por Marcelo Coelho
Começo com uma firula político-teológica. A decisão do Supremo sobre pesquisas com embriões é certamente uma vitória da ciência, e até mesmo do bom senso. A meu ver, seria agredir demais o significado comum das palavras chamar de “pessoa humana”, dotada de direitos, um agregado de células que jamais será implantado em útero materno.
Mas não sei se é correto dizer que o STF reafirmou a “laicidade” do Estado brasileiro com sua deliberação.
A Igreja Católica poderia nunca ter existido, e mesmo assim a questão decidida pelo tribunal continuaria a ser polêmica. É um problema muito mais conceitual que religioso.
A separação entre Igreja e Estado não estaria ameaçada institucionalmente se todos os ministros do Supremo acreditassem, pelos mais variados motivos, na tese de que o embrião “já é” uma pessoa. Um ateu convicto poderia defender também a mesma tese.
Preocupa-me bem menos o tema da separação entre Igreja e Estado do que outra separação, a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Os votos de alguns ministros do Supremo, na decisão sobre as células-tronco, não se restringiram a julgar se a Lei de Biossegurança respeitava ou não a ordem constitucional.
Houve quem propusesse modificações concretas na lei, limitando, por exemplo, o número de óvulos a serem fertilizados, ou especificando condições supostamente novas para autorizar as pesquisas com células-tronco.
A preocupação de alguns ministros parecia ser com o risco de se produzirem embriões em escala industrial, apenas para pesquisas, e também com as possibilidades, deixadas abertas na lei, de se começar a escolher os filhos com base em critérios genéticos.
Isso seria, para muita gente, atentatório à dignidade humana. Em algum momento, por certo, a ciência haverá de encontrar limites mais e mais sérios nessa área.
A questão é saber se não caberia ao Legislativo debater esses novos limites, à medida que vão surgindo, em vez de abrir para o Judiciário o espaço para decidir tão livremente sobre conseqüências e desdobramentos práticos da lei existente.
Também nas questões da fidelidade partidária e do direito de greve para o funcionalismo público, o Judiciário terminou deliberando sobre assuntos que competia ao Legislativo explicitar melhor.
Culpa do Legislativo, certamente. Mas, mesmo que tivéssemos o melhor Congresso do mundo, nenhuma lei será totalmente precisa e perfeita a ponto de afastar dos juízes a tentação de redefini-la, e mesmo reescrevê-la…
O exemplo mais sintomático do que está acontecendo com o STF surgiu, entretanto, em outro assunto. Fiquei surpreendido ao ver uma foto na qual dois ministros do Supremo, em trajes de passeio, visitavam a reserva indígena da Raposa Serra do Sol, conversando com lideranças locais.
Achei bonito: as máximas autoridades do Judiciário brasileiro punham o pé na estrada, despiam-se da toga, para conhecer a realidade concreta dos casos que têm a julgar. Também pensei, entretanto: nunca o aspecto político das atividades da Suprema Corte ficou tão explícito. Com que líderes os juízes estão falando? Teriam de falar com outros também… Quais? Quem regularia, por assim dizer, o “aspecto processual” dessas entrevistas?
O fato é que os ministros do STF estão, cada vez mais, agindo e decidindo como políticos. Têm legitimidade para tanto? O fato de terem sido indicados por um presidente eleito é o bastante? No fundo, isso não é apenas conseqüência da fraqueza do Legislativo.
As sessões do STF são transmitidas ao vivo pela TV. Isso é ótimo, e é uma coisa raríssima, ou única, no conjunto das mais desenvolvidas democracias do mundo.
A transparência nas decisões do STF conduz entretanto a um efeito paradoxal. Cada ministro passa a ter, queira ou não, uma exposição pública que o torna, de imediato, um agente político no sentido mais estrito do termo.
Passa a ter, rigorosamente, seu “público”; responde, ou representa, as opiniões de um “eleitorado” informal, que o aplaudirá ou não. É apenas humano que as vaidades se acentuem nesse caso.
Quem não fica tentado a ver, em figuras como a de Ellen Gracie ou de Joaquim Barbosa, algo próximo de uma espécie de novos “salvadores da pátria”, num momento em que os políticos tradicionais se avacalham totalmente? Mas não está previsto que votemos neles. Nem está previsto como limitar o poder que eles possuem no momento.
Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na edição desta quarta-feira (4/6)./i>
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