por Eduardo Mahon
Não é a vida que imita a arte, mas esta última que imita a vida. Porque a vida real é muito mais complexa do que todas as sinuosidades de qualquer romance.
Sucupira era a cidade sonhada por Dias Gomes para conceber um político demagogo chamado Odorico Paraguaçu, aquele que, pela ampla empatia, tramas e tramóias, manipulava tudo e todos. Abobalhada por se ver tão nitidamente, a sociedade brasileira acompanhava vivamente a novela. Obra singular por ser capaz de nos fazer enxergar a patética democracia que vivem todos os brasileiros, romances do quilate do O Bem-Amado ajudam a conscientizar o eleitor das caricaturas que são os políticos. Essa gente que não lê jornal, mas se limpa nele, é para o iletrado comprado e vendido cotidianamente que Dias Gomes escreveu uma das maiores sátiras políticas já concebidas.
Sucupira é aqui em Mato Grosso e é em todo o Brasil. Um estado onde Sérgio Buarque de Hollanda, se tivesse conhecido, ficaria ainda mais convicto de sua tese do “homem cordial”, não porque tudo e todos são pacíficos, mas é a província capaz de acomodar interesses dos mais conflitantes, em nome de uma aristocracia que faz do sistema republicano constitucional um jogo de cena. As instituições que deveriam viver harmônicas, mas autônomas, às vezes vivem às turras, mas sempre juntas: é como briga de família, um não se fala com o outro, mas acabam por se ajudar na primeira oportunidade. Isso é uma distorção profunda que a sociedade nuclear/familiar mato-grossense emprestou à vivência institucional estadual. Tal fenômeno também se vê no Nordeste e nos rincões desbravados recentemente.
Esse compadrio é o caso da Lei Complementar 313 de Mato Grosso, aprovada pela unanimidade dos deputados estaduais a toque de caixa, cujo autor foi, anonimamente, “as lideranças partidárias”. Dispõe a legislação que a Vara Especializada em Ações Civis Públicas e Populares não pode julgar os casos de improbidade administrativa. Por quê? Não se sabe. Sabe-se, contudo, que o magistrado titular daquela vara alijada da competência recebeu ação de improbidade contra um dos parlamentares. E, daí, com urgência, a Lei Complementar 313 foi aprovada e já sancionada pelo governador do estado. Assim, a ação outrora recebida será redistribuída para uma das varas comuns de Fazenda Pública, já todas sobrecarregadas de processos de execução, mandados de segurança, etc., onde as acusações serão apenas mais um processos entre milhares.
Este bate-bola institucional em Mato Grosso é o que há de pior no estado e o que há de pior no Brasil. Infelizmente, o jogo de ping-pong tão comum na trajetória histórica nacional, aprofunda-se em tempos de esquerda negociada. A vida mato-grossense provinciana foi e é bela, romântica, saudosa, mas nada saudável para o sistema republicano. Todos se conhecem bem e, por isso, sabem onde apertam os calos uns dos outros. Tudo é sabido, não há segredos num Estado como o nosso. Até mesmo as acusações veladas trocadas no calor das discussões são perfeitamente audíveis e compreensíveis pelo mais simples do povo.
As intimidades são expostas publicamente, nas varandas, nas calçadas, nos intervalos das repartições para o cafezinho. Quem casou, quem separou, quem quebrou, quem enriqueceu, quem é ladrão, quem é bem quisto, quem é mal quisto, quem é honesto e quem é ladrão, quem é homem e quem não é, quem traiu quem, quem será o próximo na cadeira vaga, enfim. Assim, enfrentamos enorme empecilho para o desenvolvimento das instituições — a independência.
Talvez, por isso, o conselheiro do Tribunal de Contas de hoje foi o secretário de Fazenda de antigamente; o secretário de Segurança de ontem, foi o promotor de Justiça de anteontem; os tributos arrecadados por meio de processos judiciais são o incremento em benefício do próprio Poder Judiciário responsável pelos julgamentos e, assim, tantos outros exemplos de “camaradagem” que, no final das contas, revela uma profunda confusão republicana. É a “cordialidade” que pouca gente entendeu de Raízes do Brasil, de Buarque de Hollanda. É o teatro tão bem representado por Raimundo Faoro em Os donos do poder.
E para que defender o sistema de freios e contrapesos, se a característica “gregária” da política mato-grossense carreia a concórdia e o desenvolvimento? Essa impressão é equivocada – não defendo que os Poderes sejam conflitantes ou mantenham-se em desarmonia, mas devem sim se conservar distantes e autônomos, como manda a Constituição. Quando um “quebra o galho” do outro, tudo há em Mato Grosso, menos o mérito, menos a distinção, menos o merecimento, menos a galhardia, menos a honestidade, menos a probidade, menos a seriedade, menos o pudor, menos a moral. Tudo se resolve com aquele “jeitinho”.
E onde Mato Grosso e o Brasil perde com o “compadrio”? Esse jogo de comadres, responsável por proteger uns dos outros, aproximando institucionalmente as instituições, partilhando-se os méritos e, sobretudo, os deméritos, não é producente. Aliás, noutras plagas, chama-se simplesmente de corrupção. O empresário, quando não fica refém, entra no jogo dispendioso. Nenhuma profissão liberal ligada ao poder, seja diretamente seja indiretamente, sobrevive sem se irmanar nesse sistema intrincado de amigos, parceiros e sócios. Sim, porque de certa forma, onde a separação de poderes não vigora com toda a eficácia, todos são sócios, de certa forma. Situação nociva para a real democracia, não aquela de aparências. Daí, todo o cerimonial do beija-mão na província e no estado-geral brasileiro, a formação de uma corte de áulicos, de uma roda de gentis homens não é passado, é presente, mais presente do que nunca.
Em Mato Grosso, com a Lei Complementar 313, deu-se um golpe legislativo. Mais um, aliás. E, pior — ao sabor das conveniências dos amigos, dos compadres, dos parceiros e dos sócios. Lembramos que a exclusividade dos “golpes legislativos” não é exclusividade nossa. O Brasil experimenta uma espécie de máscara legal que quer esconder a face de criminosos, por muitas décadas. Numa retrospectiva recente, temos a lei de anistia, assinada pelo último ditador militar brasileiro que veda a apuração e punição de torturadores do golpe tupiniquim.
Essa solução cínica não encontrou espelho nem mesmo em ditaduras piores, como a chilena e a argentina. Todavia, como tudo o mais no Brasil, até mesmo a democratização é uma total esculhambação, ao sabor das conveniências financeiras. Não se pune os responsáveis por mortes, mas se recompensa regiamente com pensões de encomenda. Ou seja, tudo se ajeita por um bom trocado, uma sórdida gorjeta cívica, silenciando a consciência nacional, seja com as indenizações, seja com a esmola eleitoreira do governo atual.
O histórico do golpe legislativo não pára por aí. O tapete puxado na emenda constitucional das “Diretas-Já” é outro exemplo. A distensão realmente foi lenta, gradual e segura, como antevia Geisel, isentando todos os milicos criminosos e, com eles, mantendo um sistema político aristocrático que deu sustentação permissiva à ditadura brasileira. Ainda que a população brasileira tenha se mobilizado, os parlamentares não se sensibilizaram. Por uma razão simples — eles perderam a capacidade de nos representar; falam apenas pelos guetos financeiros que os sustentam no Parlamento. São despachantes de luxo.
Finalmente, frustrou-se a esperança da intelectualidade frustrada – Fernando Henrique Cardoso que, ao sair, fez a maior das temeridades casuístas da história nacional – a lei pela qual os ex-ocupantes de cargos eletivos mantinham o foro privilegiado. Uma excrescência. Mas o que isso importa, se todos fazem o mesmo? Acabou a vergonha de ser apontado como desonesto, viciado, malandro e corrupto? Parece que sim.
Muito pelo contrário – hoje a maior comenda é da malandragem, da inteligência que vive espreitando o patrimônio público, a criar construtoras e outras empresas laranjas para tungar o erário. Ao contrário, distinto leitor: trata-se de uma enorme máscara, uma aparência de legalidade que oculta os piores crimes, os mais safados desvios. As cartas marcadas estão hoje num baralho aparentemente limpo, mas que todos sabem haver jogo suficiente aos que vão ganhar a rodada. Todavia, não haverá sempre fichas para todos, isso há de acabar algum dia.
Prezados leitores, a esperteza virou sagacidade; a ladroagem virou distinção; a infidelidade virou conveniência e, assim, os sonhos foram vendidos num balcão, numa urna, num parlamento, numa tribuna, num púlpito E, então, todos juntos, permanecem numa cumplicidade recíproca. A absolvição deste retrata a culpa daquele outro e assim, sucessivamente, um enlameado pelo outro. Onde tudo está à venda, tudo pode ser comprado. A lei não é alavanca e não é escudo para ninguém, Senhores! A liberdade de consciência nunca se compra por homem algum, mas se vende facilmente diante das tentações do poder.
Não, senhores! Não é isso que nossos pais nos ensinaram. Que tristeza, que vergonha a nossa, como cidadãos brasileiros e mato-grossenses. Nessa altura, todos se perguntam qual o sentido do título “o bem-amado”. É que Odorico Paraguaçu construiu um cemitério que não era inaugurado porque não morria ninguém, até que ele próprio faleceu e lá foi enterrado, dando-se por inaugurada a obra pública tão alardeada pelo defunto. Senhores deputados e demais homens do poder – nas covas por vós cavadas, lembrem-se de quem serão os primeiros a inaugurá-las.
Revista Consultor Jurídico