muito provavelmente os membros desse grupo se converterão em fatores ou números estatísticos que desvalorizam essas mesmas instituições.

Assim que à medida que a esfera de preocupação das instituições de ensino se faz cada vez mais estreita, começamos a ser testemunhas de um fenômeno de “definhamento moral”. Sequer nos podemos surpreender de que o compromisso ético das instituições de ensino com os bacharéis saídos de suas entranhas esteja tornando-se cada vez mais avaro e insípido, e se converta em uma simples preocupação pelas “leis da terra”. E se tomamos o fenômeno do de Ordem e da indústria dos cursinhos preparatórios como indício, este processo já está bastante avançado no Brasil.

Os que se calam não sentem nenhuma vergonha se a lei permite condenar ao desemprego milhares de bacharéis que reprovam no mencionado exame, taxando-lhes (implícita e indiretamente) de desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes de um modelo de ensino esclerosado e assumidamente ineficiente. Os problemas morais e sociais gerados por esse instrumento de “controle de qualidade” se resolvem recorrendo a legislação. E as instituições culpadas dessa falta moral atroz defendem rotinariamente seu direito de continuar com tal prática sob o argumento de que “não fazem nada ilegal”. O que se espera é que quando não se incumbe a lei não se pratica nenhum mal. Nada mais longe da verdade (verdade, aqui — diga-se de passo —, empregada no sentido dado por Harry Frankfurt).

Por vezes, ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por um legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias à idéia de Direito e, portanto, violadoras daquela mesma função axiológico-normativa em que terão de justificar-se como normas jurídicas válidas e legítimas.

Há um sentido comum de que o Direito segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem fazer ver alguns discursos motivados por prejuízos ideológicos, políticos e/ou interesses corporativos. De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o Direito e a força bruta, que permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinqüente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma determinada contribuição, enfim, que não permite conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça.

E porque as perguntas sobre a justiça são perguntas morais, as instituições que desconsideram essa incondicional dimensão do Direito, que negam conscientemente a vontade de justiça ou quando violam arbitrariamente os princípios, os direitos e as garantias consagradas, cometem, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transformam essa deficiência moral em deficiência jurídica: as normas perdem seu caráter jurídico se sobre-passam certos limites de injustiça. Dito de outra forma, parece ser que a única atitude legítima em face de um “instrumento de controle” injusto, despropositado e inconstitucional é a de lutar aberta e criticamente contra sua aplicação.

Às instituições de ensino lhes corresponde o dever moral e jurídico de reagir contra essa prática deplorável e a atual política institucional de exploração que parece só saber bazofiar o triunfo do fracasso, apontar culpados e indicar responsáveis. A virtude, a independência e a autonomia universitária não são outra coisa que a manifestação da autonomia do Direito e, em razão disso, essas mesmas universidade se encontram comprometidas eticamente com o imperativo moral (e constitucional) de que capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional, como valor primeiro, somente se afirma a partir do respeito incondicional por sua dignidade: não somente de um aluno ou de um Bacharel, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de se autodeterminar livremente no âmbito de sua formação pessoal e profissional.

Mas se em realidade nada disso importa, melhor para todos. Sem embargo, a mensagem que há que enviar àqueles que realmente educam é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença, a pusilanimidade e a falta de uma postura mais firme e aberta não são (e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal já constitui razão suficiente para ficar atento e pressionar os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites de situações socialmente degradantes, até averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E que, depois de tudo, se obrará em conseqüência.

Somente assim os “filhos da deficiência” terão a oportunidade para emancipar a si mesmos em uma sociedade “livre, justa e solidária”. Enquanto houver indivíduos vivendo sob o manto perverso da mais bárbara, injustificada e completa falta de oportunidades de trabalho, dignidade humana, liberdade e igualdade, não são para eles sequer meras possibilidades humanas. Por conseguinte, até que as “mães da deficiência” (as universidades) não tomem partido e lutem em favor de seus egressos, todo e qualquer discurso universitário sobre “qualidade de ensino”, cidadania e justiça não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

Em resumo, se entendemos como correto e pertinente o princípio de Kant de que “onde há um posso, há um devo”, já é hora de que as instituições de ensino, no que se refere ao problema do Exame de Ordem, deixem de uma vez por todas de habitar no primeiro círculo do inferno de Dante: o da indiferenzza, o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais cruel e perversa forma de castigo moral.

Revista Consultor Jurídico

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