Crimes de imprensa – Por que pensar que a Lei 5.250/67 é inconstitucional?

por Ronaldo Batista Pinto

Alvo de intenso debate cercou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, da lavra de um de seus mais ilustres ministros, Carlos Britto, que em caráter liminar suspendeu os efeitos de vários dispositivos da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), atendendo a uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130-DF), proposta pelo PDT. Tal decisão foi levada à apreciação do pleno da mais alta Corte do país, no dia 27 de fevereiro último, que, praticamente, a manteve, salvo uma ou outra alteração.

Causa, de plano, enorme estranheza que se vá agora suscitar a inconstitucionalidade da lei, passados mais de 40 anos de sua vigência. Poderá se argumentar que, à época de sua entrada em vigor, o ambiente não era propício para esse tipo de iniciativa. E, de fato, não era. Ocorre que o país respira, há quase 20 anos, ares de democracia e, apesar disso, se esperou tanto tempo para se invocar esse tipo de argumentação. Difícil se deixar de identificar certo oportunismo na propositura da ADPF, sobretudo quando seu autor é um partido político.

Invocou-se, como fundamento da decisão, o princípio constitucional que assegura a liberdade de expressão e informação (artigo 220 da CF). Esse um dos aspectos mais interessantes da decisão. Primeiro, que se tomou como absoluto o princípio constitucional, quando se sabe que, mesmo princípios constitucionais, devem ser interpretados em harmonia com outros princípios, do mesmo status, como, por exemplo, aquele que garante a inviolabilidade da honra, intimidade, vida privada e imagem da pessoa (artigo 5°, X, da Constituição). Segundo, porque se fez tabula rasa (mesmo se tratando de uma decisão liminar, portanto precária e sujeita a alteração), do grande debate que se trava a respeito do assunto e que coloca, de um lado, a liberdade de imprensa e, de outro, o direito à honra da pessoa.

Trata-se de preocupação que não passou despercebida pelo professor Fritz Ossenbühl, citado em trabalho de Manuel da Costa Andrade: “Numa inextrincável mistura de afirmações de facto e de juízos de valor ele vê a sua vida, a sua família, as suas atitudes interiores dissecadas perante a nação. No fim ele estará civicamente morto, vítima de assassinato da honra. Mesmo quando essas conseqüências não são atingidas, a verdade é que a imprensa moderna pode figurar como a continuadora directa da tortura medieval. Em qualquer dos casos é irrecusável o seu efeito-de-pelourinho” [1].

Mais à frente, forte ainda na doutrina alemã de H. Roeder, o professor português ressalta que “hoje parece perfeitamente ocioso gastar uma só palavra para pôr em evidência que a divulgação da verdade é em si mesma altamente valiosa e culturalmente estimulante; mas só em nome de uma compreensão arbitrária, para não dizer de uma monstruosidade jurídica se poderia tomar tal direito como ilimitado”. Resta evidente, assim, que, ao contrário do que pareceu à decisão do ministro, a liberdade de imprensa não importa em um direito absoluto, mas, antes, deve se compatibilizar com outros direitos também constitucionalmente tutelados, ponderando-se os bens e valores em jogo [2].

Interessante, para se dizer o mínimo, o argumento utilizado na inicial da ADPF, segundo o qual a lei seria “incompatível com os tempos democráticos”. Ora, a maioria dos países do mundo possui, como um dos pilares da democracia, a liberdade de imprensa. Nem poderia ser diferente. Mas todos eles contam com legislação que visa regulamentar essa atividade. A Lei de Imprensa portuguesa, para tomarmos um exemplo, em seu artigo. 1°, garante a liberdade de imprensa, para, logo em seguida, em seu artigo 3°, afirmar que esse direito, porém, tem como limite a garantia dos direitos ao “bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos”.

A se conferir, ainda, a observação lançada no voto do ministro Menezes Direito, segundo o qual os países desenvolvidos não prevêem qualquer legislação tratando de crimes de imprensa. Conforme já ressaltado, em Portugal vigora a Lei 2/99 de 13 de Janeiro. Na Espanha, a matéria vem tratada pelo Real-Decreto-Ley 24/1977, de 1° de abril e pela Ley Orgânica 2/1977, de 19 de junho (há, hoje, um “Proyecto de Ley del Estatuto del Periodista Profesional”, sendo discutido no Congresso espanhol). Nos Estados Unidos é certo que em 1791 foi promovida a 1ª. Emenda à Constituição de 1787, pela qual “o Congresso não aprovará nenhuma lei que viole a liberdade de expressão e de imprensa”.

De se ver, porém, que “os legislativos estaduais e federais aprovaram leis que isentam de proteção alguns tipos de expressão, tais como as de sedição, ameaças à segurança pública e à defesa nacional, pornografia, certas mensagens comerciais, difamação, calúnia e invasão de privacidade”, segundo informação obtida no sítio da “Sociedade Interamericana de Imprensa”. Este órgão informa, ainda, que no Canadá a matéria vem tratada conforme “o Código Penal e as leis Federais tratam da difamação e das leis relativas à literatura do ódio, à obscenidade e à pornografia infantil. Esse código contém também disposições referentes às proibições de publicação, incluindo as proibições de revelar a identidade dos querelantes em assuntos relativos a agressão sexual”.

Outro mito que precisa ser, de vez, exorcizado, é que a lei seria arbitrária, contendo “nítido viés autoritário”, para utilizar a expressão do ministro Carlos Britto. Trata-se de mais uma daquelas expressões que, tantas vezes repetidas, acabam por cair no subconsciente coletivo. Na verdade, por ser uma lei editada em um período inegavelmente autoritário, se passou a entender que ela seria, só por isso, também autoritária. Assim, se repete tal argumentação, quase que mecanicamente, sem que se proceda a uma análise séria e desapaixonada do diploma legal.

Apenas para reforçar esse entendimento, basta se tomar o exemplo do crime de calúnia. Quando praticado por meio de imprensa, sua pena mínima é de seis meses de detenção, segundo o artigo 20 da lei. È exatamente a mesma pena mínima prevista, no Código Penal, para o crime de calúnia quando perpetrado por outra forma que não a imprensa (raciocínio idêntico se aplica, também, aos crimes de difamação e injúria). Vale dizer: conhecendo a tendência dos juízes brasileiros em dosar a pena em seu patamar mínimo, tem-se que a situação desse crime contra a honra, praticado através da imprensa ou não, é exatamente a mesma. De se indagar, então, onde que estaria o tal “viés autoritário” da lei?

De qualquer sorte, perpetrados pela Imprensa ou não, os crimes contra a honra se sujeitam aos Juizados Especiais Criminais, conforme dispõe a Lei 11.313/06, que não fez qualquer ressalva ao tipo de procedimento para aplicação da Lei 9.099/95, superando, com isso, qualquer discussão existente, inclusive no seio do próprio STF, sobre a aplicação deste último diploma, em face do procedimento especial previsto na Lei de Imprensa.

Advertência que se impõe, também, é que a decisão é celebrada por jornalistas, como se a Lei de Imprensa contivesse dispositivos que só atingisse os profissionais da Imprensa. Não é assim. Para se cometer um crime de imprensa não se exige essa condição especial. Qualquer um que publique num jornal uma matéria ofensiva à honra de terceiro, seja ou não jornalista, responderá criminalmente por tal ato. Diz-se, ademais, que o diploma legal serve de ameaça contra jornalistas, na medida em que pode culminar com a decretação de sua prisão.

É preciso, contudo, que se atente ao alcance dessa expressão. Se se tratar de prisão em flagrante, a maioria dos delitos previstos na Lei de Imprensa admite a transação penal, como se vê dos artigos 16 e seu parágrafo único, 17, 19 caput, 19 § 2°, 21, 22. Basta, assim, que o autor do fato se encaminhe ao Juizado ou assuma o compromisso de fazê-lo para se livrar do flagrante, na exata dicção do parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95. Caso se entenda prisão em uma acepção mais ampla, ou seja, como a concreta possibilidade do jornalista ser compelido a cumprir pena em decorrência de uma sentença condenatória, também não se vislumbra qualquer ilegalidade.

Ora, há crimes, que a doutrina qualifica como próprios, que exigem mesmo uma especial qualidade do sujeito ativo. Não apenas jornalistas, portanto, se sujeitam a isso. O juiz e o promotor de Justiça, dentre outros, cometem o crime do artigo 177 da Lei de Falência, caso adquiram bens da massa ou do devedor em recuperação judicial, em processos nos quais tenham atuado. O médico pode perpetrar o delito do artigo 302 do Código Penal, caso emita um atestado falso. O prefeito se submete às penas do delito previsto no DL 201/67. De resto, qualquer pessoa, exerça a profissão que exercer, pode, eventualmente, perpetrar um crime e se ver incurso no Código Penal. Não se entende por qual razão com jornalistas deveria ser diferente. A propósito, a lei conta com instrumentos altamente benéficos ao jornalista, como aquele que impede sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e lhe garante “sala descente” para o cumprimento da pena (artigo 66).

Cabe analisar os efeitos práticos da mencionada decisão. Num dos pontos, por assim dizer, mais polêmicos, se suspendeu o efeito de qualquer decisão que tenha relação com o artigo 3° da lei. Ora, esse artigo é exatamente aquele que proíbe que estrangeiros sejam proprietários de empresas jornalísticas. Ao decidir dessa forma, o ministro não se apercebeu do disposto no artigo 222 da Constituição, quando dispõe que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no país”.

Trata-se de medida de proteção, prevista na legislação da maioria dos países democráticos, consistente na reserva, somente aos nacionais, do controle dos órgãos de imprensa. Não fosse assim, eventual invasão estrangeira poderia ferir de morte nossa cultura, nossas tradições, enfim, tudo que há de mais caro a um povo. Nos inspirados exemplos de Luís Roberto Barroso, imagine-se a situação do brasileiro obrigado a assistir, aos domingos, touradas ou campeonatos de beisebol [3]. De qualquer sorte, a emenda constitucional 36/2002, já permite que pessoas as jurídicas a propriedade de empresas de imprensa, preservando-se, contudo, 70% do capital total e do capital votante a brasileiros natos ou naturalizados há pelo menos 10 anos. Tudo isso, em uma penada, foi pelos ares.

A decisão suspendeu, ainda, os efeitos do artigo 61 da Lei de Imprensa que autoriza a apreensão de impressos que contenham propaganda de guerra, de preconceito racial, que importem em subversão à ordem pública e social ou que ofendam a moral pública e os bons costumes. Assim, um jornal que afirme, de forma leviana e mentirosa, que um surto de varíola ameaça todo o país, causando, com isso, enorme abalo à ordem social, interna e externa, está imune de qualquer espécie de apreensão. Ou outro que contenha um franco ataque aos negros ou aos judeus, capaz mesmo de configurar um crime de racismo, considerado inafiançável e imprescritível pela Constituição, não mais poderá ser apreendido. Uma enormidade, com a devida vênia.

A preocupação maior, contudo, se concentra nos efeitos da decisão no âmbito criminal. A primeira decisão, exarada monocraticamente pelo ministro Carlos Britto, determina a suspensão de todos os processos (e os efeitos das decisões já proferidas), que se referiram à prática de crimes contra a honra. Quando da apreciação da liminar pelo Pleno, sem embargo da dúvida que a proclamação do resultado suscitou, foi mantida, nesse aspecto, a liminar. É, com a devida vênia, equivocada a decisão. Como se sabe, para os crimes de imprensa, nestas hipóteses, a pena é das mais reduzidas. Ora, a suspensão dos processos, por tempo indeterminado, acarretará, decerto, a prescrição do direito de punir ou do direito de executar a medida imposta, trazendo, como conseqüência, a mais absoluta impunidade aos autores dos delitos.

A partir de tal decisão, portanto, está franqueada a possibilidade de qualquer um (jornalista ou não), por meio da imprensa, atacar a honra alheia. Mas deve ter o cuidado, sempre, de fazê-lo por meio de um órgão de imprensa. Sim, porque se a calúnia, por exemplo, for praticada em público, durante uma palestra, seu autor estará sujeito ao rigor do Código Penal. Já se o mesmo crime for perpetrado através de um artigo de jornal, o autor restará impune.

De se observar que o artigo 37 da Lei de Imprensa, que, calcado em forte tradição de nosso Direito, trata da chamada responsabilidade par cascade (responsabilidade sucessiva), não foi atingido pela decisão liminar. Com efeito, o simples fato, por exemplo, do autor do escrito residir fora do país ou ser considerado inidôneo, conduz, imediatamente, à responsabilidade do diretor ou redator-chefe do jornal ou periódico. Eles passam, assim, “a ser responsabilizados por um artigo ou por uma notícia, que não é de sua autoria e cujo conteúdo, muitas vezes, eles só vieram a conhecer depois da publicação”, segundo razões recursais ofertadas por Evandro Lins e Silva em antigo recurso extraordinário — que não foi conhecido por unanimidade — manejado perante o Supremo Tribunal Federal [4].

É dizer: em nosso Direito — e, diríamos, há pelo menos um século nos direitos do mundo ocidental — repudia à consciência jurídica a idéia de uma responsabilidade penal que não venha lastreada no elemento subjetivo do agente. Se pretender responsabilizar pela mera causação do resultado, sem se perquirir de dolo ou, pelo menos, culpa, traduz-se em comportamento que não encontra amparo em nossa Constituição (artigo 5°, inc. XLV), inclusive por violar o princípio da pessoalidade ou intransmissibilidade da pena, pelo qual a pena não passará da pessoa do condenado, que tem previsão constitucional [5]. Tal princípio encontra, ainda, previsão na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica, de novembro de 1969), que em seu artigo 5°, inciso 3, prevê que “a pena não pode passar da pessoa do delinqüente”.

É o sentir, também, de Alberto Silva Franco, ao salientar que “a doutrina aprofundou o exame do princípio pessoal da responsabilidade penal e demonstrou, de forma concludente, que toda hipótese de responsabilidade objetiva, não só lesiona o nullum crimen sine culpa, acolhido em nível constitucional, como também, agride à dignidade da pessoa humana, erigida como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito (artigo 1°, III da CF)” [6].

Saliente-se, por derradeiro, o equívoco da decisão também sob o aspecto processual. A um, por ignorar a jurisprudência do próprio STF que entende incabível ação direta de inconstitucionalidade contra lei vigente antes da entrada em vigor da Constituição de 1988 (em posicionamento que, reconheço, deve aquela Corte avançar). E, a dois, em razão de que a medida liminar pressupõe uma situação de risco decorrente da demora na prestação jurisdicional, naquilo que a doutrina denomina periculum in mora. Indaga-se, então: que risco se percebe em uma lei que se acha em vigor há mais de 40 anos e que poderia ter sua constitucionalidade discutida desde 1999, quando entrou em vigor a Lei 9.882, que regulamentou a ação direta de inconstitucionalidade?

O mais grave, porém, é o indesejável vácuo jurídico que se criará caso, no julgamento do mérito, se confirme a aparente tendência em se acolher a ADPF em sua integralidade. Importantes institutos, como o direito de resposta, o direito à indenização da parte ofendida, dentre outros, ficarão, decerto, privados de proteção legal, posto que o instrumento legal que remanescerá (Código Civil), nem sempre se revelará apto a resolver todas as questões que forem apresentadas, sobretudo em virtude da especificidade, no trato de algumas matérias, na atual Lei de Imprensa. Mesmo o Código Penal não cogita de condutas típicas para fatos graves, que atingem bens jurídicos relevantes, previstas apenas na legislação especial (artigos 15, 16, 17 e 18 da Lei de Imprensa).

Tais condutas, por não encontrar paralelo no Código Penal, serão considerada atípicas. Invocar a existência de projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, que tratam da matéria e que, por isso, poderiam suprir o vazio que se instalará, não parece adequado, máxime quando se conhece a realidade de ambas as Casas, repletas de outras prioridades, com pautas trancadas, debates infindáveis, que sinalizam que, nem a médio prazo, um novo diploma surgirá. Somente para que se tenha uma noção do quadro, há um projeto de lei do senador Jefferson Peres (PL 4667/98), tramitando na Câmara, apresentado em 30 de junho de 1998 que, até o momento, pende de apreciação.

Seria de rigor, assim, em caráter de urgência, a revogação da medida liminar. Não tendo sido este o entendimento, espera-se que, no mérito, luzes iluminem os eminentes ministros, que, a cada sessão, sem favor nenhum, brindam a todos com verdadeiras aulas de Direito e Justiça. Tudo no sentido de um julgamento mais sereno e, nem de longe, impressionado com a conjuntura atual, na qual um grande jornal brasileiro vem suportando uma série de ações em série, promovidas por fiéis de uma conhecida igreja.

Notas

[1] “Liberdade de Imprensa e tutela penal da privacidade – a experiência portuguesa”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais (ano 5 — n° 20 — outubro-dezembro — 1997, p. 25 e ss).

[2] Idem, ob. cit., p. 29.

[3] Aspectos polêmicos da atividade de entretenimento — Congresso Cultural de Mangaratiba (RJ), edição da Academia Paulista de Magistrados, p. 107.

[4] RE 75.329-GB, j. 18.04.74, Rel. Min. Xavier de Albuquerque.

[5] Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, Alberto Silva Franco Ed. RT: São Paulo, 2001, 7ª. ed., vol. 2, p. 2317).

[6] Idem.

Revista Consultor Jurídico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Init code Huggy.chat End code Huggy.chat