Reparação de danos – Crimes ambientais e a responsabilidade das empresas

por Maria Rachel Coelho Pereira

Diz a Constituição Federal em seu artigo 225, parágrafo 3º, que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. A Lei 9.605, nos artigos 2º e 3º, trata da responsabilidade penal das pessoas físicas e jurídicas nestas questões. O artigo 2º, em sua primeira parte, não nos traz nenhuma novidade, visto que estabelece a possibilidade do concurso de pessoas em crimes ambientais e adota a Teoria Monista ou Unitária do Código Penal, segundo a qual autores, co-autores e partícipes respondem todos pelo mesmo crime na medida de sua culpabilidade. O crime é o mesmo, mas a pena é individualizada.

A dúvida poderia surgir quanto à participação de menor importância e a cooperação dolosamente distinta, onde a lei foi omissa no artigo 2º. Em seu artigo 79, porém, a referida lei estabelece que aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal, o que, aliás, era absolutamente dispensável, já que o próprio Código Penal prevê isso em seu artigo 12. Portanto, nas duas situações recorreremos aos parágrafos 1º e 2º do artigo 29 do Código Penal, ou seja: se a participação for de menor importância a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço; e se algum concorrente quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.

A outra parte do artigo 2º da lei permite que diretores, administradores, membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica respondam por omissão nos crimes ambientais, criando o dever jurídico de agir, tornando a omissão penalmente relevante. Mas o legislador faz duas ressalvas: “que sabendo da conduta criminosa de outrem”, deixar de impedir a sua prática, “quando podia agir para evitá-la”. Então, eles têm de saber da existência do crime e também terem condições de agir para evitá-lo, impedindo a responsabilização penal objetiva.

Surge, então, a controvérsia, porque, muito embora a nossa Carta Magna tenha tratado da responsabilidade penal da pessoa jurídica em duas situações, artigos 173, parágrafo 5º, e 225, parágrafo 3º, crimes econômicos e ambientais respectivamente, a doutrina não é uníssona em reconhecer o caráter “penal” dessa responsabilização. E isso tem um motivo lógico: a responsabilidade penal da pessoa jurídica não se compatibiliza com adoção, pelo sistema brasileiro, de um Direito Penal do ius libertatis, no qual imperam os princípios da responsabilidade pessoal, subjetiva, da culpabilidade, da personalidade da pena etc. Na verdade, por muito tempo preponderou no Direito Penal brasileiro, à luz da origem no Direito Romano, a tese da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica. É da tradição do nosso Direito Penal a vigência da responsabilidade subjetiva (desde o Código Criminal do Império de 1830, exige-se dolo ou culpa para a existência da infração penal).

Em razão disso, surgiram no Brasil, quatro correntes a respeito do tema. Uma primeira corrente, adotada por Miguel Reale Junior, José Cretella Junior, Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Vicente Cernichiaro, interpreta o artigo 225, parágrafo 3º da Constituição Federal, da seguinte maneira: ela dispõe sobre as pessoas físicas quando se refere à “conduta”; e sobre as pessoas jurídicas quando se refere a “atividades”. Desta forma, obviamente, as pessoas físicas podem ser punidas penalmente, já as jurídicas podem sofrer sanções administrativas. O ministro Cernichiaro chega a defender que só se aplicam às pessoas jurídicas os efeitos penais da sentença condenatória proferida contra as pessoas físicas, mas que a Constituição Federal não permite que se inclua a pessoa jurídica no pólo passivo da ação penal.

Uma segunda corrente é adotada por Eugenio Raul Zaffaroni, René Ariel Dotti, Fernando da Costa Tourinho Filho, Francisco de Assis Toledo, Luiz Regis Prado, Roberto Delmanto, dentre outros. Esses ilustres doutrinadores defendem que as pessoas jurídicas não têm capacidade de conduta, não atuam com dolo e culpa e, do contrário, admitir-se-ia a responsabilidade objetiva; a pessoa jurídica não pode cometer crimes nem ser responsabilizada penalmente com base no brocardo latino societas delinquere non potest. É a adoção da Teoria da Ficção jurídica de Friedrich Karl von Savigny. Pessoas jurídicas são meras ficções legais, puras abstrações, desprovidas de consciência e vontade, logo, não podem praticar fatos típicos. Não agem com culpabilidade pois não são imputáveis, não têm potencial consciência da ilicitude e não se pode exigir delas conduta diversa.

Ainda usam como argumento o Princípio da Personalidade da Pena, o que seria absolutamente inútil uma pena para pessoa jurídica, tendo em vista suas funções: punitiva; preventiva geral, especial positiva ou negativa e ressocializadora. Luiz Regis Prado conclui que seria necessária uma Teoria do Crime própria para as pessoas jurídicas, como foi feito na França, onde houve uma adaptação da lei para crimes próprios e sanções próprias para as pessoas jurídicas.

Uma terceira corrente é a adotada pelos Penalistas Ambientalistas Sergio Salomão Shecaira, Paulo Affonso Leme Machado, Vladimir Passos de Freitas, Edis Milaré, Gilberto Passos, Damásio de Jesus, João Marcello de Araújo Júnior, entre outros. Segundo essa corrente, a Constituição prevê e admite a responsabilização da pessoa jurídica e a possibilidade disso é em decorrência da adoção da Teoria da Realidade ou da Personalidade Real, de Otto Gierke. Assim com também o fez Von Liszt, quando afirmou que quem pode firmar contratos, pode também firmá-los fraudulentamente; que a pessoa jurídica detém capacidade de ação para contratar assim como para descumprir, às vezes criminosamente, o contrato. A pessoa jurídica possui, desse modo, capacidade de atuação (societas delinquere potest). São entes reais e distintos das pessoas físicas que a integram, com capacidade própria e que podem praticar fatos típicos, além do Constituinte originário autorizar expressamente.

Finalmente, com a propriedade de quem é doutor no assunto, Luiz Flávio Gomes não segue a atual tendência no Brasil e no mundo de admitir a responsabilidade “penal” da pessoa jurídica. Para ele, como para outros doutrinadores citados no início desse trabalho, o Direito Penal Brasileiro do ius libertatis é inequivocamente incompatível com esse tipo de responsabilidade. Afirma que a única interpretação possível do artigo 3º da Lei 9.605/1998 consiste em admitir que a responsabilidade da pessoa jurídica não é propriamente “penal” no sentido estrito da palavra. É mais uma hipótese, isso sim, de Direito Judicial Sancionador, que se caracteriza justamente pelo fato de se exigir a intervenção judicial para a imposição da sanção prevista em lei. Ainda acrescenta: “Não se trata, destarte, nem de Direito Penal, nem de Direito Administrativo. Não é tema do Direito Penal do ius libertati porque, dentre as sanções cominadas para a pessoa jurídica, obviamente, não consta a privação da liberdade. Não é assunto do Direito Administrativo porque não é a autoridade administrativa a competente para impor tais sanções. Cabe ao juiz fazer isso, no seio de um processo penal, com observância de todas as garantias constitucionais e legais pertinentes. Conclusão: é matéria do Direito Judicial Sancionador”.

Outrossim, independentemente de ser ou não “penal”, a natureza específica da responsabilidade da pessoa jurídica prevista na lei ambiental emerge como absolutamente inevitável a incidência da teoria da dupla imputação (ou da imputação paralela), leia-se, jamais pode a pessoa jurídica isoladamente aparecer no pólo passivo da ação penal. Sempre será necessário descobrir quem dentro da empresa praticou o ato criminoso em seu nome e em seu benefício. Desse modo, devem ser processadas, obrigatoriamente, a pessoa que praticou o crime e a pessoa jurídica (quando esta tenha sido beneficiada com o ato).

Embora o Supremo Tribunal Federal não tenha ainda se manifestado sobre a questão, é esta a tese referendada pelo Superior Tribunal de Justiça, como pode-se perceber pelo julgamento do RHC 19.119/MG. Luiz Flavio Gomes acrescenta que “Pode-se afirmar que também houve plasmação e consagração na Lei 9.605/1998 (art. 3º) da chamada teoria da responsabilidade penal por ricochete (de empréstimo, subseqüente ou por procuração), ou seja, a responsabilidade “penal” da pessoa jurídica depende da prática de um fato punível por alguma pessoa física, que atua em seu nome e em seu benefício. É uma responsabilidade por ricochete, porque prioritariamente deve ser incriminada a pessoa física. Por reflexo, a pessoa jurídica acaba também sendo processada, desde que preenchidos os requisitos legais (atuação em nome da pessoa jurídica, benefício da pessoa jurídica etc.). Quando não se constata nenhum benefício para a pessoa jurídica, não há que se falar em processo contra ela”.

Pelo exposto, nota-se que no atual sistema penal brasileiro a pessoa jurídica pode sim ser responsabilizada pelo cometimento de crimes ambientais (societas delinquere potest). Todavia, essa responsabilização não terá caráter precipuamente penal. Ao tratarmos da responsabilidade da Pessoa Jurídica pela prática desses crimes, seguramente estar-se-á diante do Direito Judicial Sancionador, o qual impõe sanções sem jamais admitir a pena privativa de liberdade, uma vez que esta só é compatível com as pessoas físicas. Às pessoas jurídicas devem ser aplicadas sanções condizentes com sua natureza.

Revista Consultor Jurídico

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