Fé na Justiça – Não sou juíza do Supremo para expressar minhas crenças

[Entrevista da ministra Elle Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça ao jornalista Carlos Graieb publicada nas páginas amarelas da revista Veja desta semana (12/3)]

Ellen Gracie Northfleet encerra, no próximo dia 26, seu período de dois anos como presidente do Conselho Nacional de Justiça. Um mês mais tarde, ela também deixa a presidência do Supremo Tribunal Federal. Seu mandato à frente das duas instituições foi movimentado. Denúncias sobre nepotismo e a necessidade de ajustar os salários dos magistrados ao teto do funcionalismo público puseram o Judiciário sob crítica. O STF esteve no centro do noticiário ao acolher a denúncia contra os envolvidos no mensalão e também ao impor aos políticos a fidelidade partidária — o que causou atritos com o Legislativo. Na semana passada, outra causa polêmica entrou em pauta: aquela que vai decidir sobre a validade dos artigos da Lei de Biossegurança que autorizam a pesquisa científica com embriões humanos. O julgamento foi adiado, mas Ellen Gracie antecipou seu voto, rejeitando a ação de inconstitucionalidade. A ministra, de 60 anos, se define como pragmática. Nesta entrevista, mostra sua paixão pela “carpintaria administrativa” que permitirá à Justiça superar os seus gargalos e se modernizar.

Veja — Na semana passada, a senhora considerou que a lei que autoriza o uso de embriões humanos na pesquisa científica é constitucional. Qual a justificativa desse voto?

Ellen Gracie — Eu não enxerguei, nos artigos da Lei de Biossegurança que falam sobre embriões, nada que ferisse a ordem constitucional. Meu raciocínio parte do princípio de que nosso sistema jurídico protege duas entidades, o “nascituro” e a “pessoa”. Esses conceitos têm um significado muito preciso no direito. O nascituro, a criança que aguarda o nascimento no ventre da mãe, tem algumas expectativas de direito — no campo da herança, por exemplo. Já a pessoa, do ponto de vista do nosso ordenamento, só passa a existir no instante do nascimento com vida. É aí que surge a personalidade jurídica, segundo o nosso Código Civil. Ora, o embrião criado in vitro não é nascituro, pois não foi implantado no útero da mãe, nem pessoa, no sentido técnico. Ele não desfruta as garantias que se aplicam aos dois casos. Quanto ao princípio constitucional do direito à vida, eu creio que ele não é ferido no caso das pesquisas com embriões que seriam descartados ou permaneceriam congelados indefinidamente. Essas pesquisas, a médio ou a longo prazo, devem resultar em benefício para um grande número de pessoas. Elas também têm o objetivo de proteger a vida — uma vida íntegra e saudável para portadores de doenças. Sigo aqui uma linha de raciocínio que tem uma longa história no campo jurídico — aquela que, no conflito aparente entre normas, opta pelo bem maior, produzido com o menor sacrifício possível.

Veja — Em algum momento no curso desse julgamento a senhora se viu num dilema por causa de convicções religiosas?

Ellen Gracie — Eu sou católica, estudei em colégio de freiras. Mas não sou juíza do Supremo para expressar minhas crenças religiosas, e sim para analisar as leis à luz da Constituição e do restante do sistema jurídico.

Veja — Outro caso complexo sob análise do STF é o do mensalão. Procede a idéia de que o tribunal não tem estrutura para lidar com um processo desse tipo, que envolve uma extensa coleta de provas?

Ellen Gracie — A idéia de que o Supremo não atua bem em causas penais é falsa. Na verdade, somos um foro criminal muito célere. Atualmente, temos 81 processos penais nesta casa, 70% com menos de um ano de tramitação. O processo do mensalão vem transcorrendo de maneira ágil. Uma das principais razões para isso se deve ao fato de estarmos digitalizando todos os seus documentos. Já são mais de 70.000 páginas escaneadas. Imagine o que aconteceria se não tivéssemos feito isso. Cada vez que o advogado de um dos réus pedisse vista do processo, haveria uma delonga. E estamos falando de quarenta réus. Com a digitalização, todos os envolvidos podem ter acesso aos autos simultaneamente. Além disso, estamos conduzindo a fase de depoimentos de maneira rigorosa. Recebi vários pedidos de adiamento durante o mês de fevereiro, mas julguei que nenhum deles era procedente. Logo deveremos encerrar a oitiva dos réus.

Veja — Nas próximas fases do processo, haverá dezenas de testemunhas a ouvir. E os advogados de defesa certamente usarão todos os recursos disponíveis para retardar o momento da sentença. Teremos um festival de réus livrando-se do processo por causa da prescrição?

Ellen Gracie — Esse é um risco que faz parte do jogo. Podemos criticar nossas leis processuais pelo número exagerado de recursos à disposição dos advogados. Mas, enquanto as regras forem essas, não haverá o que fazer. Mais do que a faculdade, os advogados têm o dever de lutar pelo interesse de seus clientes usando todas as armas da lei. E o Poder Judiciário não pode saltar etapas em um julgamento nem agir de maneira que desrespeite o devido processo legal. Todos gostaríamos que o processo no Brasil fosse mais ágil e enxuto. Para que isso aconteça, é preciso reformar a legislação.

Veja — Quando a denúncia contra os “40 do mensalão” foi apreciada, alguns ministros sugeriram que a imprensa e a opinião pública punham “uma faca no pescoço do Supremo”. A atenção do público incomoda?

Ellen Gracie — O tribunal está acostumado com isso. Nós atuamos de portas abertas, o que é raríssimo: só acontece na Suíça, no México e no Brasil. Temos um canal de televisão que transmite os julgamentos, e até nossas sessões administrativas são franqueadas aos interessados. Isso deixa espantados juízes estrangeiros que vêm nos visitar. Se o tribunal não tem segredos, não há por que temer a atenção do público, mesmo nos momentos em que ela é mais aguda.

Veja — Na semana passada, o presidente Lula disse que seria muito bom se o Poder Judiciário “só metesse o nariz” nos seus próprios assuntos. O Judiciário brasileiro avança na seara dos outros poderes?

Ellen Gracie — O Judiciário é um poder inerte. Ele só age quando provocado pelas vias legais. Quando recebemos uma ação, contudo, temos de dar uma resposta — e isso às vezes significa estabelecer uma regra, ou ampliar o escopo de uma lei que já existe. Foi o que fizemos recentemente, por exemplo, ao aplicar às greves do serviço público as normas que valem no setor privado. Ou ao afirmar que o mandato de um parlamentar pertence ao seu partido. Seria mais confortável para nós não ter de lidar com esse tipo de dificuldade. Mas às vezes as questões se arrastam por anos no Congresso e acabam desaguando no Judiciário. Esse fenômeno da judicialização da política não acontece só no Brasil. É uma tendência em muitos lugares, um resultado da dificuldade de obter consenso sobre certos temas no plano do Legislativo. Outra fonte de tensão entre os poderes nasce da troca de opiniões em público. Alguns presidentes falam bastante, outros são mais quietos. O mesmo vale para juízes e parlamentares. Tudo bem — não se faz democracia com pensamento único. Enquanto a tensão entre os poderes for pontual, ela será saudável. É isso que acontece no Brasil.

Veja — O presidente Lula já nomeou sete ministros da corte. Notadamente, substituiu os últimos ministros indicados pelo regime militar. Isso significou uma mudança profunda no perfil do STF?

Ellen Gracie — Eu considero muito injusta essa divisão entre os nomeados pelo governo militar e os nomeados pelos governos posteriores. Mesmo durante a ditadura, a corte seguiu funcionando. Submetida a pressões, soube garantir os direitos do cidadão. Há um trabalho acadêmico interessante sobre o papel do Judiciário nas ditaduras na América Latina. Ele conclui que o número de vítimas da repressão no Brasil foi menor porque aqui os conflitos eram judicializados, ou seja, havia espaço para que eles fossem tratados no âmbito institucional. Recordemos o caso Herzog, em que um jornalista preso por razões políticas foi encontrado morto em sua cela. Em pleno período militar, foi um juiz federal de primeira instância que comandou o julgamento e condenou a União. O Brasil tem esse diferencial e deve valorizá-lo. Em 2008, comemoramos os 200 anos de Judiciário independente no Brasil. Com a vinda da família real portuguesa para cá, nossos tribunais deixaram de se submeter a Lisboa. Eu diria que é isto que estamos celebrando: um Judiciário isento e autônomo na pessoa dos seus juízes. Novos integrantes sempre virão ao Supremo, cada um com sua bagagem. Mas o que eu vejo é uma grande continuidade.

Veja — Pensando no futuro, qual o maior desafio para o Judiciário brasileiro?

Ellen Gracie — É o de se reestruturar. Já está provado que não adianta simplesmente aumentar o número de juízes e o número de varas. A longo prazo, a tática do “mais do mesmo” não torna o Judiciário nem mais ágil nem mais moderno. Só com a criação de novos procedimentos encontraremos uma saída para os nossos problemas. E estamos vencendo esse desafio. Às vezes, mexer só um pouquinho nas praxes dá um resultado imenso. Por exemplo, decidimos que a presidência do STF poderia descartar recursos com vícios formais. Desde que a medida foi tomada, descartamos 26.000 processos. Ao impedirmos que eles avançassem, poupamos tempo e mão-de-obra. Isso sempre é importante, se lembrarmos que 70% do tempo de um processo é gasto com burocracia. Outro exemplo de mudança estrutural, mais ambicioso, está na criação dos juizados especiais. Eles têm se mostrado muito eficientes. Sua taxa de congestionamento é de 33%, contra 75% da Justiça comum. Eu diria que um segundo desafio é levar a população a uma mudança de mentalidade. Num país de 186 milhões de habitantes, temos 34 milhões de causas pendentes. É uma litigiosidade altíssima. Por isso lançamos no ano passado uma campanha pelo uso de meios alternativos de solução de conflitos, como a conciliação e a mediação.

Veja — Recentemente foi criado o processo judicial eletrônico. Qual o impacto dessa medida?

Ellen Gracie — Enorme. Creio que esse projeto, batizado de Projudi, é o mais revolucionário na alçada do CNJ. Sem exagero, eu diria que ele tem potencial para mudar a face da Justiça brasileira, tão criticada pela lentidão. O sistema é bastante inteligente e flexível — podemos, por exemplo, reparar facilmente o software a distância. E alguns dos juizados eletrônicos estão em lugares de difícil acesso. Onde implantamos o sistema, o tempo médio entre o ajuizamento de uma ação e a sentença de primeiro grau tem ficado em 33 dias, o que é extraordinário.

Veja — A adoção das súmulas vinculantes, que obrigam as demais instâncias do Judiciário a seguir o entendimento do Supremo num determinado tema, foi saudada como um avanço, no sentido de diminuir o volume de processos nos tribunais. Mas em 2007 o Supremo só promulgou três súmulas. Ele foi tímido no uso da ferramenta?

Ellen Gracie — Tímido não, cauteloso. Analisamos oito temas no ano passado e concluímos que só em três deles o consenso era maduro o bastante para ser traduzido em súmula vinculante. Sabemos que a ferramenta é poderosa, mas o enunciado tem de ser muito claro e preciso para que os resultados sejam os melhores. Ao tornar-se obrigatória não apenas para as diversas instâncias do Judiciário, mas também para a administração pública, uma boa súmula pode de fato diminuir o número de processos. Na medida em que vincula o poder público a um certo entendimento em questões tributárias ou previdenciárias, por exemplo, ela diminuirá os casos em que o contribuinte sentirá necessidade de recorrer à Justiça. Gostaria de ressaltar que a súmula vinculante também aumenta a segurança jurídica. Acabam aquelas situações em que, num mesmo assunto, um cidadão recebe uma sentença e o seu vizinho, a sentença oposta.

Veja — No ano passado, uma reportagem de VEJA revelou que ministros do Supremo temiam ser alvo de escutas ilegais. Como esse episódio influiu na rotina da corte, e na sua em particular?

Ellen Gracie — Creio que alguns colegas tiveram maior cautela nas suas conversas telefônicas. E isso foi tudo. O mais importante é que o país está enfrentando essa questão no âmbito de uma CPI, cujo objetivo é dar segurança a todos os cidadãos, coibindo o uso das escutas indevidas, que a certa altura pareceu estar fora de controle. Como integrante do Supremo, reitero o óbvio sobre esse assunto: nenhuma prova obtida de forma ilícita tem valor em juízo.

Veja — Criado há cerca de três anos, o Conselho Nacional de Justiça logo se tornou uma espécie de arena para brigas administrativas. Foi para isso que ele foi criado?

Ellen Gracie — Num primeiro momento, juízes e funcionários que tinham alguma reclamação contra órgãos do Judiciário inundaram o CNJ com demandas e o transformaram, de fato, numa espécie de segunda instância administrativa. Quando percebemos essa tendência, passamos a combatê-la. Querelas individuais não estão mais sendo julgadas, só aquelas que têm alcance geral. A idéia de um conselho no Brasil foi uma tentativa de copiar o que já existia em muitos países da América Latina, bem como na Espanha e em Portugal. Ocorre que nesses lugares o Judiciário não é considerado um poder de estado. Ele é altamente vinculado ao Executivo ou ao Legislativo. Nesse contexto, um conselho tem o papel de aliviar a pressão dos outros poderes sobre a magistratura. No Brasil, o Judiciário é um poder autônomo. Por isso, creio que a melhor vocação do conselho é ser uma instância de reflexão e planejamento para o Judiciário. E é isso que ele está se tornando.

Veja — O Judiciário apareceu sob luz negativa nos últimos tempos por causa de casos de nepotismo e pela resistência de diversos magistrados e tribunais a enquadrar salários ao teto do funcionalismo. Esses problemas estão superados?

Ellen Gracie — Nesses dois assuntos, o Judiciário fez a sua parte. Houve investigação e houve depuração. Os casos de nepotismo correspondiam a apenas 1% de nossa força de trabalho. Eles foram identificados e expurgados. Ficou claro, além disso, que esse tipo de apadrinhamento não será mais aceito daqui por diante. Quanto aos altos salários, concluímos, ainda no ano passado, uma análise das fichas financeiras de todos aqueles cuja remuneração ultrapassava o teto. Isso feito, o CNJ encaminhou determinações a todos os tribunais para que se fizessem os cortes necessários. Tanto na questão do nepotismo quanto na dos salários, o Judiciário estabeleceu um precedente importante, que merece ser seguido pelo resto do funcionalismo.

Revista Consultor Jurídico

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