por Maria Fernanda Erdelyi e Aline Pinheiro
Para dois ministros do Supremo Tribunal Federal, as pesquisas com células-tronco embrionárias são constitucionais. A questão não foi definida nesta quarta-feira (5/3) porque o ministro Menezes Direito pediu vista da ação e interrompeu o julgamento. Mas o relator do processo, ministro Carlos Britto, e a ministra Ellen Gracie votaram a favor das pesquisas.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade em julgamento foi proposta há quase três anos pela Procuradoria-Geral da República e contesta o artigo 5º da Lei de Biossegurança — que regulamentou a pesquisa com as células-tronco embrionárias.
Em seu extenso e muito elogiado voto, lido no plenário por mais de uma hora, o ministro Carlos Britto entendeu que não há qualquer empecilho de ordem jurídica para o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas. A presidente do Supremo, ministra Ellen Gracie, adiantou seu voto e acompanhou Britto. O ministro Celso de Mello não chegou a votar, mas, ao elogiar o voto de Britto, deixou transparecer que é a favor das pesquisas.
Voz na tribuna
Durante cerca de cinco horas de julgamento, o STF foi bombardeado pelos mais diversos argumentos sobre o início da vida e sobre o destino dos embriões que já estão congelados. As orientações religiosas não apareceram ou, pelo menos, ficaram muito bem disfarçadas. Prevaleceram os argumentos científicos e jurídicos.
O relator, ministro Carlos Britto, lembrou que o julgamento é histórico. Além de julgar um assunto que interessa a toda sociedade — como ficou demonstrado na ocupação da sala do plenário do tribunal — foi neste caso que o STF fez uma audiência pública pela primeira vez. No dia 20 de abril do ano passado, especialistas e interessados nas pesquisas debateram o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas.
As duas correntes — a favor e contra as pesquisas — justificaram sua posição em favor da preservação da vida e dignidade humana. Na Corte, quem falou pela Procuradoria-Geral da República foi o atual titular do cargo, Antônio Fernando de Souza, ainda que a ação tenha sido proposta pelo seu antecessor, Cláudio Fonteles. O argumento principal da PGR é o de que o embrião é um ser humano em fase embrionária. A vida humana começa na fecundação, defendeu Souza.
Ele rebateu um dos argumentos usados por aqueles que defendem a pesquisa: a equivalência com a Lei dos Transplantes. Pela legislação, os órgãos humanos podem ser retirados quando é declarada a morte encefálica. Souza argumentou que esse critério de existência de vida humana não é único, já que o Ministério da Saúde usa outro critério para permitir o transplante de órgão de bebê anencéfalo. Neste caso, tem de ser diagnosticada parada cardíaca irreversível.
Além da PGR, também falou pela inconstitucionalidade das pesquisas o advogado Ives Gandra Martins, representando a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), amicus curiae na ADI. Ele reforçou os argumentos da PGR de que a vida começa na fecundação e afirmou que as pesquisas podem continuar, desde que não usem células-tronco embrionárias. “Há a possibilidade de fazer pesquisa sem transformar o zigoto em cobaia humana.” O advogado também explicou que não cabe ao Supremo decidir qual o destino dos embriões já congelados. A tarefa é do Superior Tribunal de Justiça, disse. Ao Supremo cabe apenas discutir o princípio constitucional da inviolabilidade da vida.
Os defensores das pesquisas falaram por meia hora a mais do que os contrários porque estavam em maior número. Ives Gandra Martins não se ressentiu. Para ele, as teses já foram apresentadas aos ministros por meio de memoriais. Ele afirmou que o direito a vida, assegurado na Constituição Federal, não permite relativização. “A vida começa no zigoto, a vida começa na concepção”, afirmou. “Neste país, destruir o ovo de uma tartaruga é um crime e destruir um embrião não seria?”
O advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, defendeu a legalidade das pesquisas. Ele apresentou ao Plenário uma nova problemática que surgiria se fosse reconhecido o direito à vida do embrião. Como o Estado garantiria esse Direito? Obrigaria as mulheres a gerarem todos os embriões congelados? “Reconhecer um Direito que o Estado não é capaz de fazer cumprir é a negativa do Estado.”
Toffoli chamou atenção para a maneira como a legislação do país penaliza o homicídio e o aborto defendendo que a lei não trata o feto como ser humano por não dar condenações equivalentes às duas situações. A pena para homicídio é de 6 a 20 anos de prisão. Para o aborto, de um a quatro anos. “Juridicamente, o feto é diferente de pessoas”, disse. E o embrião nem feto é, completou. “A AGU e presidente Lula esperam pela improcedência da ação.”
Pelo Congresso Nacional, falou o advogado Leonardo Mundim. Ele argumentou que proibir as pesquisas é fechar os olhos, pois estas continuarão acontecendo na clandestinidade. “Não é melhor fiscalizar?”, perguntou. Mundim lembrou o atraso científico que a proibição das pesquisas pode causar no Brasil. “Ou o Brasil produz ciência ou vai ter que importar os medicamentos feitos com células-tronco embrionárias.”
Mundim surgiu também com um argumento inquietante. A ovelha Dolly, primeiro clone animal do planeta, foi desenvolvida a partir de uma célula. Não foi fecundada. Para aqueles que dizem que a vida começa na fecundação, perguntou: “Podemos dizer que a Dolly não viveu?” Leonardo Mundim lembrou que 97% dos embriões ficam esquecidos nas clínicas de fertilização e têm como destino o descarte.
“Não podemos comparar um conjunto de células de uma pessoa que nos relacionamos e tem direitos garantidos pela Constituição. Não posso ver nessa lei uma afronta grave à Constituição”, afirmou o advogado Oscar Vilhena, que falou pela ONG Conectas, também amicus curiae na ação. Ele defendeu que a lei objetiva a maximização do direito à vida daqueles que perderam a expectativa. Apontou, também, que em nenhum momento a Constituição Federal brasileira fala sobre o direito à vida antes do nascimento.
O professor de Direito Constitucional Luís Roberto Barroso, que falou pelo Movimento em Prol da Vida, também amicus curiae, também defendeu as pesquisas. “Não estamos falando de embriões criados para a pesquisa. Estamos falando de embriões que já existem. Não se cria vida para se destruir com pesquisa.” Ele argumentou que negar as pesquisas sacrificaria a ciência e a esperança de salvação das pessoas por nada, já que não mudaria o destino dos embriões inviáveis e congelados. “Não há vida em potencial nesses embriões.”
Pesquisa viável
As mais de 70 páginas do voto do relator, ministro Carlos Britto, foram lidas no plenário por mais de uma hora. O voto foi elogiado pelos colegas. Britto fez uma extensa análise da legislação brasileira para concluir que não há nada que impeça o uso de células-tronco embrionárias. Além disso, citou de Tom Zé a Santo Agostinho, de Diogo Mainardi a Fernando Pessoa.
O ministro ressaltou que a Lei de Biossegruança protege o embrião ao criar condições para que ele seja usado nas pesquisas e ao proibir a sua comercialização. Lembrou que apenas o Código Civil trata dos direitos antes do nascimento. Pela lei civil brasileira, nascituro tem expectativa de diretos após a concepção, mas essa expectativa só se confirma quando o feto nasce com vida, momento em que adquire personalidade civil.
A Constituição Federal se cala sobre o início da vida, disse, mas expressa, em alguns pontos, o que entende sobre o assunto, por exemplo, quando usa a expressão “residente no Brasil”. “Ela não diz residente no útero materno ou em tubo de ensaio.” A Constituição também reserva os direitos dos brasileiros. O ministro explicou que, por brasileiros, se entendem os natos (que nasceram no Brasil) e os naturalizados (por manifesta vontade). O embrião não se enquadra em nenhum dos dois casos.
Ele analisou também a legislação infraconstitucional que diz, por exemplo, que se considera criança até os 12 anos de idade. A conta é feita a partir do primeiro dia de vida fora útero, explicou. Para o ministro, há três fases do ciclo biológico humano: embrião, feto e pessoa humana, etapas de uma mesma metamorfose. “A pessoa humana é o produto final dessa metamorfose. Ela não pode se antecipar”, disse. Carlos Britto considerou que usar o embrião congelado não é interromper o clico de vida de uma pessoa, já que este embrião, sem intervenção humana, não vai se tornar uma pessoa.
Depois da leitura do voto de Britto, o ministro Celso de Mello pediu a palavra para elogiar o colega. “O voto representa a aurora do novo tempo impregnado de esperança para aqueles revestidos de incertezas”, disse. Seus elogios ao entendimento de Britto indicam que, quando votar, deve acompanhar o colega e permitir o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas científicas.
Em seguida, era a vez de Menezes Direito votar, mas ele pediu vista. Seu pedido de vista era esperado. A presidente do STF, ministra Ellen Gracie, pediu então para adiantar seu voto. Diante disso, o ministro Marco Aurélio brincou: “Acaba de confirmar que nos deixará nos próximos dias”, disse ele sobre as notícias de que Ellen Gracie se aposentará ao deixar a presidência do Corte.
A ministra votou com o ministro Carlos Britto. “Embrião não se enquadra na condição de nascituro”, disse.
Desapontamento na corte
Antes mesmo de o julgamento ser interrompido, a sombra de um possível pedido de vista e o adiamento por tempo indeterminado da definição já rondava o Plenário do STF. Ainda que não haja, por enquanto, nada que impeça as pesquisas com as células embrionárias, a geneticista Mayana Zatz afirma que a indefinição vai adiar muitas pesquisas em razão das dúvidas que a ação suscita sobre sua legitimidade.
O autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo, hoje subprocurador-geral da República Claudio Fonteles, viu o pedido de vista com naturalidade. “O tema é complexo. É o maior julgamento do STF nos últimos anos. Um pedido de vista é perfeitamente compreensível.” Ele ressaltou que o julgamento não tem nada de religioso. “Nosso país está ensinando o mundo em debater quando começa a vida.”
Para o constitucionalista Luís Roberto Barroso, o pedido de vista não significa estratégia política para adiar a questão. “O Supremo tem repercussão política, mas é um tribunal jurídico.” A vista é, em sua opinião, uma maneira da corte se preparar, de forma mais intensa, para rebater argumentos jurídicos.
O advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, deixou o plenário do Supremo otimista. “Tivemos três votos institucionalmente importantes: o do relator, ministro, da presidente e do decano da corte”. O decano, ministro Celso de Mello, não chegou a votar, mas rasgou elogios ao voto do relator e deixou clara a posição a favor das pesquisas.
Votação concorrida
Para o julgamento desta quarta-feira (5/3), o Supremo Tribunal Federal articulou todo um esquema de segurança e estrutura para receber pessoas de todo país. Apenas no plenário do tribunal foram colocados 19 seguranças. Uma unidade móvel de atendimento médico também foi colocada à disposição na área externa do plenário. Nem no julgamento que acolheu a denúncia do suposto esquema de compra de votos no Congresso, o mensalão, o STF recebeu tantas pessoas.
A estimativa da segurança do Supremo é de que 900 pessoas foram ao tribunal para acompanhar o julgamento. A presidente da Corte, Ellen Gracie, decidiu abrir pequenas exceções para cadeirantes e seus acompanhantes, de entrar no Plenário sem a exigência de terno e gravata, necessários e indispensáveis no dia-a-dia do tribunal. O Plenário, com 375 lugares, ficou lotado. Próximo às duas portas de entrada para o julgamento, uma aglomeração de pessoas acompanhava a votação por meio de dois telões fixados na parede, dois metros acima do chão.
Do lado de fora do prédio, a imprensa se amontoou por inúmeras vezes para ouvir, gravar e questionar as vozes que defendiam e se opunham à liberação das pesquisas. Luís Roberto Barroso e Ives Gandra Martins, professores de Direito Constitucional; o subprocurador-geral da República Cláudio Fonteles, autor da ação no STF; e Mayana Zatz, geneticista e pesquisadora da USP, repetiram incansáveis suas teses em frente às câmeras de televisão. No segundo andar do prédio, foi montado um terceiro telão e uma pequena redação para acomodar a imprensa.
Revista Consultor Jurídico