por Maria Fernanda Erdelyi
Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça abriu caminho para que portadores do vírus HIV tenham reconhecida a prioridade no andamento de processos no Judiciário. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, a 3ª Turma do STJ decidiu que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal deve priorizar o julgamento da ação movida por um portador do vírus HIV contra a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ). A decisão inédita vale apenas para esse caso, mas abre precedente para outros pedidos semelhantes.
O portador do vírus recorreu ao STJ depois que a segunda instância lhe negou prioridade por ausência de previsão legal. No recurso, ele argumentou que poderia haver aplicação análoga do direito já previsto aos idosos. A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, ressaltou que para reconhecer o direito ao doente nem era preciso analogia de dispositivo legal.
“Basta buscar nos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua própria significância, impõe a celeridade necessária peculiar à tramitação prioritária do processo em que figura parte com enfermidade como o portador do vírus HIV”, disse a ministra. Os ministros Massami Uyeda e Ari Pargendler acompanharam o voto da relatora. A decisão foi unânime.
De acordo com a ministra, negar o direito subjetivo de tramitação prioritária ao portador de vírus HIV seria, em última análise, suprimir o princípio da dignidade da pessoa humana. “Mostra-se imprescindível que se conceda a pessoas que se encontre em condições especiais de saúde, o direito à tramitação processual prioritária, assegurando-lhes a entrega da prestação jurisdicional em tempo não apenas hábil, mas sob regime de prioridade”, disse ela em seu voto.
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.415/05, que estende a prioridade na tramitação de processos judiciais e administrativos aos portadores de doenças graves – portadores do vírus HIV, de deficiência física e mental, de moléstia profissional e vítimas de acidente de trabalho. A redação final do projeto já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e aguarda votação no plenário.
Leia a íntegra da decisão
RECURSO ESPECIAL Nº 1.026.899 – DF (2008/0019040-7)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE: J S W
ADVOGADO: SEBASTIÃO MORAES DA CUNHA E OUTRO(S)
RECORRIDO: CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL PREVI
ADVOGADO: SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
EMENTA
Direito civil e processual civil. Recurso especial. Tramitação prioritária. Decisão interlocutória. Portador do vírus HIV.
– Mostra-se imprescindível que se conceda a pessoas que se encontrem em condições especiais de saúde, o direito à tramitação processual prioritária, assegurando-lhes a entrega da prestação jurisdicional em tempo não apenas hábil, mas sob regime de prioridade, máxime quando o prognóstico denuncia alto grau de morbidez.
– Negar o direito subjetivo de tramitação prioritária do processo em que figura como parte uma pessoa com o vírus HIV, seria, em última análise, suprimir, em relação a um ser humano, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto constitucionalmente como um dos fundamentos balizadores do Estado Democrático de Direito que compõe a República Federativa do Brasil, no art. 1º, inc. III, da CF.
– Não há necessidade de se adentrar a seara da interpretação extensiva ou da utilização da analogia de dispositivo legal infraconstitucional de cunho processual ou material, para se ter completamente assegurado o direito subjetivo pleiteado pelo recorrente.
– Basta buscar nos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua própria significância, impõe a celeridade necessária peculiar à tramitação prioritária do processo em que figura parte com enfermidade como o portador do vírus HIV, tudo isso pela particular condição do recorrente, em decorrência de sua moléstia.
Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Ari Pargendler votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti.
Brasília (DF), 17 de abril de 2008.(data do julgamento).
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
RELATÓRIO
Recurso especial interposto por J. S. W. com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão preferido no TJ/DF.
Ação: de revisão de cláusulas contratuais de contrato de mútuo c/c repetição do indébito, ajuizada pelo recorrente em face de CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL PREVI.
Decisão interlocutória: indeferiu a tramitação prioritária do processo, por ausência de previsão legal quando se tratar de pessoa portadora do vírus HIV (fl. 35).
Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrente, com a seguinte ementa:
(fl. 51) – “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. TRAMITAÇÃO PRIORITÁRIA DO PROCESSO. PARTE PORTADORA DO VÍRUS HIV. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 1.211-A DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INADEQUAÇÃO.
I. A regra de prioridade de tramitação processual, embutida no art. 1.211-A do Código de Processo Civil e no Estatuto do Idoso, é cunhada por especialidade que a torna naturalmente avessa à expansão analógica.
II. A despeito da ausência de norma jurídica atribuindo tramitação prioritária além da hipótese talhada no art. 1.211-A do Código de Processo Civil, é preciso ter em mente que o Poder Judiciário não pode se descurar da meta de rapidez e eficiência prescrita no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República.
III. Recurso conhecido e desprovido.”
Recurso especial: interposto ao argumento de que deve haver aplicação analógica do art. 1.211-A do CPC e do art. 71 da Lei n.º 10.741/03 (Estatuto do Idoso), porquanto “não se pode afirmar ausência de previsão legal ante a incontestável pretensão legislativa de proteger da morosidade processual aqueles que necessitam da prestação jurisdicional do Estado e não podem esperar por uma solução num futuro relativamente distante, pela baixa perspectiva de tempo de vida” (fl. 62).
Sustenta ainda dissídio jurisprudencial, com julgado do TJ/RS.
Sem contra-razões o recurso especial foi admitido pelo i. Des. Presidente do TJ/DF.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
A controvérsia consiste em definir se deve ser conferida tramitação prioritária a processo em que uma das partes seja portador do vírus HIV.
– Da violação ao art. 1.211-A do CPC e do dissídio.
Sustenta o recorrente que deveria haver aplicação analógica do art. 1.211-A do CPC, ao argumento de que a conclusão do acórdão impugnado não poderia arrimar-se na ausência de previsão legal quando aquela já existente, de proteção aos idosos, reveste-se exatamente dos contornos da tutela por ele perseguida. Isto é, não pode o recorrente – portador do vírus HIV – aguardar por uma solução do Poder Judiciário num futuro relativamente distante, notadamente ante a baixa perspectiva de tempo de vida que dispõe.
A matéria jurídica versada no art. 1.211-A do CPC foi amplamente debatido no acórdão recorrido, assim como o dissídio jurisprudencial foi demonstrado, nos moldes legal e regimental, o que torna a via do debate acessível a este Órgão Colegiado, para definir a exata dimensão do direito subjetivo pretendido pelo recorrente.
O Tribunal de origem emitiu conclusão com base nos seguintes fundamentos:
(fls. 52/53) – “O agravante almeja garantir a tramitação prioritária do processo em que figura como parte sob argumento de que, sendo portador do vírus HIV e mostrando-se urgente a prestação jurisdicional, sua situação é abrangida pela incidência extensiva do art. 1.211-A da Lei Processual Civil.
Em se tratando de tramitação processual, é preciso ter em mente que o Poder Judiciário não pode se descurar da meta de rapidez e eficiência prescrita no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República, segundo o qual ‘a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’.
Existem inclusive mecanismos processuais para proporcionar respostas jurisdicionais eficazes para as hipóteses de urgência suscitadas pelas partes, dentre os quais avulta a antecipação dos efeitos da tutela atualmente disseminada por todos os procedimentos contemplados na legislação processual.
No entanto, a despeito desse ideal de efetividade e celeridade que deve presidir todos os serviços judiciários, não parece minimamente razoável a invocação da regra específica de prioridade de tramitação processual embutida no art. 1.211-A do Código de Processo Civil e no Estatuto do Idoso. Trata-se de norma cunhada pela especialidade que a torna naturalmente avessa à expansão analógica.
A analogia e mesmo a interpretação extensiva têm como pressuposto elementar a intimidade fática ou jurídica entre a situação posta e aquela destinatária de previsão normativa positivada. E essa correlação inexiste ante a constatação efusiva de que a norma jurídica que se pretende elastecer reflete o intuito claro e definido do legislador de disciplinar de maneira diferenciada a situação específica dos idosos. Noutros termos, o dispositivo legal tem índole especial que o indispõe de maneira categórica com a analogia e a aplicação extensiva. Em decisão que reflete essa peculiar vocação da norma invocada pela agravante e sua natural aversão à analogia, decidiu o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que ‘as disposições do Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, e do art. 1.211-A, do Código de Ritos, somente se aplicam às partes da relação jurídica processual. A prioridade na tramitação processual não alcança o causídico que não figura como parte ou interveniente, e nem está a executar honorários decorrentes de sucumbência definitivamente fixada’ (AgRg. no REsp. 285.812/ES, 4ª T., rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 01.08.2005, p. 461).
Imperativo concluir, assim, que embora o agravante tenha direito a um processo rápido e eficaz, não pode ser alcançado pela regra de prioridade encartada no art. 1.211-A do Código de Processo Civil e no Estatuto do Idoso.”
De início, antes que se faça qualquer escorço jurídico da questão, mostra-se conveniente e oportuno fixar que o prognóstico de pessoas como as que contraíram a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS, que é uma manifestação clínica avançada da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana – HIV, leva a uma imunossupressão progressiva, especialmente da imunidade celular, e a uma desregulação imunitária, as quais acabam por resultar em infecções oportunistas, neoplasias e/ou manifestações (demência, caquexia, trombicitopenia, etc.), que podem levar o enfermo ao óbito, quando não acompanhadas e monitoradas adequadamente por profissionais altamente habilitados (informações retiradas do site: http://www.aidsbrasil.com/).
Segundo escólio de José Afonso da Silva (in Comentário Contextual à Constituição, 4ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2007, p. 28), “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.” Prossegue em momento posterior, o doutrinador (ob. cit. p. 39):
“Porque a dignidade acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana, é que ela não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo for humilhado, discriminado, perseguido, ou depreciado, pois como declarou o Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, ‘à norma da dignidade da pessoa humana subjaz a concepção da pessoa como um ser ético-espiritual que aspira a determinar-se e a desenvolver-se a si mesmo em liberdade’. Aliás, Kant já afirmava que a autonomia (liberdade) é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional, considerada por ele um valor incondicionado, incomparável, que traduz a palavra ‘respeito’, única que fornece a expressão conveniente da estima que um ser racional deve fazer da dignidade.
Não basta, porém, a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica. É de lembrar que constitui um desrespeito à dignidade da pessoa humana um sistema de profundas desigualdades, uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome, inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares delas morrerem em tenra idade. ‘Não é concebível uma vida com dignidade entre a fome, a miséria e a incultura’; ‘a liberdade humana com freqüência se debilita quando o homem cai na extrema necessidade’, pois ‘a igualdade e dignidade da pessoa exigem que se chegue a uma situação social mais humana e mais justa. Resulta escandaloso o fato das excessivas desigualdades econômicas e sociais que se dão entre os membros ou os povos de uma mesma família humana. São contrárias à justiça social, à eqüidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional’.”
Como se vê, não há necessidade de se adentrar a seara da interpretação extensiva ou da utilização da analogia de dispositivo legal infraconstitucional de cunho processual ou material, para se ter completamente assegurado o direito subjetivo pleiteado pelo recorrente.
Basta buscar nos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua própria significância, impõe a celeridade necessária peculiar à tramitação prioritária do processo em que figura parte com enfermidade como o portador do vírus HIV, tudo isso pela particular condição do recorrente, em decorrência de sua moléstia.
Dessa forma, mostra-se imprescindível que se conceda a pessoas que se encontrem em condições especiais de saúde, o direito à tramitação processual prioritária, assegurando-lhes a entrega da prestação jurisdicional em tempo não apenas hábil, mas sob regime de prioridade, máxime dado o prognóstico tal como acima delineado em linhas acima.
Negar o direito subjetivo de tramitação prioritária do processo em que figura como parte uma pessoa com o vírus acima descrito, seria, em última análise, suprimir, em relação a um ser humano, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto constitucionalmente como um dos fundamentos balizadores do Estado Democrático de Direito que compõe a República Federativa do Brasil, no art. 1º, inc. III, da CF.
Entrementes e apenas a título complementar, registre-se que o Congresso Nacional já vem procurando sanar a lacuna legal por meio do Projeto de Lei n.º 6.415/05, que estende a prioridade na tramitação de processos judiciais e administrativos aos portadores de doenças graves, aí incluídos os portadores do vírus HIV, de deficiência física e mental, de moléstia profissional e a vítimas de acidente de trabalho.
Por fim, saliento que, no âmbito do Tribunal da Cidadania que compomos, ofertamos ao i. Ministro Presidente, sugestão no sentido de que seja, desde já editada Resolução que confira prioridade no julgamento dos processos cuja parte seja pessoa portadora do vírus HIV.
Forte em tais razões, CONHEÇO do recurso especial e DOU-LHE PROVIMENTO, determinando que o Tribunal do Distrito Federal e Territórios confira prioridade de tramitação ao processo em que figura como parte o recorrente, portador do vírus HIV.
Revista Consultor Jurídico