Ações de reintegração de posse e de usucapião do mesmo terreno podem correr ao mesmo tempo. O entendimento é da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que determinou o prosseguimento da ação de reintegração proposta pela empresa Siar Empreendimentos e Participações Ltda.
Em setembro de 2001, a empresa entrou com a ação de reintegração de posse contra Maria Vicência Freire dos Santos, alegando ser dona da propriedade. Maria Vicência contestou a ação, dizendo que em abril já tinha ajuizado ação de usucapião urbano. Nela, pediu a suspensão da ação de reintegração.
Em primeiro grau, o pedido de suspensão da ação de reintegração de posse foi aceito até o julgamento da ação de usucapião. O 1ª Tribunal de Alçada Cível de São Paulo rejeitou o recurso da empresa, mantendo a sentença.
No Recurso Especial, a empresa sustentou que a existência da ação de usucapião não justifica a suspensão de ação de reintegração de posse, sendo certo que não há relação de prejudicialidade entre ações possessórias e petitórias.
Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, hoje predomina, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que a posse não depende da propriedade e, portanto, a tutela da posse pode se dar mesmo contra a propriedade.
“Não há, portanto, que se falar em prejudicialidade externa a justificar o sobrestamento da ação possessória, ajuizada anteriormente, até que advenha um juízo final sobre a propriedade, que é discutida na ação de usucapião”, concluiu.
Leia a decisão
RECURSO ESPECIAL Nº 866.249 — SP (2006⁄0131792-5)
RECORRENTE : SIAR EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES LTDA
ADVOGADO : FRANCINE MARTINS LATORRE E OUTRO(S)
RECORRIDO : MARIA VICÊNCIA FREIRE DOS SANTOS
ADVOGADO : MARCOS ANTONIO ZERBINI E OUTRO(S)
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por Siar Empreendimentos e Participações Ltda., com fundamento no art. 105, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo extinto Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo.
Ação: Siar Empreendimentos e Participações Ltda. ajuizou, aos 12.09.2001, ação de reintegração de posse em face de Maria Vicência Freire dos Santos, alegando ser senhora e legítima possuidora imóvel localizado na Rua Dom Bosco, 246, na Capital do Estado de São Paulo, e que, não obstante, a ré esbulhou, em 27.04.01, sua posse.
A requerida contestou a ação informando ter ajuizado, em 13.09.2001, ação de usucapião urbano.
Decisão: Em primeiro grau de jurisdição, foi deferida a suspensão do feito até o julgamento da ação de usucapião com base no art. 11, Lei 10.257/2001.
Acórdão: O Tribunal de origem negou provimento ao agravo de instrumento interposto pela autora, lavrando acórdão que trouxe a seguinte ementa:
“Possessória. Superveniente propositura de ação de usucapião especial pela ré, no dia seguinte. Suspensão daquela até o julgamento desta. Inteligência do art. 11, da Lei nº 10.257, de 10⁄07⁄2001. Decisão mantida. Recurso improvido”.
Embargos de declaração: Opostos pela autora e acolhidos, em parte, para correção de erro material, sem efeito modificativo. Esclareceu-se que a suspensão se dava por força de prejudicialidade externa, com amparo no art. 265, IV, ‘a’, CPC.
Recurso Especial: Sustentou haver violação ao art. 265, IV, ‘a’, CPC, pois a existência da ação de usucapião não justifica a suspensão de ação de reintegração de posse, sendo certo que não há relação de prejudicialidade entre ações possessórias e petitórias.
Juízo Prévio de Admissibilidade: Apresentadas contra-razões, o Tribunal de origem negou seguimento ao Especial. Dei provimento ao Agravo de Instrumento, determinando a subida dos autos ao STJ para melhor análise do feito.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 866.249 — SP (2006⁄0131792-5)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : SIAR EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES LTDA
ADVOGADO : FRANCINE MARTINS LATORRE E OUTRO(S)
RECORRIDO : MARIA VICÊNCIA FREIRE DOS SANTOS
ADVOGADO : MARCOS ANTONIO ZERBINI E OUTRO(S)
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cinge-se a controvérsia a analisar se há prejudicialidade externa a justificar a suspensão da ação possessória até o julgamento de ação de usucapião que foi posteriormente ajuizada.
Vê-se que o thema decidendum insere-se no contexto da contenda doutrinária e jurisprudencial que, ao longo de décadas, pauta a inter-relação entre posse e propriedade, de ações possessórias e petitórias. Mas, em que pesem as inúmeras conseqüências que a discussão gera nos mais variados aspectos da proteção possessória, é certo que o Especial limitou a controvérsia a um único aspecto processual, qual seja, a prejudicialidade externa.
Com efeito, o Tribunal de origem, ao julgar os embargos de declaração opostos pela recorrente, enfatizou que a hipótese dos autos, que envolve a suspensão da ação possessória ajuizada em data anterior à ação de usucapião, “escapa da abrangência” do art. 11 da Lei 10.257⁄01. Excluída, portanto, a discussão em torno do Estatuto da Cidade, que estabelece que “na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo”, é certo que o exame do Especial fica adstrito à extensão do art. 265, IV, ‘a’, CPC.
Para fins de clareza, lembre-se que o referido art. 265, IV, ‘a’, CPC, determina a suspensão do processo quando a sentença de mérito “depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente”.
Ao aplicar o referido dispositivo legal à hipótese dos autos, o Tribunal de origem assim fundamentou sua decisão:
“E, por que, suspende a possessória e não o usucapião, no caso proposto depois? É simples. Primeiro, que aqui se examina recurso específico contra decisão que suspendeu a possessória. Em segundo lugar, porque na ação de usucapião, embora lastreada na posse, sua finalidade é obter o domínio, que prejudica a possessória, no caso de procedência daquela”.
Ocorre que a ação de usucapião não é propriamente fundada na posse. Em verdade, a aquisição originária regulada pelo direito material é que baseia na posse. O processo judicial de usucapião não pressupõe posse, mas sim a propriedade, que já foi adquirida no plano do direito material. Conseqüentemente, o provimento jurisdicional é meramente declaratório dessa aquisição. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, por exemplo, reconhecem que “nessa sentença de procedência predomina a carga declaratória, porque declara relação jurídica preexistente, pois o possuidor adquiriu a propriedade pelo só exercício da posse ad usucapionem (…)” (Código Civil Comentado. São Paulo: RT, 2007, p. 861-2).
É importante ressaltar, ademais, que a proteção possessória toma contornos peculiares em nosso ordenamento jurídico.
Humberto Theodoro Jr., com particular clareza, esclarece-nos que a Constituição protege “o direito de propriedade usado regularmente sem abusos, e com ressalva de sua função social (CF, art. 5o, n. XXIII). Nenhum direito, de ordem patrimonial, é absoluto, de maneira a assegurar ao seu titular o exercício abusivo e sem as limitações impostas pela convivência em sociedade. Tanto é assim, que a lei pune, através do delito de exercício arbitrário das próprias razões, quem faz ‘justiça pela próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima’ (CP, art. 345). O direito de propriedade, portanto, não assegura ao proprietário a faculdade de dispensar a intervenção da Justiça Pública e de expulsar, com a força privada, o possuidor de seu bem. Ao contrário, a lei veda e pune esse tipo de conduta. A composição violenta por iniciativa do proprietário poderia eliminar uma lide, mas intranqüilizaria toda a sociedade, inquestionavelmente” (apud Orlando Gomes. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 88).
Tudo isso demonstra, em poucas palavras, que hoje predomina, na doutrina e jurisprudência, o entendimento de que a posse não depende da propriedade e, por conseguinte, a tutela da posse pode se dar mesmo contra a propriedade.
Não há, portanto, que se falar em prejudicialidade externa a justificar o sobrestamento da ação possessória, ajuizada anteriormente, até que advenha um juízo final sobre a propriedade, que é discutida na ação de usucapião.
Note-se, nesse sentido, que a Segunda Seção, abordando tema correlacionado ao presente, já asseverou a independência da discussão entre posse e propriedade. Confira-se:
“PROCESSUAL CIVIL — COMPETENCIA — AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE — AÇÃO DE USUCAPIÃO — INOCORRENCIA DE PREVENÇÃO.
I — Hipótese em que não se vislumbra qualquer prevenção, seja por conexão, seja por continência, a ensejar a reunião das ações de usucapião e de manutenção de posse, porque nelas o objeto e a causa de pedir são completamente distintos. A primeira não exerce qualquer ‘vis attractiva’ sobre a segunda, que pode ser processada e julgada, independentemente, daquela.
II — A conexão que impõe a reunião delas para julgamento simultâneo, e somente aquela que pode resultar em decisões conflitantes.
III — Conflito conhecido para declarar competente o juízo estadual, suscitado” (CC 3.811⁄RS, Segunda Seção, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 28.02.1994).
Desta forma, por reconhecer prejudicialidade externa onde esta não existe, é certo que o acórdão hostilizado violou o art. 265, IV, ‘a’, CPC.
Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao Recurso Especial, para reformar o acórdão recorrido e determinar o prosseguimento da ação ajuizada pelo recorrente na esteira do devido processo legal.
Revista Consultor Jurídico