Portar droga para uso próprio é crime?

Os números atuais sobre a questão das drogas ilícitas são estarrecedores. As Nações Unidas, por meio da United Nations Office for Drugs and Crime (UNODC), em seu World Drug Report de 2007, que condensa dados relativos aos anos anteriores, estimam que 5% (cinco por cento) da população mundial seja consumidor de drogas ilícitas, o que equivale a aproximadamente 200.000.000 (duzentos milhões) de usuários, eventuais ou freqüentes, de Cannabis, cocaína, heroína, anfetaminas, entre outras. Para tanto consumo, estima-se a produção anual de mais de 10.000 (dez mil) toneladas de drogas. Segundo considero, esse número é muito baixo para a realidade.

O Brasil, por suas dimensões continentais, proximidade com países produtores de drogas e sua imensa população, carecia de uma legislação que apresentasse mecanismos mais eficazes no enfrentamento punitivo das drogas. Mostrava-se importante, além disso, estabelecer como prioridade medidas preventivas ao uso indevido de tais substâncias. Urgia, ademais, o reconhecimento expresso em sede legislativa das diferenças entre usuário, pessoa em uso indevido, dependente e traficante de drogas, dando a cada um tratamento diferenciado.

A Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, veio atender a esses objetivos, punindo o traficante e o usuário, sem deixar de reconhecer este último como objeto de proteção social. Dispensou-lhe tratamento não só de infrator penal mas também como membro da sociedade com direito a cuidados especiais.

Grande avanço legislativo, recebendo aplausos por sua prudência. Sem descriminalizar a droga, nossa lei vigente pune severamente o traficante (art. 33) e vê dupla subjetividade no usuário: ativa e passiva, infrator penal e doente (art. 28 da Lei).

O tema da descriminalização do porte de droga para uso próprio não é novo. Temos acompanhado as duas correntes durante dezenas de anos. Argumentos fundamentados dos dois lados, tornando a discussão acalorada, árdua e interminável.

O jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 23 de maio, no caderno Cidades, C1, publicou notícia que espantou o mundo jurídico-penal: “TJ-SP diz que porte de droga não é crime”, “decisão de desembargador abre precedente para outros casos”.

Segundo a notícia, três magistrados da 6ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo absolveram, em grau de apelação, um réu condenado em primeiro grau por ter cometido crime de porte de cocaína para uso próprio. Para eles, portar droga para uso próprio, fato definido como crime no art. 28 da Lei 11.343/06, não é delito. Cabe recurso do Ministério Público ao Supremo Tribunal Federal, ficando esclarecido que a decisão da segunda instância só tem eficácia para o réu recorrente, não tendo caráter de generalidade, isto é, não vale todos os casos.

No dia seguinte, a vez da Folha de S. Paulo, no caderno Cotidiano, C4: “TJ de São Paulo considera que portar drogas não é crime”, “decisão declara inconstitucional a lei que criminaliza o porte de drogas ilícitas”, sem restringir a notícia ao “porte de droga para uso próprio”.

Assustado, perguntei-me: “Como é que, acompanhando diariamente as decisões dos tribunais, não tomei conhecimento desse acórdão tão importante, proferido em 31 de março?”

Revelam os diários que, de acordo com o relator do acórdão, Juiz José Henrique Rodrigues Torres, da Vara do Júri de Campinas, Secretário da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) e também defensor da legalização do aborto, convocado pelo Tribunal como desembargador, a norma que define o crime de porte de droga para uso próprio é inconstitucional, pois infringe os princípios da ofensividade (o fato não atinge terceiras pessoas); intimidade (escolha subjetiva; livre arbítrio) e da igualdade (portar drogas lícitas não é infração penal). Segundo ele, no caso, não há lesão a terceiros, mas autolesão impunível.

Para se entender a questão, é preciso retroceder um pouco e apreciar a história dos bens jurídicos, como também ficar consignada a diferença entre dois fatos: 1. usar droga (ex.: fumar maconha): não é crime; 2. portar droga para uso próprio: constitui delito.

Como direi na próxima edição do meu livro “Lei Antidrogas anotada”, São Paulo, Saraiva, após o término da Segunda Guerra Mundial observou-se o surgimento do Estado Social de Direito. No plano da saúde pública, o progresso da humanidade trouxe novos tipos de doenças e vícios, exigindo do Estado cuidado redobrado no sentido de assegurar um mínimo de nível decente de vida, surgindo para a lei novos interesses jurídicos ligados ao meio ambiente, saúde pública etc.

A dogmática penal tradicional estava acostumada a tratar de interesses jurídicos tangíveis, como a vida, a incolumidade física, o patrimônio etc., normalmente relacionados a um indivíduo e de lesões pessoais facilmente perceptíveis. Com o progresso da sociedade, entretanto, surgiram novos interesses jurídicos de difícil apreciação e determinação. Assim, v.g., a saúde pública, no que se relaciona especialmente com o crime de tráfico ilícito de drogas, cujo interesse de prevenção e repressão se encontra previsto nas Constituições Federais da maioria dos países, traduzindo a pretensão de o Estado garantir o normal funcionamento do sistema no que diz respeito à observância dos direitos dos cidadãos em todos os atributos de sua personalidade, em que se inclui o referente à saúde.

O objeto jurídico principal da proteção penal nos crimes de tráfico ilícito e uso indevido de drogas é a saúde pública, bem palpável, uma vez que se encontra relacionado a todos os membros da coletividade. Deste modo, o dano, ainda que se entenda como potencial, interfere na vida real de todos os membros da sociedade, ou de parte dela, antes de lesão individual. No tocante ao cidadão, isoladamente considerado, o direito à vida, à saúde (própria), à segurança coletiva e à ordem pública integram sua objetividade jurídica secundária (mediata), i. e., são tutelados por eles de forma indireta. Há uma superposição de interesses jurídicos. A vida e a incolumidade física, p. ex., são protegidas como objetos jurídicos principais no Código Penal, no Capítulo próprio (arts. 121 e 129). Nos delitos referentes a tóxicos, contudo, aparecem como interesses jurídicos secundários. Esse bem individual se sobrepõe àquela. Protegendo-se o interesse coletivo, a saúde pública, obliquamente está sendo assegurada tutela aos bens particulares.

A saúde pública, como interesse jurídico difuso, não resulta da soma das saúdes individuais dos membros que compõem a coletividade. Realmente, o nível de saúde dos membros do corpo social é algo mais que a saúde de seus integrantes. Esse interesse superior é garantido pela CF (arts. 196 e s.) e protegido pelas normas penais incriminadoras da Lei n. 11.343/06. Trata-se de um interesse de relevante importância, uma vez que o cidadão, enquanto membro do corpo social, tem direito a um nível coletivo de saúde diferente da saúde individual (pessoal).

Temos, pela Constituição Federal, direito a um nível “coletivo” de saúde. Todos o possuindo, eu desfruto dele; se ninguém o tem, eu não o tenho. Logo, protegendo o coletivo, tutela-se o individual. Lesionando-se o interesse difuso, reduz-se o nível de vida do individual. Há lesão ao bem jurídico primário, no sentido de que o fato delituoso abaixa o nível mínimo aceitável de saúde da população (Maria Paz Arenas Rodrigañez).

A essência do delito de porte de droga para uso próprio se encontra na lesão ao interesse jurídico da coletividade, que se consubstancia na própria saúde pública, não pertencendo aos tipos incriminadores a lesão a pessoas que compõem o corpo social. Tomando em consideração o respeito que deve existir entre os membros da coletividade no que tange à proteção da saúde pública, o portador da droga lesiona o bem jurídico difuso, i. e., causa um dano massivo, uma lesão ao interesse estatal de que o sistema social funcione normalmente. O delito por ele cometido decorre da “falta de respeito com a pretensão estatal de vigilância” do nível da saúde pública (Schmidhauser), fato que não se confunde com o uso da droga, evento que se passa na esfera íntima do cidadão. Como se nota, não é necessário socorrer-se da tese do perigo abstrato, uma vez que, partindo-se do conceito de interesse difuso, pode-se construir uma teoria adequada à solução do tema. Essa lesão já conduz à existência do crime, dispensando a demonstração de ter causado perigo concreto ou dano efetivo a interesses jurídicos individuais, se houve invasão da sua esfera pessoal ou se o fato causou ou não perigo concreto a terceiros.

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Damásio E. de Jesus
advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

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