Processo virtual – Mal do Poder Judiciário está no atraso em julgar

por Alexandre Vidigal de Oliveira

Nem tudo é virtuoso no processo virtual. Enquanto solução para otimizar a tramitação do processo, que, segundo estudos, consome cerca de 70% do seu tempo, eliminando fases arcaicas da burocracia processual como juntadas, termos, remessas, formação dos autos etc, e enquanto instrumento de padronização e celeridade da realização e comunicação dos atos processuais, grande e indiscutível é sua virtude.

Mas vale a reflexão: o mal maior do Judiciário não está na morosidade do tramitar, e sim no atraso em se julgar. 43 milhões de processos aguardam julgamento em todo país, segundo dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (fevereiro/2008). O processo em fase de julgamento não está “tramitando”; apenas aguarda ser julgado. É como se 1/5 da população brasileira estivesse na fila esperando uma decisão judicial. Nesses casos, a burocracia processual, norte a ser enfrentado pelo processo virtual/digital, nada tem de relevante, pois em grande parte está superada. Por isso, solucionados os entraves que dispersam o processo no tempo, com a pretendida agilidade da virtualização, nem assim estarão solucionados os obstáculos que impedem uma célere prestação jurisdicional, ultimada pela prática do ato judicial: o decidir.

O processo, mesmo eletrônico/virtual, não dispensa a manifestação real. A ação instrumental da máquina não substitui o pensar, o compreender, o criar, o solucionar. A experiência já obtida com processos eletrônicos/virtuais solucionados rapidamente, mesmo aos milhares, mas de regra relacionados a demandas de massa e seus processos repetitivos, com idênticos fatos e argumentos jurídicos, amplamente debatidos em todas as instâncias, julgados em “bloco” com um simples apertar de tecla, identificam-se apenas em parte, pequena parte, com os mais de 43 milhões de processos que aguardam julgamento.

Essa experiência não pode servir de parâmetro para se reconhecer o êxito da integral virtualização judicial, e que se quer estender a todos os processos judiciais, cíveis ou criminais. O mesmo se diga com relação ao julgamento de um ou outro caso isolado e bem sucedido de processo eletrônico/virtual solucionado celeremente nos Tribunais de segundo grau, nos Tribunais Superiores e mesmo no Supremo Tribunal Federal. Nas experiências realizadas, a virtude da célere e definitiva prestação jurisdicional deu-se não só pela rápida tramitação eletrônica do processo mas também, e principalmente, pela própria prioridade que se definiu para os respectivos julgamentos, até porque traziam em si a desejada marca da inovação e do pioneirismo tecnológico.

O fato é que o maior gargalo da morosidade do Judiciário não está na tramitação dos processos. Está, sim, na incapacidade humana em atender à descomunal proporção do número de processos por juiz, que impede se dar vazão ao grande número de ações que, desde o primeiro grau até o Supremo Tribunal Federal, aguardam julgamento, mesmo estando os magistrados brasileiros entre os mais produtivos do mundo, segundo estudos do Bird (dezembro/2007). Assim, sem uma adequada proporcionalidade entre o número de juízes e a efetiva demanda judicial, em todos os graus de jurisdição, como previsto na Constituição (artigo 93, XIII), será difícil conhecer um mundo real de celeridade na prestação jurisdicional.

E se a morosidade realmente incomoda, o processo eletrônico/virtual é que poderá vir a ser mais um elemento complicador aos desafios de um Judiciário rápido e eficiente. Sem a necessidade de se avançar em questões como o “apagão informático” ou a “lentidão do sistema”, não tão eventuais, que nem mesmo as instituições financeiras, com seu poderio econômico, conseguem evitar, ou em questões sobre os danos à saúde que a exposição excessiva à tela do computador e ao teclado podem acarretar, há questões outras que podem comprometer o esperado sucesso da ampla virtualização judicial, e que dizem respeito às condicionantes estruturais do cérebro humano na tarefa criadora do pensar.

Quando essa tarefa depende de prévia obtenção de informações, o meio em que elas são produzidas torna-se tanto mais relevante quanto sua capacidade em contribuir para o discernimento e seletividade do conteúdo, com seu aproveitamento ou descarte mais célere e eficiente. E esse meio está relacionado aos recursos que a mente humana se utiliza para aproveitar as informações. O ver e o ler, por exemplo, são recursos distintos. Nem tudo que se vê é lido: o analfabeto vê, mas não lê. Nem tudo que é lido é visto: o cego lê, mas não vê. Há, assim, uma diferença enorme entre o ver e o ler. O sentido da visão é o que o homem mais se utiliza, e o faz mais vendo e menos lendo. O ver é constante, o ler é eventual. O ver, mesmo constante, não gera exaustão. Já o ler, longe da capacidade do quanto podemos ver, é naturalmente fatigante. O ver, assim, facilita a eficiência da assimilação mental da informação.

Os autos processuais nada mais são do que um meio de armazenamento de informações, predominantemente escritas e disponíveis para serem recuperadas pelos protagonistas do processo: os advogados e o Ministério Público, em suas defesas, e o juiz, em suas decisões. E aí está uma distinção relevantíssima do processo com papéis — “autos físicos” — em relação ao processo virtualizado/digitalizado — “autos eletrônicos” — enquanto instrumentos hábeis a melhor proporcionar a assimilação e seletividade da informação desejada.

Nos “autos físicos” é possível a percepção do conjunto, do todo; não é preciso ler peça por peça para se chegar aonde se quer. E aonde se quer chegar, com o manuseio de peças obtém-se informação célere, como placas a sinalizarem os caminhos. A gama de subinformações disponíveis, pelas mais distintas características das folhas de papel, em razão da cor, da gramatura, da formatação, do tamanho, do seu estado de conservação, da sua posição nos autos etc, facilita o processo de assimilação mental do todo e a seletividade do conteúdo da informação desejada. Vai-se de peça a peça, de monte em monte, de frente para trás, de trás para frente com uma agilidade e desenvoltura quase que involuntária, automática, até mesmo intuitiva, e com uma rapidez de fazer inveja aos mais avançados recursos informáticos, frise-se, apenas vendo, como um esquema neurológico previamente formatado para uma interação cognitiva com aquele ambiente.

Já nos “autos eletrônicos” não. As peças processuais virtualizadas, desmaterializadas e padronizadas que são, em meio eletrônico, sem as distinções físicas do papel, onde as páginas, em imagens, aparecem isoladas do todo, impossibilitam selecionar a informação desejada apenas vendo-se. Tudo é, aparentemente igual. A falta de subinformações como as oferecidas pelo papel — cores, tamanhos, gramaturas, estado de conservação — afunila as opções do cérebro em distinguir o que é o quê, exigindo como atalho o recurso da leitura. Para se identificar uma informação interessada, de regra, é necessário ler; apenas o ver já não leva a lugar algum. E a leitura constante, permanente, como única fonte de informação, do acesso e do conteúdo, fundindo sinalização e caminho em uma coisa só, é tarefa exaustiva a comprometer, no dia-a-dia de labuta, a disposição mental do corpo para produzir.

Não se pode esquecer que o jornal, a revista e mesmo o livro estão disponíveis, há anos, em meio eletrônico. Nem por isso sepultaram-se suas publicações em papel, certamente pela vantagem funcional de consulta que o meio físico oferece para a linguagem escrita. Há profissões que já se utilizam quase que exclusivamente dos recursos do computador: engenharia, arquitetura e medicina são exemplos. Nessas, porém, o que predomina é o uso da imagem e não da escrita; é a necessidade do ver e não do ler.

As resistências ao amplo alcance que se quer imprimir ao processo eletrônico não se traduzem apenas em se querer ou não aceitar suas inovações. E também não se trata somente de resistência cultural ao novo ou de oposição a “quebra de paradigmas”. O homem é dotado de esquemas de cognição previamente programados, alguns instintivos, outros desenvolvidos, e as resistências ao processo eletrônico podem estar associadas, isso sim, à interferência em todo um complexo sistema mental de cognição e que a neurociência, a neurolingüística e a psicologia cognitiva podem auxiliar a melhor compreendê-las.

O forte apelo ecológico, a redução de espaços físicos e a economia de gastos com pessoal, papel, tintas de impressão e outros materiais, são virtudes do processo eletrônico que não podem ser desprezadas. Mas não podem também ultrapassar os limites daqueles específicos objetivos e resultados. Tais conquistas, ainda que associadas ao rápido tramitar, mas sem o correspondente rápido julgar, seguramente poderão aumentar ainda mais a triste e indesejável sensação de morosidade.

A adoção de um processo misto ou híbrido, tal seja, virtual/eletrônico na burocracia processual — com os atos cartorários praticados e registrados apenas naquele ambiente — e material ou físico exclusivamente na formação de autos a reunirem as peças produzidas pelo juiz, Ministério Público, advogados e partes, associado a uma política de adequação da proporcionalidade do número de juízes à efetiva demanda judicial, como manda a Constituição, talvez pudesse contribuir no desejado caminho de enfrentamento da real morosidade jurisdicional.

Revista Consultor Jurídico

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