Vácuo legislativo – Era mesmo preciso suspender a Lei de Imprensa?

por Helder B. Paulo de Oliveira

Aos 27 de fevereiro último, em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou por maioria de votos a liminar suspensiva de 20 artigos da Lei de Imprensa, determinando, ainda, que os processos então movidos com base na referida legislação seguissem os código civil e penal, no que cabível, até o julgamento final de mérito que deverá ocorrer em até seis meses.

Nosso objetivo nesse texto é procurar esclarecer de que modo a suspensão de vigência dos artigos 20, 21, 22 e 23 da Lei de Imprensa repercutirá justamente nas mencionadas áreas do direito, mormente na esfera penal.

A princípio, em juízo apressado, parece-nos que suspender parte de uma legislação não é a melhor técnica pelo fato de que a outra parte continua em vigor. Mandou-se aplicar os códigos civil e penal para os processos em andamento, mas e quanto ao procedimento para julgamento dos crimes? Segue-se o 519 do CPP? Sim, é certo que a quantidade de pena aplicada em abstrato para os crimes contra a honra admite a incidência da lei 9.099/95, mas não em todas as situações, assim, por exemplo, em caso de calúnia contra o presidente da República, ou chefe de estado estrangeiro e ainda, contra funcionário público no exercício de suas funções (Código Penal artigo 141, incisos I e II).

Não sendo hipótese de incidir a Lei 9.099/95 ou porque o réu já se beneficiara com a transação penal no qüinqüênio anterior (artigo 76, inciso II da lei 9.099/95), ou pelo motivo das circunstâncias do artigo 89 não favorecem a proposta de suspensão do processo, ou mesmo pelas causas de aumento da pena já citadas, convertido o rito em ordinário, segue-se, o Código de Processo Penal já referido, ou os artigos 40 e seguintes da Lei 5.250/67, ainda em vigor, e com aplicação especial? Entretanto, de que maneira seguir-se esse rito, se os crimes contra a honra ali previstos perderam temporariamente a vigência?

A resposta, ao que parece, será a mesma do conflito entre as Leis 10.409/02 e 6.368/76. Sabe-se que a primeira previu procedimento próprio, mas no que tange aos crimes e penas, a segunda manteve-se vigente e eficaz. Para o que restou da Lei de Imprensa deve-se aplicar o mesmo raciocínio, porque é o mais simples, “data venia” e porque a mencionada legislação cuida não apenas de procedimento processual penal, mas de prescrição (artigo 41), de decadência do direito de queixa e representação, de defesa prévia com prazo de cinco dias, dentre outras especificidades, além de que outros crimes mencionados na Lei 5.250/67 ainda estão em vigor (como o artigo 14, por exemplo) situações às quais apenas uma novel legislação poderá sanar.

A propósito já era o ensinamento de Mirabete anotando o artigo 519 do Código de Processo:

“Refere-se o disposto apenas aos crimes de competência do juiz singular, do processo comum, já que há leis processuais especiais a respeito de crimes contra a honra previstos na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), no Código Penal Militar, no Código Eleitoral, na lei de Segurança Nacional e no Código Brasileiro de Telecomunicações. Além disso, nos processos originários dos Tribunais há rito processual próprio”. [Código de Processo Penal Interpretado, 5ª edição, 1997, Atlas, página 658]

No que tange à parte de reparação civil, a qual se escreve aqui somente “en passant”, o Código de 1916 já previa a indenização por calúnia, injúria e difamação, no artigo 1.547, cuja redação foi quase que repetida pelo artigo 953 atual. Claro que um prazo decadencial inferior para ajuizar-se a reparatória, bem como limites de indenização, prazos exíguos para se contestar e exigência de depósito recursal, há muito eram temas polêmicos na jurisprudência e foram, dessa feita, oportunamente suspensos.

Volvamos, contudo, à matéria criminal. Segundo se tem notícia, os fundamentos para suspensão dos artigos que cuidavam dos crimes contra a honra cometidos pela imprensa foram que as penas ali fixadas eram mais severas que as do Código Penal e em algumas situações impedia-se provasse a veracidade das acusações, ou seja, impossibilitava-se, em algumas hipóteses, a exceptio veritatis.

A título ilustrativo, na Lei de Imprensa a calúnia era punida na forma simples com pena de detenção de seis meses a três anos e multa de um a 20 salários mínimos da região (artigo 20, cabeça). No Código Penal, detenção de seis meses a dois anos, e multa (artigo 138). A difamação punia-se com detenção de três a dezoito meses e multa de dois a dez salários mínimos da região. No Código Penal, com detenção de três meses a um ano e multa. A injúria, com detenção de um mês a um ano ou multa de um a dez salários mínimos da região. No Código Penal, detenção de um a seis meses, ou multa.

Claro que os crimes contra a honra perpetrados pela imprensa chegam ao conhecimento de número de indivíduos infinitamente superior àquela calúnia entre dois condôminos e, se à consumação da injúria basta a ofensa chegue ao conhecimento do ofendido, a calúnia e a difamação exigem terceiros saibam das ofensas. Assim, a maior gravidade das sanções impostas na Lei de Imprensa justificar-se-ia, ao menos para a calúnia e para a difamação, devido ao alcance do número de terceiros. Isso sem contar que a Lei 5.250/67 é posterior à parte especial do Código Penal. Assim, haveria uma relação de sucessão de leis no tempo e na matéria: a Lei de Imprensa somente é de se aplicar aos crimes perpetrados pela imprensa após sua entrada em vigor e é especial em relação ao Código Penal devido ao número de terceiros que a matéria jornalística alcança.(“lex specialis derogat legi generali”). Portanto, parece-nos desproporcional punir-se com igual sanção a calúnia que chegou ao conhecimento do edifício “Anhumas” com a mesma pena daquela que foi comentada por pelo menos 500 mil leitores.

Por isso, não concordamos, “data maxima venia”, com os que advogam pela desnecessidade de uma Lei de Imprensa, porque em outros países tal legislação não há. Dizem ser de Aristóteles a parêmia “o direito não é igual ao fogo, que queima igual no Egito e na Pérsia”. Não é porque lá não há, que aqui não deve haver. Mas, é certo que uma nova Lei de Imprensa faz-se necessária, posto que deve abranger os periódicos on line e mesmo os inumeráveis blogs que assolam o mundo virtual.

Mas, isso é assunto para outro dia. No que tange aos crimes contra a honra perpetrados por militares aplica-se a legislação castrense. E em época de eleição, se determinada jornalista calunia, em tese, um deputado federal? As penas do Código Eleitoral para a calúnia, difamação e injúria (Lei 4.737/65), artigos 324, 325 e 326, são idênticas as do Código Penal. Assim, em princípio, incidem as normas eleitoreiras, pela razão de serem especiais frente ao Código Penal.

Finalmente, um tema, contudo, deve causar maiores questionamentos. A exceção de verdade. Constitui-se em procedimento pelo qual o denunciado (a) ou querelado (a) procura mostrar que a acusação de crime é verdadeira (no caso da calúnia) ou que constitui verdade a imputação do fato ofensivo à reputação de funcionário público no exercício de sua função (na difamação), não se admitindo na injúria, mesmo porque nessa última a honra protegida é subjetiva.

A decisão do plenário suspendeu a proibição de exceção da verdade para acusação de calúnia contra o presidente da República, do Senado, da Câmara, ministros de Estado, chefes de Estado ou governo estrangeiro, ou seus representantes diplomáticos (artigo 20 § 3 da Lei 5.250/67) e para o delito de difamação contra funcionário público no exercício de suas funções, ou órgão, entidade que exerça funções de autoridade pública, ou, se o ofendido permite prova (artigo 21 §§ 1º alíneas a e b da Lei 5.250/67).

A exceção da verdade não era exclusividade da Lei de Imprensa. Já a Consolidação das Leis Penais de 1932 impedia-a em caso de ofensa contra o presidente da República publicada pela imprensa, ou em desfavor de chefe de Estado Estrangeiro e os Código Penal e Eleitoral ainda prevêem aquelas proibições.

A razão de ser daqueles impedimentos é bem explicada por Magalhães Noronha quando doutrina: “A segunda ressalva ocorre quando indigitado for o Presidente da República ou o chefe de Governo Estrangeiro, abrangendo esta expressão não apenas o soberano ou presidente, mas também o primeiro ministro. Na hipótese inicial, compreende-se não deva ficar o chefe da nação sujeito a acusações de qualquer um, quando a magnitude de suas funções impõe que só responda perante o Senado ou o Supremo Tribunal Federal (CF artigo 86). No segundo caso, é dispensável encarecer a delicadeza do fato de se provar um crime praticado por chefe de nação estrangeira, e desnecessário advertir das conseqüências que isso poderia ter nas relações internacionais”. [Direito Penal, atualizado por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, 2001,32ª edição, página 126]

Assim, suspensos os impedimentos da exceção de verdade para uma calúnia perpetrada contra o presidente Lula, “verbi gratia”, o jornalista agora poderá ajuizar a exceptio veritatis. Poderá mesmo, se o que foi suspenso na Lei de Imprensa é repetido no Código Penal? Ou houve suspensão das duas normas? Também do disposto no artigo 324, § 2º, inciso II do Código Eleitoral? Será que apenas o jornalista poderá opor exceção de verdade contra o presidente da República, mas o cidadão, digamos, comum, seja ele senador, deputado, eu ou você, não? Ou liberou geral? Quer dizer: com a suspensão dos artigos 20, 21, 22 e 23 da Lei de Imprensa suspenderam-se igualmente os artigos já mencionados do Código Eleitoral e 138 § 3º, inciso II c/c 139 parágrafo único do Código Penal? Mais adiante, qual jurisdição será competente para julgar exceção de verdade de calúnia contra o presidente Hugo Chavez, sabendo-se que em caso de prerrogativa de foro a exceção avoca a competência? (artigos 523 e 85 do Código de Processo Penal).

Da forma que está o jornalista que caluniar o presidente da República pode provar que a acusação é verdadeira. Competirá ao Supremo julgar a exceção de verdade. Se a exceção for improcedente, o jornalista é de ser punido não com a Lei de Imprensa (que está suspensa na parte que comina crimes contra a honra), nem com o Código Penal, mas com a legislação específica da lei de Segurança Nacional, artigo 26 da Lei 7.170/83 — que ao que se saiba ainda está em vigor- ou seja, “a emenda saiu pior que o soneto”.

Ao se pensar que a suspensão do impedimento da exceção de verdade vigora não somente para os profissionais de imprensa, mas, ao reverso, em nome do princípio da igualdade vale para todos, toda e qualquer calúnia contra o presidente da República — que dirá daquela dita em jogo de futebol com “animus caluniandi” — poderá originar exceção de verdade com julgamento afeito ao plenário do Supremo Tribunal Federal, já tão carente de processos.

Assim, permitir-se esse vácuo legislativo para as sanções penais para uma profissão que já alguns alçaram ao quarto poder não nos pareceu a melhor saída, com o maior dos acatamentos, e mostrou-se muito mais ranço da época em que editou-se o diploma legislativo em apreço do que descumprimento de algum preceito fundamental.

Para uma atividade tão importante é necessária sim uma legislação especial e não ficarmos ancorados em aversões temporais, porque assim fosse toda legislação do período militar descumpriria algum preceito fundamental que a Constituição de 1988 nos legou em escala verdadeiramente democrática e expansiva.

Revista Consultor Jurídico

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