Macunaímas do Brasil – Justiça na região Norte é encarada como repressão e afronta

por Charlene Cristine Weiss

“A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. (…) Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. (…) Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.” Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.

Macunaíma, personagem principal do romance escrito por Mário de Andrade em 1928, representa o perfil do povo brasileiro. Tal romance relata a atração que o índio tem pela cidade grande, máquinas, a industrialização. O romance marcado por características cômicas, descreve os mitos indígenas, os folclores, as lendas e os provérbios da cultura indígena.

Ao escrever Macunaíma, a intenção de nosso digníssimo escritor modernista era simplesmente mostrar, de forma divertida e engraçada, a ausência de uma definição de cultura, destacando a sua submissão e a divisão em diferentes camadas. De forma simples, Mário de Andrade demonstrou que nosso país não tinha competência para buscar uma identidade própria e independente, necessitando buscar nos países europeus a sua identidade. Portanto, o objetivo principal de Mário de Andrade, do ponto de vista analítico, era justamente reunir os mais diversos elementos culturais presentes em nossa sociedade e chegar a um elemento que fizesse parte de um mesmo patrimônio cultural, ou seja, a uma mesma cultura.

Para prosseguir com o presente texto, imprescindível o comentário da globalização, que sob meu singelo ponto de vista, nada mais é do que a anulação de culturas, anulação de identidade nacional em razão de enriquecimento econômico.

Quando optei pela escolha do artigo em questão, “Macunaímas do Brasil”, não foi com a intenção de ofender a integridade moral dos índios que habitam nosso país. Tal escolha se deu em razão às aventuras do personagem de Mário de Andrade, uma vez que o mesmo esquece suas tradições, suas raízes, seu caráter, fato este bastante semelhante com o que vem ocorrendo em nossa sociedade.

Estamos acompanhando um conflito social bastante grave. A demarcação de terras no estado de Roraima. Tal demarcação vem gerando combates sangrentos desde 2005, envolvendo arrozeiros (não índios) e índios da região. Demarcar é o meio administrativo para demonstrar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas. A Constituição Federal de 1988 é clara e incisiva quando se refere aos direitos dos índios, conforme transcrição do artigo 231 abaixo:

“Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§2º: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

A lei determina que quando uma comunidade indígena possuir direitos sobre uma determinada área, é dever do Poder Público identificá-la e delimitá-la, registrando-a em cartórios de registro de imóveis e assim, protegê-la. Somente em 1970 é que as questões indígenas passaram a ser tratadas com maior importância na sociedade civil. Grupos de defesa indígenas, movimentos sociais, organizavam-se de maneira a assegurar aos índios o direito à posse das terras que pleiteavam.

O procedimento de demarcação de terras é amparado pelo Decreto-Lei 1.775 de 08/01/1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. Já o processo de identificação de terras indígenas é realizado por um grupo de técnicos especializados, definidos no Decreto 1.775/1996 e na Portaria 14/MJ, de 09/01/1996, que estabelecem as regras e diretrizes sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de terras indígenas. Esse decreto garantiu aos 19 mil índios que vivem na região de Roraima cerca 80 quarteirões de terra.

Em razão do conflito que vem acontecendo desde 2005 no estado de Roraima, os fazendeiros da região são contra o processo de demarcação em favor dos índios. Tal conflito vem gerando mortes, invasões a repartições públicas e atos de vandalismo, inclusive ameaças de morte a líderes religiosos. Importante mencionar que há alguns grupos indígenas que são contra a demarcação da terra Raposa Serra do Sol, os quais defendem os interesses dos fazendeiros. As razões para essa atitude? São muitas, principalmente a que se refere à sobrevivência daqueles índios e dos interesses por parte dos arrozeiros.

Em 2007, a empresa Itikawa Indústria e Comércio ajuizou Mandado de Segurança (MS 25.483-1 DF) em face do ato do Presidente da República em razão do Decreto Presidencial de 15 de abril de 2005, que homologou a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, do qual constam os seguintes termos:

“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso de sua atribuição que lhe confere o artigo 84, inciso IV da Constituição, e tendo em vista o disposto nos artigos 19, §1º, da Lei 6.001, de 19 de janeiro de 1973, e 5º, do Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996 e considerando o imperativo de harmonizar os direitos constitucionais dos índios, as condições indispensáveis para a defesa do território e da soberania nacionais, a preservação do meio ambiente, a proteção da diversidade étnica e cultural e o princípio federativo, Decreta:

Artigo 1º. Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela Fundação Nacional do Índio – Funai, da terra Indígena Raposa Serra do Sol, destinada à posse permanente dos Grupos Indígenas Inarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, nos termos da Portaria nº 534, de 13 de abril de 2005, do Ministério da Justiça.

Artigo 3º. O Parque Nacional do Monte Roraima é bem público da União submetido a regime jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios”.

Tal assunto é de extrema relevância e complexidade, uma vez que trata de direitos reconhecidos de uma minoria, assim como a preservação ambiental e cultural, sem contar os interesses econômicos que há por detrás disso. Esse conflito nos leva a mais antiga e atual realidade brasileira, que é a frágil distribuição homogênea de nossas terras e o problema da perpetuação dos latifúndios, e ainda, a esperança de parte da população, de encontrar na terra, uma maneira de sobreviver dignamente.

Em confronto no estado de Roraima, nesse mês de maio, cerca de dez índios foram feridos a bala na terra indígena Raposa Serra do Sol, após tentativa de ocupação da Fazenda Depósito, do prefeito do município de Pacaraima e líder da mobilização contra a demarcação da reserva.

Ocorre ainda que dois grupos de defesa de interesses indígenas possuem pontos de vistas diferentes. De um lado, o Conselho Indígena de Roraima, ligado à Igreja Católica, quer manter a demarcação. Já a Sociedade dos Índios Unidos do Norte de Roraima luta pela não-demarcação, com o apoio do governo do estado de Roraima e dos produtores rurais.

Diante de todos os fatos até aqui narrados, deparamo-nos com o problema da reforma agrária. A esse respeito, vale ressaltar que, no governo dos militares, foi criado o Estatuto da Terra, que tinha como prioridade a elaboração de um projeto de lei de reforma agrária. Ocorre que, ao invés de dividir a propriedade, como era o objetivo, mediante o apoio do governo militar da época (1964-1985), promoveu-se a modernização do latifúndio através da implantação do crédito rural. O dinheiro era forte e barato e estimulava a produção de soja em nossa sociedade, propiciando a incorporação de pequenas propriedades rurais e latifúndios, os quais passaram a exportar a soja. Conseqüentemente, o mercado internacional passou a exigir mais e mais soja de nossos pequenos produtores, e com isso, os pequenos produtores, com o auxílio do “Estatuto da Terra”, passaram a ser grandes proprietários de terra e exportadores de produtos agrícolas. Não se pode negar que houve, de fato, um aumento significativo na economia brasileira.

Infelizmente, na região Norte do país, a justiça é aplicada a bala. A palavra justiça é encarada como um paradigma de repressão e afronto aos interesses das classes mais privilegiadas.

O conflito no estado de Roraima serve para nos mostrar que a lei precisa ser aplicada. É de fundamental importância que seja cumprida a Constituição Federal, assim como a existência de boa vontade política de aplicação de medidas coercitivas e de segurança nacional para tanto. Para que seja aplicada a lei, imprescindível que haja entendimento entre o Supremo Tribunal Federal e o Governo Federal. Porém, isso não vem ocorrendo. Razões para isso? Inúmeras, infelizmente.

Enquanto isso não acontece, a questão será resolvida de forma criminosa e ilegal, prática comum na região de Roraima, onde as questões são “acertadas” a golpes de facão e a disparos de bala de espingarda.

E os motivos.

Referências

Jornal Folha de São Paulo. Ato de índios foi “terrorista”, diz governador. 07.05.08.

Jornal Folha de São Paulo. A propriedade ou a vida. Fábio Konder Comparato. 07.05.08

Policiais vivem o inferno em Roraima. Artigo publicado em 20.04.2008. Disponível na página virtual: http://www.fenapef.org.br/
htm/com_noticias_exibe

Supremo Tribunal Federal. MS 25483 / DF – Distrito Federal. Disponível na página virtual: http//:www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia
/listarjurisprudencia.asp

Reforma Agrária. Disponível na página virtual: http://www.planalto.gov.br/public_04/
COLECAO/REFAGR3.HTM

Nota à imprensa sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol. Disponível na página virtual: http//: www.funai.gov.br

A atualidade do Estatuto da Terra. Disponível na página virtual: http//: www.incra.gov.br/arquivos/0672701921.pdf.

Revista Consultor Jurídico

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