Aumento do IOF – Insubsistência dos argumentos do governo federal perante o STF

Como se sabe, o Chefe do Poder Executivo, por meio dos Decretos ns. 6.339, de 3-1-2008 e 6.345, de 4-1-2008, elevou as alíquotas do IOF, de modo geral, em 0,38%, além de ter instituído um adicional de idêntico percentual em todas as operações abrangidas pelo IOF, incidindo inclusive sobre aquelas tributadas pela alíquota zero.

Duas Adins foram ajuizadas perante o STF: uma pelo DEM e outra pelo PSDB. Ambas as ações sustentaram o desvio de finalidade mediante a transformação de imposto regulatório em imposto arrecadatório, além de aduzirem afronta ao princípio da isonomia.

O governo, por meio da AGU, sustentou a regularidade da majoração do IOF com base § 1º do art. 153 da CF combinado com a aplicação da Lei nº 6.894/94, porque visa atender aos objetivos das “políticas fiscal, monetária e cambial do governo”.

Em que pese o fato de as iniciais das Adins não terem se aprofundado no exame da tese do desvio de finalidade, os argumentos do governo são inconsistentes como se verá.

Na verdade, a sigla IOF abriga quatro impostos diferentes, incidindo sobre as operações de crédito, de câmbio, de seguro e de títulos e valores mobiliários, que não estão submetidas ao princípio da legalidade tributária no que tange à alteração de alíquotas, por força do disposto no § 1º do art. 153 da CF: “É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”.

O IOF, a exemplo do II, do IE e do IPI, tem caráter regulatório. O legislador constituinte concedeu ao Estado o poder de regular a economia por via de instrumento tributário, na forma da lei (art. 174 da CF), única razão para excepcionar a majoração desses impostos do quase milenar princípio da legalidade tributária vigente no mundo inteiro.

Valer-se da faculdade prevista no § 1º do art. 153, não para regular os quatro setores da economia – mercados de cambio, de seguro, de créditos e de títulos e valores mobiliários – mas para promover o aumento da receita tributária, como se depreende da falta de motivação dos atos praticados, é incorrer no desvio de finalidade, caracterizador do ato de improbidade, nos termos do art. 11, I da Lei nº 8.429/92: “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência.”

Pergunta-se que fato polivalente e relevante aconteceu no dia 3-1-2008, ou poucos dias antes, aqui ou no exterior, que tivesse provocado efeitos conturbatórios nos quatro setores da economia, a exigir imediata intervenção governamental, por via de tributo regulatório? O único fato excepcional acontecido, ao que saibamos, foi a derrota do governo na questão da prorrogação da CPMF, que desde sua instituição vinha sendo prorrogada, periodicamente, pelo Congresso Nacional de forma automática. Excepcionalmente, no final de 2007 houve resistência do Poder Legislativo, que se posicionou ao lado do povo. Não há como deixar de associar esse fato ao aumento do IOF, por força do método histórico na interpretação de textos legislativos.

Pergunta-se, a extinção da CPMF desregulou as atividades econômicas objetos da tributação pelo IOF? Não!

Então, não faz o menor sentido o governo invocar a Lei nº 8.894, de 21-6-1894, por sinal, uma lei capenga, porque só fixa os limites máximos de tributação de 1,5% ao dia para as operações de crédito e as relativas a títulos e valores mobiliários e de 25% para as operações de câmbio. Nada dispõe quanto às operações de seguro, igualmente contempladas com o brutal aumento pelo pacote baixado pelo legislador palaciano. E mais, as condições para alteração de alíquotas para outras três finalidades – atender aos objetivos das “políticas monetárias, cambial e fiscal” – como está prescrito no parágrafo único do art. 5º da lei não têm o alcance pretendido pela maioria dos estudiosos da matéria, no sentido de que a expressão “objetivos da política fiscal” permitiria ajustar as receitas às despesas fixadas, isto é, promover o equilíbrio financeiro do orçamento público. Isso seria ignorar, não apenas, o alcance e o conteúdo do princípio da legalidade tributária, como também, desconhecer a sua própria origem, que data de 1215.

Ora, o equilíbrio orçamentário deve ser buscado pela redução ou otimização de despesas públicas como está, de forma lapidar, na Lei de Responsabilidade Fiscal. A receita pública só concorre para eventual desequilíbrio orçamentário na hipótese de a arrecadação prevista na Lei Orçamentária Anual não se efetivar em sua totalidade. Não é o caso sob análise em que a Lei Orçamentária Anual de 2008 sequer existe, porque ainda em discussão no Congresso Nacional a respectiva proposta enviada ao Parlamento em agosto de 2007. Outrossim, nas últimos anos, o superávit de receita tributária foi de tal ordem que o governo até antecipou o pagamento da dívida externa. Aliás, a mídia está anunciando uma arrecadação recorde já nos dois primeiros meses de 2008, superando as estimativas constantes na proposta orçamentária em discussão no Parlamento Nacional.

Mais ainda, a receita pública não se compõe apenas de receita tributária. Existem a receita creditícia, a receita originária e a receita patrimonial. Porque, então, apenas a receita tributária haveria de concorrer para o equilíbrio orçamentário? Ainda que assim fosse, é evidente que esse equilíbrio, por via tributária, só poderia ser buscado pela majoração de tributos de natureza fiscal e não impostos de natureza extrafiscal, não submetidos ao princípio da legalidade tributária, que outra coisa não representa senão a própria soberania popular. Desde quando do Poder Executivo representa o povo?

Afirmar que o Executivo pode majorar os impostos extrafiscais sempre que houver desequilíbrio das finanças públicas, motivado pela expansão de despesas, é o mesmo que destruir o Sistema Tributário, estruturado em torno do princípio da legalidade. Mais do que isso, seria destruir o Estado Democrático de Direito. Seria o mesmo que um penalista sustentar que o Executivo pode aumentar as penas cominadas para determinados tipos criminais em função da expansão do índice de criminalidade. O princípio do nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege fundamenta o Direito Penal, assim como o princípio do nullum tributum sine lege, nullum amplicatio vectigalium sine lege representa a espinha dorsal do Direito Tributário.

Vamos admitir, só para argumentar, que tudo o que foi dito até agora em nada abala a defesa do governo, que sustenta a constitucionalidade da majoração do IOF com base no § 1º do art. 153 da CF, combinado a aplicação da Lei nº 6.894/94, porque visou atender aos objetivos das “políticas fiscal, monetária e cambial do governo”.

Em que pese o bem elaborado trabalho do sempre brilhante e competente Advogado da União, meu particular amigo, Professor Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, a invocação da Lei nº 6.894/94 não tem o condão de afastar o desvio de finalidade.

Como é elementar em Direito Administrativo, o desvio de finalidade detecta-se pelo exame da motivação do ato. No caso sob estudo, onde estão as motivações para aumentar o IOF? Na cabeça do senhor Presidente da República? Nos textos dos Decretos retro mencionados não estão, e nem se descobrem.

Ora, o que não está no texto normativo não está no mundo jurídico. Se o governo federal pode invocar motivações que não estão nos textos, para tentar justificar o caráter regulatório dos aumentos tributários, segue-se que os autores das Adins, também, podem invocar as declarações do senhor Ministro da Fazenda no sentido que de que majorações visaram compensar a perda da arrecadação da CPMF, por ter sido frustrada a sua esperada prorrogação.

Era preciso que, antecedendo aos artigos 1º do Decreto nº 6.339/08 e do Decreto nº 6.345/08 constassem, pelo menos, quatro “considerandos” apontando os motivos para elevação do imposto em cada uma das quatro atividades econômicas abrangidas pelo IOF. E se, por ventura, essas motivações tivessem existência jurídica, e não a tem, o texto não bateria com o discurso. Não se poderia pregar uma coisa – compensar a perda da CPMF – e escrever outra coisa no texto – a necessidade de o governo ajustar os objetivos da política cambial, monetária e fiscal, a menos que a extinta CPFM estivesse atendendo a esses objetivos, o que nem é sustentado na defesa apresentada pelo governo. Por isso, não se sabe o que é pior: a omissão dos motivos, como de fato aconteceu, ou, a explicitação dos motivos, agora, apontados pela AGU, exatamente em sentido contrário ao declarado pelo porta voz do governo. É o inafastável conflito entre a Ética e o Direito.

Finalmente, não basta que as razões do aumento tivessem constado formalmente dos Decretos guerreados, e não constaram. É preciso que as motivações acaso invocadas tivessem sido devidamente fundamentadas e não apenas enunciadas abstratamente. Sem a subsunção do fato concreto à hipótese legal prevista não há que se cogitar de efeito jurídico. Em outras palavras, não há, nem pode haver incidência de preceito legal sem suporte fático.

E aqui voltamos à pergunta inicial: qual o fato relevante e polivalente ocorrido em 3-1-2008, ou pouco antes dessa data, aqui ou no exterior, que pudesse enquadrar esse fato na previsão da Lei nº 8.894/94? Como se sabe, a referida lei é genérica e abstrata e de eficácia limitada. Ela não é auto aplicável. É preciso que um Decreto do Executivo implemente sua aplicação, se e quando houver modificação na situação conjuntural nas atividades econômicas abrangidas pela tributação do IOF. Vale dizer, o Executivo só pode majorar as alíquotas do IOF por Decreto, quando for para atender os objetivos previstos na Lei 8.894/94. Fora das hipóteses previstas nessa lei, o aumento das alíquotas do IOF deverá ocorrer por meio de lei em sentido estrito.

Por qualquer ângulo que se examine essa matéria, não há como sustentar a constitucionalidade das majorações imotivadas do IOF, enfatizando-se que em relação às operações de seguro nem definição em abstrato dos limites e condições está presente na Lei nº 8.894/94. As motivações serodiamente trazidas à luz pelo governo, nos autos das Adins, agora, com a ajuda do corpo jurídico da AGU, assemelha-se à fábula de La Fontaine – o lobo e o cordeiro – em que o lobo lança mão dos mais absurdos argumentos para devorar o cordeiro. Neste caso, o devorado é o contribuinte do IOF. A discussão há de se ater ao que consta dos Decretos impugnados. Se for partir para discussão em campo aberto centenas de argumentos prós e contras poderão ser alinhados, o que não conduziria a lugar algum. A motivação deve anteceder a prática do ato, por isso ela deve constar da exposição de motivos do instrumento normativo. O governo não pode praticar um ato desmotivamente e, ao depois, encarregar o seu órgão técnico-jurídico de encontrar no ordenamento jurídico uma motivação válida, que justifique aquele ato praticado visando um fim diverso do previsto na regra de competência.

À luz da ordem jurídica vigente os Decretos hostilizados pelas Adins traduzem, sem sombra de dúvida, desvio de finalidade e, como tal, são inconstitucionais. É o que se depreende da conjugação dos três métodos de interpretação das normas: o lógico-sistemático, o teleológico e o histórico, não basta a ausência de motivação nos textos guerreados.

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Kiyoshi Harada
jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP

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