por Bruno Machado Miano
Curioso o país em que vivemos: aqui, em se plantando, realmente, tudo dá! Algumas idéias, então, quando importadas, escapam de seu modelo original, dada a fertilidade do solo e das mentes pátrias.
Foi assim com a tripartição das funções estatais: logo tratamos de necessitar duma quarta função, moderadora, a fim de regular e espancar (literalmente) os conflitos porventura surgidos entre as demais funções (máxime as funções legislativa e judiciária, já que a executiva e a moderadora eram exercidas pela mesma pessoa, por óbvio!).
Agora, em tempos de pós-modernidade e além-História, eis que surge, uma vez mais, a necessidade (criada) de um órgão para controle de uma das funções; em termos claros: a importação do Conselho Nacional da Justiça, para exercer o controle externo do Poder Judiciário.
Idealizado e querido por muitos, esse órgão externo já existia n’outros países, como a França, em que o Judiciário sequer Poder é, mas sim apêndice do Executivo. Lá, diferentemente daqui, um órgão desses reveste-se de importante mister: evitar injunções políticas na importante função julgadora. Os magistrados respondem ao Conselho, não ao Executivo.
Aqui, porém, nossa fertilidade foi mais longe: o órgão criado, denominado CNJ, já nasce premido por injunções, eis que composto por membros estranhos à magistratura (indicados pela advocacia, pela Câmara dos Deputados, pelo Senado e pelo Ministério Público) e que, por isso mesmo, nunca vivenciaram o dia-a-dia de um juiz numa comarca do Interior, não sabem os percalços por que passa o Judiciário, suas deficiências estruturais, seu absoluto déficit de recursos humanos, a pletora de feitos e a inflação legislativa decorrente do uso desmedido e abusivo de medidas provisórias (sempre ad eternum).
Apesar disso, a eles compete, desde a Emenda Constitucional 45, de 2004, “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (…)”, nos termos do artigo 103-B, parágrafo 4º, da Constituição Federal.
Seria o melhor dos mundos, numa visão panglossiana, não fossemos uma Federação e um Estado de proporções continentais. Criticava-se o conjunto de ilhas isoladas em que se constituíra o Poder Judiciário, quer Federal (por meio de seus TRF’s), quer Estadual (por meio de seus TJ’s)1. E vendeu-se a ilusão de que um órgão superior, com quinze Conselheiros e dezenas de juízes assessores, seria mais útil para unificar o Judiciário, maculando-lhe a autonomia, ferindo-lhe a independência e cerceando-lhe a própria auto-administração.
Sim, porque desde então outra coisa não se tem visto: o CNJ transformou-se num órgão desfigurado; se já era sem propósito, assumiu de vez sua face Leviatã. Não raras vezes suspendeu atos administrativos de Tribunais de Justiça, como se vivêssemos em Estado Unitário.
Por outra, desconsiderou as decisões das Corregedorias-Gerais das Justiças, e, mesmo não havendo omissões das Justiças Estaduais, agiu, suplantando instâncias.
Ora, não se nega que o Poder Judiciário possui graves deficiências, mas também não se deve negar que é nele que o cidadão encontra guarida para seus direitos, quando em todas as demais instâncias viu soçobrar o respeito à sua pessoa.
A questão é menos de pacotes legislativos e de informatização: é de recursos. Atacam-se os magistrados, juízes e desembargadores, como se fossemos as causas dos problemas, que vêm de décadas de absoluta falta de investimentos em estruturas (prédios, máquinas, computadores, até carimbos!, mesas, cadeiras, viaturas), recursos humanos (faltam Auxiliares, oficiais de Justiça, escreventes, juízes, desembargadores) e capacitação (treinamento adequado, reciclagem dada a constante mudança legislativa).
E o CNJ, ao invés de analisar tais questões e propor soluções, tem, mais e mais, visto o magistrado como o grande responsável pelo problema do próprio Judiciário!
Agora, como última medida, determinou a contagem, mês a mês, do número de despachos, decisões, sentenças, acordos homologados, audiências realizadas, audiências marcadas, processos arquivados, dentre outros atos praticados em cada Vara, da lavra de cada juiz.
Trata-se de suma bobagem! Cada estado da Federação possui uma realidade; dentro desse estado, cada comarca encontra uma situação diversa e adversa e, dentro da mesma comarca, as varas existentes diferem entre si, quer no tocante ao número de funcionários para auxiliar o juiz, que quanto às funções que o magistrado exerce, quer, ainda, na necessidade do magistrado acumular outras varas ou comarcas, porque não há juízes suficientes no estado2.
Demais disso, há varas que são especializadas, permitindo maior produtividade; n’outras, cumulativas, o Juiz deve julgar ações cíveis, criminais, fiscais, de família, consumeristas etc.
Numa vara cível o número de audiências é menor que numa vara de família, ao passo que nessa, por sua vez, o número de sentenças completas com resolução de mérito é infinitamente menor se comparado com aquela.
Isso significa o quê? Que um juiz de vara cível trabalha menos porque faz menos audiência? Ou trabalha mais porque faz mais sentença? Percebe-se a bobagem?
É hora, de vez por todas, de desmascararmos a ideologia que importou esse órgão externo: a pretensão de controlar magistrados, impor ritmo de trabalho, como se a atividade julgadora fosse tal qual a fabril. Não o é!
Julgar é examinar os argumentos, analisar as provas, sentir as pessoas e os fatos (não por outra, sentença radica-se em sentire), verificar e representar os efeitos políticos de que também se reveste a sentença (no âmbito de um pequeno município, as decisões geram efeitos de política criminal, familiar, eleitoral, administrativo e só quem vivenciou isso pode dar valor ao tempo de maturação de uma sentença, de um despacho ou de uma decisão interlocutória).
E quantas e quantas vezes uma simples decisão toma muito mais tempo que dezenas de sentenças em conjunto uma liminar de Ação Civil Pública, o deferimento de uma liberdade provisória, o bloqueio de bens, a quebra de uma empresa.
Nada disso os números mostram. Daí porque a matemática não integra as Ciências Humanas e não pode ser aplicada nestas searas. Truísmo: estatísticas auxiliam, desde que sirvam para alguma coisa. No caso, é serviço jogado fora, demonstrando, uma vez mais, quão despicienda foi a criação de um órgão externo que parece não ter coragem para apontar os problemas realmente aflitivos para o Judiciário: falta de verbas, falta de recursos, falta de orçamento próprio.
Ou o Estado Brasileiro resolve investir de fato em Justiça, entendendo que isso é papel, função e missão do corpo social, dotando o Poder Judiciário de percentual próprio do orçamento, ou ficaremos todos contando despachos para nos dizermos produtivos, enquanto o cidadão aguarda, angustiado, a resolução do seu problema — que é, de fato, o que lhe interessa!
Notas de rodapé
1. Aliás, arquipélagos por arquipélagos, por que não, então, criarmos um Conselho Nacional das Assembléias Estaduais, para controlar a administração dos Poderes Legislativos Estaduais? E um Conselho Nacional das Câmaras Municipais? Tudo para conferir organicidade. Como dito, a imaginação brasileira não dá mostras de esgotamento e sempre subverte tudo, tomando alhos por bugalhos. Isso soa absurdo, mas não soou agrilhoar o Poder Judiciário. Por quê?
2. Seria o mesmo que determinar a outros Agentes Políticos contar seus atos, para saber se são produtivos: quantos projetos apresentaram os Deputados Estaduais e Federais, quantas obras inauguraram cada Governador, quantos projetos saíram do papel. Busca-se produtividade por meio da quantidade de atos; olvida-se a política de cada Corregedoria de analisar o Juiz conforme seu histórico, sua personalidade, e, mais ainda, conforme o que deseja cada Poder Judiciário: uma máquina de sentenciar ou um agente transformador, que atenda às pessoas, ouça os advogados, vivencie os problemas de sua Comunidade e faça viver o Direito como instrumento de Justiça? Cada Corregedoria, por certo, saberá agir.
Revista Consultor Jurídico