por Priscyla Costa
As terras ocupadas pelos índios, embora pertencentes ao patrimônio da União, são das comunidades tribais. Assim entendeu o Supremo Tribunal Federal, em 1996, quando julgou um Recurso Extraordinário (RE 183.188) ajuizado pela Comunidade Indígena do Jaguapiré (MS), pela Funai, pelo Ministério Público Federal e pela União contra a Justiça do Mato Grosso do Sul e que discutia justamente a ocupação de uma reserva indígena.
O entendimentodo ministro Celso de Mello no julgamento do RE 183.188 (clique aqui para ler ementa, relatório e voto) pode servir como uma bússola a orientar as decisões nos processos que discutem a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, uma área de um 1,7 milhão de hectares no estado de Roraima, disputada por quem defende que seja mantida como reserva indígena, ou pelos partidários para que ela abrigue fazendas de produção de arroz ou zonas urbanas de municípios já implantados.
A matéria discutida nos autos do Recurso Extraordinário 183.188 e julgado em 1966 deve servir como orientação para os ministros na questão da Raposa Serra do Sol. Em seu voto, no julgamento do RE, Celso de Mello afirma que além da questão ser de alçada da Justiça Federal, por ter a União e a Funai como partes, as terras discutidas no processo já tinham sido declaradas como de posse permanente dos índios e demarcadas administrativamente, resultado homologado pelo presidente da República — como acontece com a Raposa Serra do Sol. De acordo com o ministro, esses fatos tornariam a reserva de Jaguapiré “inalienável, indisponível e o direito sobre ela imprescritível”, de acordo com o artigo 231, parágrafo 4º, da Constituição Federal.
“As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, embora pertencentes ao patrimônio da União (CF, artigo 20, XI), acham-se afetadas, por efeito de destinação constitucional, a fins específicos voltados, unicamente, à proteção jurídica, social, antropológica, econômica e cultural dos índios, dos grupos indígenas e das comunidades tribais”, afirma Celso de Mello em seu voto.
“A intensidade dessa proteção institucional revela-se tão necessária que o próprio legislador constituinte pré-excluiu do comércio jurídico as terras indígenas, proclamando a nulidade e declarando a extinção de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de tais áreas”, sustenta o ministro. Celso de Mello também lembra que a questão é tão relevante que na Constituição de 1969 o legislador já tinha reconhecido como “juridicamente irrelevante e absolutamente ineficaz” a existência de eventual registro imobiliário de terras indígenas.
“Ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios têm direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas”, escreve Celso de Mello no voto citando lição do professor Dalmo Dallari.
Demarcação contestada
Ao todo, 33 ações correm na Corte em torno da demarcação do território. Agricultores, pecuaristas e políticos do estado ajuizaram na Justiça Federal de Roraima uma série de ações judiciais para impedir o processo do Executivo para efetivar a reserva. Por isso, o Supremo não decidirá se a demarcação da terra deve ser contínua ou em ilhas. Na questão de demarcação de terras indígenas, o Judiciário só pode se manifestar sobre a legalidade dos atos do Executivo. Se o decreto for declarado ilegal, o processo volta às mãos do Executivo e a Funai terá que apresentar novo estudo antropológico.
Com o tempo, muitos fazendeiros foram desistindo e deixaram a reserva depois de receberem indenizações da Funai. Sobraram apenas seis rizicultores, que ocupam a área sul da reserva em um espaço que representa cerca de 1% do total das terras.
O assunto chegou ao Supremo em 2004. Na oportunidade, a ministra Ellen Gracie entendeu que a homologação contínua causaria graves conseqüências de ordem econômica, social, cultural e lesão à ordem jurídico-constitucional. Por isso, ela negou o pedido do Ministério Público Federal, que queria suspender a decisão da Justiça Federal do estado permitindo a permanência dos arrozeiros.
Com a homologação da reserva m 2005, pelo presidente Lula, o assunto passou para a competência do Supremo. A partir de 29 de junho de 2006, o plenário do STF reconheceu que a questão é de sua alçada. As contestações dos agricultores vêm sendo liminarmente negadas pelos ministros desde então.
Ação e inspeção
No caso da Raposa Serra do Sul o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o ministro Carlos Britto, relator dos processos que discutem a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, já cogitaram visitar as terras em Roraima. Índios, fazendeiros, organizações não-governamentais, governador, prefeitos, parlamentares e representantes da Funai devem ser convocados pelos ministros para a inspeção.
No começo de abril deste ano, o STF suspendeu uma operação da Polícia Federal que tiraria os seis arrozeiros da área. A Procuradoria-Geral da República encaminhou parecer favorável à demarcação contínua da reserva. Na opinião da procuradoria, se a demarcação da forma como foi feita oferece algum risco à soberania nacional, como alegado na Petição, este tem de ser eliminado sem sacrificar o direito dos povos indígenas.
O parecer conclui no sentido de que todas as fases que resultaram na demarcação e na homologação da Raposa Serra do Sol respeitaram os procedimentos exigidos pela legislação e seguiram “consistente estudo antropológico”.
Revista Consultor Jurídico