por Priscyla Costa
Em dois períodos e nas funções de suplente e titular, o ministro Marco Aurélio já soma quase dez anos de atuação no Tribunal Superior Eleitoral. Nesta terça-feira (6/5), ele encerra o seu segundo mandato como presidente da corte e deixa ali uma marca indelével. Sob seu comando, o TSE decidiu e deliberou de forma a assumir uma posição na primeira linha na vida política brasileira.
Ao fazer com que a fidelidade partidária se tornasse uma exigência legal, no ano passado, o TSE contribuiu mais para a reforma política do que todas as iniciativas do Legislativo e do Executivo em muitos anos. Da mesma forma, ao se empenhar pessoalmente na consolidação do processo eletrônico de votação prestou enorme serviço a favor da lisura das eleições no país.
Marco Aurélio assumiu a presidência no auge das CPIs que apuravam o escândalo do mensalão. Num momento de máximo descrédito das instituições políticas, ele indicou a única saída possível. “No que depender desta cadeira, não haverá condescendência de qualquer ordem. Nenhum fim legitimará o meio condenável. A lei será aplicada com a maior austeridade possível”, disse o ministro em seu discurso de posse.
Sua promessa foi cumprida, em parte, com as novas regras de propaganda eleitoral que restringiram os gastos de campanha e com vistas a dar maior transparência ao fluxo de recursos no processo eleitoral. A prática do Caixa 2, que alimentou em grande parte o esquema de fraudes do mensalão, ficou mais difícil depois disso.
Na regência de Marco Aurélio, em 2006, o Tribunal ainda ditou duas decisões paradigmáticas. Numa representação do Ministério Público Eleitoral do Rio de Janeiro contra a candidatura de Eurico Miranda por ser réu em vários processos criminais, o TSE decidiu que mais vale a presunção de inocência do que a moralidade pública. O placar foi de 4 votos a 3.
Em outro julgamento, o TSE decidiu que não deve ser aceita de forma automática a desculpa de candidato de que está recorrendo contra decisão administrativa de Tribunal de Contas que rejeitou sua prestação de contas no exercício de cargo público. Cortou-se assim hábito comum entre homens públicos de, às vésperas de registrar candidatura, entrar com recurso na Justiça só para serem beneficiados.
Marco Aurélio será substituído no cargo pelo ministro Carlos Britto, o que prenuncia diferenças de idéias e de estilos. Marco Aurélio é um garantista radical dos direitos fundamentais que não teme o confronto nem foge de polêmica. Já Carlos Britto é um humanista que coloca o interesse social acima de todas as coisas. Tão poeta quanto juiz, prefere sempre o diálogo.
Na votação do caso Eurico Miranda, as diferenças ficaram patentes: Marco Aurélio ficou com a tese vencedora, de que deve prevalecer a presunção de inocência. Brito ficou vencido ao defender que o que importa é o princípio da moralidade. A questão deve voltar a ser discutida no TSE. Com nova composição, o resultado pode mudar.
Leia a entrevista
ConJur — Qual foi a decisão mais importante para o Tribunal Superior Eleitoral durante sua gestão?
Ministro Marco Aurélio — A resolução sobre fidelidade partidária. A decisão do TSE implicou em reforma política e na busca do fortalecimento dos partidos políticos. Antes, o partido somente servia para encampar a caminhada do candidato. Quando decidiu pela fidelidade partidária, o TSE estabeleceu a definição e função dos partidos políticos.
ConJur — O que mudou com a descoberta do mensalão (esquema de pagamento para parlamentares votarem assuntos de interesse do governo) nas cautelas do julgador eleitoral e nas regras aplicadas?
Marco Aurélio — Acredito que não teve influência no âmbito da Justiça Eleitoral. Quando tomei posse na presidente do TSE, dei um recado incisivo alertando a comunidade jurídica para observar e respeitar as leis eleitorais e as leis da República. Isso aconteceu mais por um avanço cultural do que por um caso isolado. Costumo dizer que não precisamos de mais leis, mas de homens públicos que observem as leis existentes. O exemplo vem de cima. Quando temos dirigentes que colocam em segundo plano o parâmetro de comportamento, o cidadão comum não se sente compelido a ter atitude diversa.
ConJur — O que a Internet mudou na Justiça eleitoral?
Marco Aurélio — Na área administrativa, facilitou a comunicação e o domínio de dados. Na área judiciária, tivemos de nos deparar com a campanha política feita por meio virtual. Esse ano se cogita muito o uso de internet como meio de comunicação e de propaganda partidária. Claro que teremos incidentes. O que prevalecerá é o Direito posto.
ConJur — Há regras suficientes para controlar a campanha virtual?
Marco Aurélio — Existe uma resolução que reconhece os direitos do candidato e a página dele na internet, mas a propaganda somente é possível depois de 6 de julho. Essa é a única regra que temos. Vamos começar a construir agora a jurisprudência.
ConJur — Com as eleições municipais, o TSE deve voltar a discutir a presunção de inocência de candidatos com condenação não transitada em julgado. Da última vez que o tema entrou em pauta, o placar foi apertado. Quatro ministros votaram pela elegibilidade do candidato e três ministros decidiram pelo princípio da moralidade. Com a nova formação do tribunal, o placar pode mudar?
Marco Aurélio — É possível que a nova formação siga a orientação do novo presidente do Tribunal, que votou contra o princípio da não-culpabilidade. O ministro Carlos Britto está muito esperançoso com o avanço da jurisprudência e já temos notícias do envolvimento de tribunais regionais eleitorais nesse sentido. Esse é o preço que se pagar por viver em uma democracia. Pessoalmente, entendo que deve ser respeitada a presunção de inocência. O princípio da moralidade, invocado por quem não concorda com minha tese, sequer deveria estar previsto na Constituição Federal. É mais uma cláusula pedagógica e subjetiva. Ao direito próprio do cidadão não cabe subjetivismo.
ConJur — O TSE vai definir a legalidade da quebra de sigilo fiscal, sem autorização judicial, de empresas que fizeram doações para campanhas eleitorais. Esse tipo de prova pode ser considerada lícita?
Marco Aurélio — A regra é o sigilo de dados. A exceção é o afastamento do sigilo. Se visa a persecução criminal e o afastamento, com autorização judicial, é indispensável, então que seja decretado. Mas o pedido deve estar vinculado a um único objeto, ou seja, a investigação criminal. Na Justiça Eleitoral, a prova não é lícita porque é jurisdição cível.
ConJur — É possível fazer campanha limpa com a atual regra de financiamento?
Marco Aurélio — Sou favorável ao financiamento público com cláusulas rigorosas se tiver enxerto dinheiro privado. Ninguém doa sem pensar em troco e esse troco sai muito caro para a sociedade.
Revista Consultor Jurídico