por Aline Pinheiro
A vontade política faz milagres. Transforma dois mais dois em seis e, pior, torna lei o resultado dessa soma, hoje com o nome de Constituição Federal de 1988. A equação que levou à concretização da vontade política na carta maior que rege o Brasil é defendida, sem meias palavras, pelo economista e político Delfim Neto.
“Nós vivemos hoje os resultados da Constituição de 1988, que é o resultado do sonho com falta de aritmética.” Para o ex-ministro do regime militar e hoje conselheiro informal de Lula, a lei maior do país consagrou um sistema tributário já destruído. O tal sistema foi instituído com o Código Tributário Nacional, de 1967, tempos de ditadura do país e de Delfim ministro da Fazenda. Segundo Delfim, o CTN foi sendo destruído ao longo dos 20 anos desde sua aprovação em 1967. O resultado final desse processo de destruição foi oficializado e incorporado à nova Constituição em 1988 .
Depois da edição da Constituição, o sistema tributário continuou a ser destruído com uma avalanche de normas — municipais, estaduais e federais. Desde 1988, conta Delfim, foram emitidos 3,6 milhões de atos tributários, 90 por dia. A seqüência de acontecimentos tornou o Brasil o paraíso da confusão fiscal, nas palavras de Delfim, e o sistema tributário, “pesado, complexo, regressivo e extremamente injusto”.
Agora, 20 anos depois da Constituição e mais de 40 após a criação do CTN, o governo federal rufa os tambores e anuncia uma nova reforma tributária. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional 233, anunciada como remédio para resolver a confusão fiscal no país. Não é, no entanto, dessa maneira que Delfim vê a PEC do governo. Para ele, não há nenhuma indicação de que a carga tributária e nem a burocracia, os maiores disparates da legislação tributária vigente, serão reduzidas. Mas governo é assim mesmo, diz o ex-ministro. “Não acredito no governo nem quando estou nele”, afirma.
A outra bandeira levantada pelo governo — de que a PEC acaba com a guerra fiscal ao unificar o ICMS — também não é bem vista por Delfim. Para ele, a guerra fiscal é um instrumento saudável de concorrência entre os estados. Delfim reconhece que a proposta do governo pode até reduzir alguns problemas mas, ainda que indiretamente, admite que não vai resolver o confuso sistema tributário do Brasil, perpetuado pela Constituição. “O que é imelhorável não melhora.”
A passagem pela história de Antônio Delfim Neto, 80 anos completados no dia 1º de maio, pode ser registrada de duas maneiras. Uma como um fiel escudeiro do regime militar, ao qual serviu como ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. Outra como um dos artífices do milagre econômico, nos anos 70, época em que a economia do país cresceu a taxas próximas dos 10% ao ano.
Economista de raciocínio rápido, idéias brilhantes e língua afiada, em tempos de democracia, Delfim Neto elegeu-se deputado federal por cinco mandatos consecutivos. Sua derrota nas últimas eleições foi lamentada até mesmo por adversários. Professor emérito da Faculdade de Economia da USP, continua exercendo sua influência como um dos mais assíduos e respeitados consultores em matéria econômica do presidente: “O Lula é muito mais inteligente do que o mercado”, diz, retribuindo a admiração.
Leia a entrevista que o ex-ministro concedeu ao Consultor Jurídico.
ConJur — Qual é a reforma tributária ideal?
Delfim Neto — Não existe reforma tributária ideal, mas a reforma tributária conveniente. Esta tem que ser internamente eficiente, cobrar os impostos sobre as bases que são tradicionais — consumo e propriedade — e tem que ser compatível com o sistema tributário externo. Também não existe o sistema tributário ideal. O que existe são sistemas tributários convenientes.
ConJur — O sistema tributário do Brasil é conveniente?
Delfim Neto — Não. Ele é muito pesado, complexo, regressivo e extremamente injusto. O Brasil teve problemas tributários desde o início, nos tempos de Dom João. Enquanto colônia, os mineiros já brigavam com Portugal por causa dos impostos. Dom Pedro I promulgou a Constituição e não deu confiança para as províncias. Dom Pedro II conseguiu a República e continuou sem dar confiança para as províncias nos assuntos tributários. Depois, teve a Era Getúlio Vargas, os regimes totalitários e, finalmente, em 1988, a Constituição Federal deixou o sistema tributário como ele está hoje, altamente inconveniente.
ConJur — A proposta de reforma tributária do governo é conveniente?
Delfim Neto — Ela melhora um pouco os problemas, reduz um pouco a confusão. Mas pode ser feito o que quiser que o maior inconveniente — a carga tributária — não vai ser resolvido porque não vai cair a despesa do governo. A carga tributária brasileira é elevada porque o Estado é absolutamente ineficiente, tem despesas, construídas na Constituição, que são incompatíveis com um país que tem renda per capita de US$ 4 mil dólares. Por isso, reforma tributária conveniente deve ser procedida de um mecanismo de melhor análise do orçamento, com o estabelecimento de metas bem adequadas para todos os setores. O Brasil não gasta pouco em saúde, nem gasta pouco em educação, gasta é muito mal. O serviço público brasileiro é o mais caro do mundo quando se compara o que o governo tira do setor privado como receita e o que ele devolve como serviços. Há outro ponto importante que é a guerra fiscal. O seu combate é o grande argumento para uma reforma tributária. Mas essa discussão é equivocada.
ConJur — A guerra fiscal não é ruim?
Delfim Neto — Pelo contrário, ela é muito boa. Um estado mais eficiente pode sim cobrar imposto menor. Como é que New Jersey tomou as indústrias de Nova Iorque? Se Minas Gerais for muito mais eficiente que São Paulo e o governador de Minas decidir baixar os impostos, não há nenhuma razão para brigar. Isso é a competição entre os poderes públicos, como acontece no mercado. O que nós chamamos de guerra fiscal foi o mecanismo de defesa que os estados encontraram para restabelecer uma certa harmonia regional, já que a União abandonou a sua missão precípua de estabelecer uma razoável igualdade territorial. Por que querer que o estado entregue o mínimo de autonomia fiscal que a Constituição deixou para ele se a União não garante uma política de harmonização regional?
ConJur — O senhor falou do serviço público. Antes da reforma tributária, era preciso reformar o serviço público?
Delfim Neto — A reforma tributária tinha de ser precedida não de uma revolução no serviço público, mas da criação de um mecanismo de eficiência para reduzir os custos, abusos e desperdícios que estão implícitos num Estado corporativista como o nosso. Antes da reforma, também seria preciso dar aos estados a certeza de que eles não serão abandonados. O mercado sozinho não cria esse equilíbrio. Ele cria sim a concentração em determinado região, que cresce na frente e vira um pólo atrativo. Enquanto existirem economias de aglomeração, o mercado vai concentrando. Por isso que repito: foi saudável que os estados criassem esse mecanismo de equilíbrio, que é chamado de guerra fiscal.
ConJur — Por que a guerra fiscal é tão criticada? A quem ela prejudica?
Delfim Neto — A guerra fiscal não prejudica ninguém. Os estados têm muito pouco poder tributário. Há também exageros ditos por aí. Dizer que existem 27 legislações de ICMS é estória. Um estado copiou o outro. Se for ver, é tudo igual. Unificar a legislação, como propõe o governo, tem um certo charme, mas eu acho que os estados não vão entregar o pequeno poder tributário que têm se não tiverem uma garantia de reequilíbrio regional.
ConJur — Isso torna a PEC do governo praticamente inviável?
Delfim Neto — Se o governo não tem condição de convencer os governadores de que devem crer nele, então… O município não acredita no estado porque está cansado de ser enganado por ele. O estado sente o mesmo com a União. Eu, por exemplo, não acredito no governo nem quando eu estou nele.
ConJur — Mas a grande bandeira dessa PEC é justamente acabar com a guerra fiscal.
Delfim Neto — Não é essa a grande bandeira e, se for, é uma bandeira falsa. O grande inconveniente é realmente o tamanho da carga e não há nenhuma indicação de que a carga vai ser reduzida. Aliás, pelo contrário. A soma dos impostos é constante. Não há como tirar de alguém sem dar para outro alguém.
ConJur — A carga tributária vai continuar igual?
Delfim Neto — Vamos descobrir no final se ela não vai nem aumentar, nem diminuir. Mas, sem dúvida, a PEC do governo é um aperfeiçoamento.
ConJur — Onde que a PEC aperfeiçoa? Ela reduz a burocracia do sistema tributário, por exemplo?
Delfim Neto — Não. Nunca no Brasil ninguém reduziu burocracia. Reduzir burocracia é a última coisa que o Estado corporativista faz. A burocracia só aumenta. Um levantamento feito pelo instituto World Economic Forum mostra que saem, praticamente, 90 dispositivos tributários — municipais, estaduais e federais — por dia desde que foi publicada a Constituição de 88. Enquanto nós estamos conversando aqui, 45 desses negócios já caíram na cabeça dos empresários. Desde a Constituição, foram emitidos 3,6 milhões de disposições tributárias. São gastas 2,6 mil horas por ano para preencher as necessidades tributárias. Na China, são apenas 380 horas. Nos outros países, a média é de 400 horas.
ConJur — Qual o custo para acompanhar as mudanças na lei e pagar o tributo corretamente?
Delfim Neto — O custo só da arrecadação no Brasil é de 1,5% do PIB. Esse valor deveria ser somado na carga tributária.
ConJur — É muito, não é?
Delfim Neto —É claro que é muito.
ConJur — E alguém se preocupa em reduzir esse custo?
Delfim Neto — Todo mundo se preocupa, mas ninguém reduz. Isso é que nem o tempo na Inglaterra. Todo mundo critica o tempo na Inglaterra, mas ninguém faz nada para mudar.
ConJur — Mas tem como mudar? De que maneira?
Delfim Neto — É claro que tem. É preciso começar pelo começo. Ninguém vai descobrir uma reforma muito melhor do que esse que o Bernard Appy [secretário-executivo do Ministério da Fazenda] construiu. Ela está no limite da simplificação para deixar tudo como está. É isto. Mas, repito: antes de começar a reforma, era preciso criar um programa confiável de equilíbrio regional. Isso chegou a ser pensado, mas não foi feito.
ConJur — A Reforma do Judiciário, hoje Emenda Constitucional 45/04, tramitou durante dez anos até ser aprovada. A PEC da reforma tributária vai demorar tudo isso?
Delfim Neto — Eu não sei quantos anos vai levar, mas não sai até junho.
ConJur —E até o final do ano?
Delfim Neto — Em outubro, após as eleições para o Executivo e Legislativo municipais, nasce um novo país, uma nova estrutura política que pode reforçar ou não a que está aí. O resultado da eleição de prefeito tem conseqüências na organização nacional inteira — no próximo governador, no próximo presidente, na organização que os partidos vão ter nas várias Câmaras. Quando o Congresso volta a funcionar, tem que enfrentar o orçamento. Portanto, é muito provável que, em 2008, pouco seja feito. Em 2009, o primeiro semestre certamente será de trabalho. Mas, no segundo semestre, a eleição presidencial está na rua. Enfim, é um momento muito pouco propício para a reforma, ainda que se tenha conseguido construir um mecanismo muito interessante e coordenado de merchandising da guerra fiscal.
ConJur — Existe vontade política para aprovar uma reforma tributária?
Delfim Neto — A vontade política é a negação da vontade aritmética. É a vontade de que dois mais dois sejam iguais a seis. É só olhar a Constituição e ver do que é capaz a vontade política: ignorar a aritmética.
ConJur — Em matéria tributária, há segurança jurídica?
Delfim Neto — No Brasil, o futuro é incerto, mas, em matéria tributária, o passado é muito mais incerto. Não tem nenhuma segurança jurídica e é esse o maior problema do sistema tributário brasileiro. O sistema tributário é injusto, regressivo, complicado, caro, tem dificuldades de atendimento e de estrutura, mas nada bate o problema da insegurança jurídica. O único imposto que presta é o imposto velho, aquele que os bacharéis esgotaram a imaginação de poder pedir ressarcimento. Eu já estou muito velho, senão eu ia também estudar direito e ser um tributarista, porque é a profissão do futuro, escreva aí.
ConJur — O Judiciário influencia muito na política tributária do país?
Delfim Neto — Não digo que ele influencia muito. O Judiciário cumpre o seu papel de dizer o que é a lei. Isso acontece porque as leis são dúbias.
ConJur — Leis dúbias é uma falha só no Brasil?
Delfim Neto — Eu acho que em todo o mundo deve ser assim, mas no Brasil é muito mais. O Brasil é o paraíso da confusão fiscal.
ConJur — De quem é a responsabilidade?
Delfim Neto — De todos nós. A única reforma que funcionou [trata-se do Código Tributário Nacional], feita em 67 por cinco grandes tributaristas e comanda por Rubens Gomes de Souza, foi destruída por nós, com trabalho e insistência, em 20 anos. Começou a ser destruída já na Constituição de 1967, que a piorou um pouco.
ConJur — O Código Tributário Nacional ainda é atual?
Delfim Neto — Ele é absolutamente necessário e fundamental. Tínhamos um sistema bastante razoável que estava na Constituição de 1967. Funcionou bem durante 20 anos, mas foi se desgastando e mudando, destruindo o sistema. Aí vem a Constituição de 1988 e consagra um sistema inteiramente absurdo. Nós vivemos hoje os resultados da Constituição de 88, que é o resultado do sonho com falta de aritmética. O problema brasileiro está no curso primário. Temos que ensinar todo mundo que dois mais dois é igual a quatro e a vontade política não muda isso.
ConJur — A quantidade de emendas constitucionais bagunçou mais ainda o sistema tributário?
Delfim Neto — Foi tudo uma tentativa de melhorar.
ConJur — E melhorou?
Delfim Neto — O que é imelhorável não melhora. Nós estamos vivendo o paroxismo de um sistema tributário inconveniente.
ConJur — O mercado ficava assombrado com a possibilidade de Lula ser eleito presidente. Hoje, ele já está em seu segundo mandato e as notícias na economia são as melhores dos últimos tempos. O que aconteceu? O mercado estava errado?
Delfim Neto — É que o Lula é muito mais inteligente do que o mercado.
Revista Consultor Jurídico