por Airton Franco
Os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em face da Lei de Biossegurança comprovam, induvidosamente, a idéia de que a interpretação, como ali se faz, notadamente nos casos difíceis, adquire contornos de arte.
Valho-me, a propósito, no âmbito da doutrina, da excelência do exemplo citado pelo professor americano Ronald Dworkin no livro “Uma questão de princípios”. Consta, no citado livro, que certo juiz reconhece dano emocional à mãe que presencia o atropelamento de um filho, mas não reconhece com relação à tia que soube desse atropelamento, pelo telefone, a muitos quilômetros de distancia.
Valho-me, de igual modo, do exemplo concreto em que jovens da classe média ateiam fogo num índio que dorme numa parada de ônibus. Houve lesão corporal seguida de morte ou homicídio?
A melhor decisão, em tais casos, será a que mais se aproxima do direito positivo abstraído de valores morais. Vale dizer: as questões alusivas às condições sociais dos autores como filhos de elevadas autoridades inclusive ligadas ao Judiciário, as qualificações das vítimas, e outras de índole morais, devem ser aqui abstraídas… Do contrário, qualquer decisão jurídica adotada jamais redundará pacificada, mas sempre controvertida.
É claro que não se há desconsiderar diante de tão delicadas interpretações os limites como bem assentados no âmbito do devido processo legal a partir da proporcionalidade e da razoabilidade.
Ora, estas variáveis decorrem naturalmente do esforço de interpretação do Direito positivo que, em tese, deve ser abstraído de valores morais. Não se pode desprezar, por conseguinte, a conotação política para a escolha de uma ou de outra técnica de interpretação.
E nem poderia ser diferente. Pois, se nos exemplos acima o juiz teve de eleger a interpretação que lhe pareceu mais adequada, imagine-se, então, o caos que resultaria, se o Direito positivado contemplasse valores de ordem moral. Aí sim, em tal hipótese, o universo de valoração afastaria o mínimo de segurança jurídica.
Neste sentido, a proficiente doutrina de Hans Kelsen quando criou sua “Teoria Pura do Direito”. Ou seja, o Direito em si, quando positivado, abstrai-se de quaisquer conotações de valores morais. Da conotação política, não.
Como se vê, em sendo a atividade jurídica um exaustivo exercício de interpretação e em sendo a interpretação um juízo eminentemente subjetivo ou objetivo do aplicador científico da Lei, que é o juiz, a mim me é dado compreender, então, sem esforço, que a interpretação é uma arte.
Não se há obscurecer que o caráter de contingência ou de surpresa de que se acercam, por vezes, as interpretações jurídicas, propicia insatisfação de toda ordem. Alguns chegam ao exagero de, por isto, comparar o Direito a uma grande piada em alusão à arte do humorista quando interpreta uma boa piada.
A verdade é que o Direito se reveste de um significado psicológico de força, ou seja, de um caráter cogente.
É o que se verifica, por exemplo, quando uma pessoa faminta passa perto de uma banca de vendas e não arrebata frutas ou produtos comestíveis para saciar sua fome.
Por que isto ocorre?
Porque tal pessoa é, também, na prática, um aplicador do Direito, isto é, aplica o Direito que lhe proíbe furtar ou roubar o que a outrem pertence. Em suma, o Direito, na sua mais simples essência, protege a propriedade privada e o próprio sistema de mercado, ou seja, o próprio capitalismo que é inerente à condição humana em vida social…
Quando Marx fundamentou sua tese do materialismo histórico insurgiu-se contra o Direito protetor do capitalismo, ou seja, insurgiu-se, assim, contra o Direito como Estado e contra a própria Igreja que o defendia. Daí porque os marxistas são considerados ateus e proclamadores da extinção do Estado.
O Direito é, portanto, uma questão de interpretação.
Há de se ponderar, enfim, um ponto de equilíbrio como petição de princípio para que o Direito não exceda, em demasia, naquilo que a doutrina denomina de politização da Justiça.
É por isto que a decisão da Justiça criminal é, por exemplo, lenta porquanto objetiva evitar a punição de inocentes. A notícia jornalística, por outro lado, como resultante do direito à informação, é rápida porque se assenta na busca de novidades. O ideal, portanto, como ponto de ponderado equilíbrio, seria a aproximação desses dois pólos sem perder de vista seus reais objetivos que não se coadunam, destarte, com uma imprensa menos dinâmica a ponto de não perquirir novidades e sem informar com isenção ou presteza, e com uma justiça mais célere a ponto de incorrer no risco de punir inocentes.
Há de se considerar, neste sentido, a teoria da decisão jurídica de que é defensor o jurista brasileiro Rosemiro Pereira Leal, em seu livro “Relativização inconstitucional da coisa julgada”, dando conta de que o povo é que é o construtor do Direito e o juiz, quando o interpreta, não pode ir muito além do devido processo legal de modo que seu livre arbítrio consista, tão-só, na escolha política de uma decisão que, de sua vez, há de ser a mais consentânea com a expressão do Direito positivo, pois, só assim, tal decisão redundará legítima diante da idéia de que o poder emana do povo.
Assim, se, num primeiro momento, o povo elege seus políticos, num segundo momento, esse mesmo povo, a partir do conhecimento e da opinião que pelo direito à informação adquire e formula, exige, democrática e abstratamente, condutas morais e éticas de seus políticos.
A melhor idéia de democracia é, por conseguinte, a idéia de segurança e de certeza. Fora desses parâmetros, a idéia de democracia não passa de mero embuste. Vale concluir que a democracia tem, assim, estreita correspondência com o direito à informação e com o pluralismo.
Eis, como se vê, a melhor idéia de que o pluralismo de opiniões, o direito à informação e a própria democracia são garantias constitucionais assentadas como direitos fundamentais que norteiam as nações que mais avançam para uma melhor organização política e social de seus modernos Estados.
Direito e Estado são, ideologicamente, palavras sinônimas. É por isto que quando se diz Estado Democrático de Direito está se dizendo que o povo é quem legitima o Direito que, pelo Estado e sua força cogente, o conduz e o orienta para a conquista dos princípios constitucionais de liberdade, de igualdade e de fraternidade.
O Brasil vive, hoje em dia, um de seus melhores momentos constitucionais, em que pesem os aspectos — ora objetivos, ora subjetivos — de que se acercam as interpretações do Direito que, para uns, não pode ser interpretado em tiras, isto é, aos pedaços, como entende o ministro Eros Graus, e para outros, tem de ser interpretado a partir de sua literalidade sistêmica, como defende o ministro Marco Aurélio e como mais se assenta na doutrina de Rosemiro Leal tal o modo de se garantir, nas decisões judiciais, mais legitimidade da interpretação e menos politização que faz do juiz um autêntico criador negativo da norma jurídica, o que não é sua função.
Como se vê, as decisões em derredor do Direito são infinitas e as decisões jurídicas são finitas para os casos concretos em que pesem por vezes tanto criticadas porque enleadas em critérios controversos ou contingentes não merecendo, por isto, a consideração de piadas, a não ser como piadas de bom gosto… Será?
Por fim, na verdade, a interpretação do Direito assenta-se não somente na compreensão dos textos que integram o mundo do dever ser, mas, também, a real compreensão dos fatores reais de poder, elaborando-se, assim, a passagem da dimensão textual para a dimensão normativa, como pontua o ensinamento do ministro Eros Grau, em seu livro: “O direito posto e o direito pressuposto”.
Revista Consultor Jurídico