por César Augusto Baldi
A polêmica envolvendo a demarcação Raposa Serra do Sol em área contínua, com a liminar do STF suspendendo a desintrusão dos arrozeiros das terras já homologadas por Portaria do Ministério da Justiça, colocou a “questão indígena” como matéria de discussão. Não da melhor forma, contudo.
Primeiro, porque a informação veiculada, em quase todos os casos, tem destacado a violência praticada pelos indígenas a outros cidadãos, sem investigar as causas possíveis de tais atitudes, nem salientar eventuais violências praticadas contra as mesmas populações.
De um lado, parecem estar os “civilizados” e, de outro, os “bárbaros” ou “selvagens”. Não há qualquer preocupação em ouvir as populações envolvidas. São sempre outros a falar pelos e para os índios. O evento no Xingu, com o incidente envolvendo os caiapós, somente reforçou tal imagem.
Isso porque não se destacaram as críticas ao projeto hidrelétrico, que envolve não somente populações indígenas, mas também extrativistas e ribeirinhos, comunidades a que se convencionou denominar “tradicionais”.
Em segundo lugar, porque elas reatualizam o imaginário político-social que ainda associa índios a incapacidade civil, cooptação, manipulação e necessidade de tutela, num estado de “menoridade”, para qual somente podem ser “objetos de estudo”, nunca “sujeitos de direito”.
Há quase 20 anos, o ordenamento constitucional rompeu com tais parâmetros e reconheceu a plena capacidade das populações indígenas, desvinculou as políticas indigenistas do padrão de assimilação ou aculturação, e, dispondo sobre o direito originário às terras tradicionais, possibilitou o ingresso em juízo em defesa de seus direitos e interesses pelas próprias comunidades, organizações ou indivíduos.
Basta conferir o artigo 231 da Constituição e seus parágrafos. Isto implicaria, por sua vez, uma redefinição do papel da Funai e, ainda que prevista a participação do Ministério Público nas questões envolvendo indígenas, conforme o artigo 232, um outro perfil de profissional, mais adequado ao novo quadro constitucional, e, inclusive, novas formas de participação no processo.
A Subprocuradora-Geral da República Ela Wiecko de Castilho, por exemplo, destaca, com propriedade, a necessidade de um “tradutor cultural”, um profissional, em geral, um antropólogo, capaz de fazer compreender ao juiz e às demais partes do processo o contexto sócio-político e cultural daquele grupo. Ele seria responsável, pois, pelo diálogo intercultural, evitando que o “sistema judicial ignore a diversidade cultural e aplique o direito sempre do ponto de vista étnico dominante”.
O tema revela, ainda, o estranhamento, o desconhecimento e mesmo o preconceito que o país enfrenta em relação aos seus habitantes originários, não somente pelos nomes das etnias, mas também pelo total desconhecimento da variedade de grupos e línguas – hoje, são mais de 227 povos e 180 línguas – o que rompe com a idéia preconcebida de um país monocultural – apenas falante do português – mas também uniétnico.
Como bem destacara Luís Carlos Vilallta, uma verdadeira Babel ignorada, sendo necessário recordar, ainda, que o português somente se fixou como língua dominante às vésperas da Independência, prevalecendo, até então, línguas gerais como o nheengatu, que ainda se mantém como forma de comunicação na Amazônia.
Aliás, o município de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde 85% da população é indígena, estabeleceu, através da Lei 145/2002, como línguas co-oficiais o tukano, o nheengatu e o baniwa, obrigando o município a produzir documentação e fornecer serviços nas referidas línguas.
Tal estranhamento, contudo, é singular, quando se verifica que a Constituição : a) protege as manifestações das culturas indígenas e afro-brasileiras (artigo 215, parágrafo 1º), integrantes do “processo civilizatório nacional”; b) determina a fixação de datas comemorativas de significação para diferentes segmentos étnicos nacionais ( artigo 215, parágrafo 2º), projeto até o presente momento incompleto; c) considera patrimônio cultural a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (artigo 216), e, rompendo com a visão “arqueológica” de cultura, dá expressa proteção ao patrimônio imaterial, tendo a Unesco, por exemplo, reconhecido os grafismos dos índios wajãpi (AP) e o samba de roda do Recôncavo Baiano como patrimônio imaterial da humanidade.
A Constituição reconhece, ainda, a diversidade étnico-racial e cultural do país (artigo 215, parágrafo 3º, inciso V), o que inclui a discussão – ainda em aberto – envolvendo ribeirinhos, extrativistas, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu e inúmeras outras populações, constantes do projeto “Nova cartografia social da Amazônia”, a cargo do professor Alfredo Wagner de Almeida, da Universidade Federal do Amazonas.
Quarto, porque recoloca a questão da soberania e da integridade nacionais em discussão, esquecendo que: a) os territórios indígenas são propriedades da União e, pois, terras públicas (artigo 20, XI), da mesma forma que as terras de fronteira (artigo 20, II) e, portanto, facilitado o acesso das Forças Armadas e da Polícia Federal, ao contrário do que se passa em propriedades privadas; b) existe um longo histórico de defesa das fronteiras nacionais pelas populações indígenas, sendo a etnia ashaninka (AC) e sua luta contra os madeireiros do Peru o exemplo mais evidente; c) inexiste conflito entre defesa de direitos indígenas e defesa do território nacional, havendo inúmeros outros territórios indígenas já demarcados em zona de fronteira, sem qualquer perigo concreto à soberania nacional; d) não há notícia de qualquer movimento separatista indígena em qualquer país do mundo, de que é evidência a própria Bolívia, em que são os não-indígenas que capitaneiam o movimento divisionista em Santa Cruz de la Sierra e fomentam formas distintas de racismo e discriminação em relação à maioria indígena; e) os termos “nações” ou “povos” são aqueles tradicionalmente utilizados nos documentos internacionais, tendo o Brasil, em diversas ocasiões, assinalado que tais denominações não implicam qualquer tentativa separatista, que, porém, é alimentada como “fantasma” toda vez que se discutem demarcações indígenas.
Tal atitude do governo brasileiro, aliás, foi mantida na recente aprovação, pela ONU, da “Declaração dos Povos Indígenas”, que teve o veto do Canadá, Austrália, Estados Unidos e Nova Zelândia, o que significa, por outro lado, a adesão de 143 países, um número que, em geral, não é atingido em declarações deste tipo.
Quinto, porque oculta que, na raiz dos conflitos, encontra-se a disputa por: a) terras que, sendo inalienáveis e imprescritíveis (artigo 231, parágrafo 4º), colocam-se como “extra comercio” e, portanto, impassíveis de utilização privada e, assim, alvo de cobiça para fins de expansão das diversas monoculturas, ou seja, reconhecida a ocupação tradicional de indígenas, as terras são públicas e, pois, o que se busca, nestas disputas, é “reconduzi-las” ao âmbito privado de apropriação; b) territórios em que se encontra a maior parte da biodiversidade do país e, portanto, ainda a salvo de práticas de devastação ambiental, situação em que se encontram, ademais, também as terras ocupadas pelas comunidades “tradicionais” e mesmo quilombolas.
Ademais, não somente a exploração de lavras em terras indígenas (artigo 231, 3º) depende da prévia consulta dos interessados, mas também o aproveitamento de recursos hídricos e qualquer medida legislativa ou administrativa que possa afetar as comunidades indígenas (Convenção 169), aqui incluídas a construção de barragens e a revisão de demarcação de territórios.
Este direito/dever de “consulta prévia”, ainda não reconhecido oficialmente pelo STF, já o foi, de forma expressa, pela Corte Suprema da Colômbia, como integrando o “bloco de constitucionalidade”, na categoria de “verdadeiro direito fundamental” das comunidades, em discussões judiciais envolvendo a comunidade Embera Katió em disputa com usinas hidrelétricas, os Uwa em luta contra empresa petrolífera, bem como as autorizações para fumigações em plantações de coca na Amazônia.
Sexto, porque, com isto, novas ocultações são produzidas: a) que a propriedade deve cumprir sua função sócio-ambiental, respeitando, simultaneamente, a utilização adequada dos recursos naturais, o aproveitamento racional e adequado, a preservação do meio ambiente, as disposições de relações de trabalho e a exploração que favoreça bem-estar de proprietários e trabalhadores (artigos 186 e incisos), ou seja, não basta a produtividade das terras, mas o respeito de todas as condições constitucionalmente elencadas; b) que o slogan “ terra demais para pouco índio” é o obscurecimento da triste realidade fundiária do país, com imensa concentração de terras em mãos de poucos proprietários, vale dizer, os mesmos que criticam as terras ocupadas pelos indígenas são condescendentes com os latifúndios na mesma região amazônica e com a compra de terras por estrangeiros.
Sétimo, porque, para além do que se tem pensado, o racismo não é somente um processo que inferioriza o negro, mas atinge inúmeras outras populações, como os islâmicos e os índios. Neste sentido, a Declaração dos Povos Indígenas foi explícita no sentido de que “todas as doutrinas, políticas e práticas baseadas ou advogando a superioridade de povos ou indivíduos com base na origem nacional ou racial, religiosa, étnica ou diferenças culturais são racistas, cientificamente falsas, legalmente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas”.
A discussão das demarcações tem manifestado um explícito viés antiíndio, com manifestações de intolerância e discriminação que devem ser combatidas e rechaçadas, por constitucionalmente atentatórias à dignidade de tais populações e em desconformidade com os compromissos firmados pelo Brasil (artigo 4º, incisos II e VIII e 5º, inciso XLII, CF). Obrigações, aliás, às quais estão vinculados todos os integrantes dos três Poderes, aí incluídos governadores e prefeitos.
Oitavo, porque o reconhecimento da diversidade cultural implica que indígenas são, como novamente destaca a Declaração da ONU, “iguais a todos os outros povos, ainda que reconhecendo o direito de todos os povos a serem diferentes, considerarem a si próprios diferentes e serem respeitados como tais”.
É hora, pois, de reequacionar igualdade e diferença, reconhecer a interculturalidade, romper com a idéia de “tolerância imperial” (que, sendo “superior”, permite o “tolerar”) e adotar uma atitude firme contra as intolerâncias e pela descolonização do saber e do poder ( Walter Mignolo).
Isto implica, pois, um requestionamento dos direitos humanos em perspectiva não-eurocêntrica e, assim, o reconhecimento de que a nação brasileira não é européia, mas, fundamentalmente, também afro-indígena. Antes que “Terra brasilis”, como costumam denominar alguns juristas, o Brasil é, muito mais, “Pindorama”, membro de uma América que é, antes, “Abya Yala” (nome dado ao continente pelas populações originais).
No momento em que se comemoram os 40 anos do “maio de 1968”, que repensou as concepções de gênero e sexualidade e colocou a questão do combate ao machismo, ao patriarcalismo e à opressão sexual como novos patamares de direitos humanos, a questão indígena relembra que a luta por direitos humanos não se faz se não combater, ainda, o racismo e o colonialismo.
Para isso, é necessário reconhecer, antes, que o racismo é uma realidade da sociedade brasileira e, tanto mais insidioso, quanto mais “cordial” e difuso em relação aos indígenas e aos negros, e que o fim do processo colonial não implicou o fim do colonialismo, que se manteve vivo nas diversas formas de “colonialismo interno”, em que os descendentes de europeus se vêm como manifestantes de progresso e reproduzem, com os não-europeus, os padrões coloniais. O tema já fora destacado, há cerca de 40 anos, por Pablo Casanova, e que a aimará Silvia Rivera, na Bolívia, constantemente salienta em seus trabalhos teóricos sobre história oral e violências interculturais e na sua vivência prática.
Revista Consultor Jurídico