Passo para trás – Alterações no CPP ferem princípios constitucionais

por Fábio Antônio Tavares dos Santos

O presidente Lula sancionou, na última sexta-feira, 20 de junho, a Lei 11.719, com período de vacatio legis de 60 dias, que faz bruscas alterações no código de Processo Penal, com intuito de acelerar o trâmite dos processos criminais. Nada menos que 29 artigos foram modificados, bem como 15 artigos foram revogados.

Trata-se da maior modificação pós-constituição no diploma processual penal e trará profundas mudanças no sistema penal do país. Em análise preliminar, a nova lei, formalmente, não traz uma gravosidade iminente, clara, pois ao modificar ritos e procedimentos, que há muito eram alvos de críticas de setores leigos da sociedade, parece que dará celeridade aos feitos criminais. Mas é apenas uma impressão.

Não obstante, a aplicação da nova lei na prática, antecipamos agora, resultará em frontal ofensa a princípios constitucionais, ao fundamental direito à ampla defesa ao romper o peso dos valores atribuídos à acusação e defesa, ou seja, ao princípio do contraditório.

Por que tal afirmação pessimista e alarmista?

Pelo simples fato da forma em que se dará o desenvolver açodado dos processos, renominados nos procedimentos comum e especial com ritos Ordinário, Sumário e Sumaríssimo.

O procedimento Ordinário será aplicado aos crimes com pena igual ou acima a quatro anos. O Sumário será aplicado a crimes com pena inferior a quatro anos e o Sumaríssimo, aos crimes de menor potencial ofensivo.

Procedimentos Ordinário e Sumário

1- oferece-se a denúncia;

2- (artigo 396) juiz rejeita liminarmente ou recebe (Trata-se de um primeiro juízo de valor, mas aqui há mau emprego do vocábulo‘recebe’ como se verá adiante) a denúncia e ordena a citação do réu para responder por escrito à acusação no prazo de 10 dias.

Estamos diante do primeiro e mais grave problema. Vejamos, na prática o réu receberá a citação e terá 10 dias para:

a) contratar um advogado;

b) o advogado, antes de ser contratado e acertar honorários, como é de praxe, terá que ‘ver os autos’, ou seja, precisará de cópias;

c) Tais cópias, como é sabido, não são disponibilizadas no momento e em comarcas de grande movimento, como São Paulo, demoram alguns dias para serem oferecidas. Da mesma forma, processos com coletividade de réus, o que hoje é o mais tradicional na seara do Direito Penal Econômico, farão enfrentar os defensores grandes percalços nesta fase, pois como é cediço, os autos estando em ‘pedido de cópias’ normalmente devem voltar ao cartório para novos pedidos.

d) Depois de vencida esta fase, o advogado deverá estudar o feito e traçar a estratégia, acertar honorários, escolher testemunhas e providenciar documentos, pois na defesa escrita (artigo 396-A) deverá haver: ‘argüição de preliminares, alegação de tudo o que interessa à defesa, oferecimento de documentos, justificações, especificação de provas pretendidas, arrolamento de testemunhas com qualificação e pedido de intimação.’

Ou seja, neste exíguo prazo deverá a defesa estar completamente estruturada, ao nosso ver, em diametral afronta ao contraditório, pois o Ministério Público, ao contrário, estará com o autos o tempo que quiser para preparar sua exordial, como ocorre hoje, ou às vezes até presidindo as inconstitucionais investigações ministeriais, restando à defesa o improviso pelo açodamento.

E mais, tal defesa pode assumir, em diversos momentos, aspecto único de defesa escrita no processo, pois como se vê nos artigos seguintes, caberá ao juízo, discricionariamente, conceder, no procedimento ordinário, prazo de cinco dias para alegações finais em escrito após o término da audiência única de instrução, não sendo tal ‘concessão’, obrigatória, podendo se resolver o processo em debates orais na própria sala de audiências.

4- O juiz, ao receber esta inaugural defesa escrita fará segundo juízo de valor, pois poderá absolver sumariamente o réu em quatro modalidades diversas, o que demonstra a importância da peça (artigo 397), em razão de excludentes da ilicitude e da culpabilidade, atipicidade e extinção da punibilidade reconhecida.

5- Não o fazendo, o juiz ‘receberá‘ (como dissemos, se a denúncia é recebida somente neste momento, o termo ‘receber’ empregado antes é de emprego equivocado) a denúncia ou queixa (artigo 399) e designará dia e hora para a audiência una.

6- Na audiência, a ser realizada em 60 dias, no máximo, serão ouvidos o ofendido, as testemunhas de defesa e acusação, os esclarecimentos dos peritos, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas, e, ao final, interrogado o réu (artigo 400):

a) o juiz terá amplos poderes de indeferimento de provas que serão todas produzidas nesta audiência.

7- Nesta audiência, ao final, falarão MP e assistente da acusação, bem como acusado, para requerimento de diligências cuja necessidade se origine de fatos surgidos na instrução (artigo 402).

8- Se não houver requerimento ou se forem indeferidos, as partes irão aos debates orais por, no máximo, 30 minutos cada, sendo tal tempo individual para cada réu, proferindo, em seguida, o juiz, a sentença (artigo 403). O juiz poderá facultar o oferecimento de peças escritas no prazo de cinco dias sucessivamente, em razão da complexidade do caso ou do número de acusados.

9- No procedimento sumário, não se permite, expressamente tal faculdade, indo as partes, necessariamente, aos debates (artigos 531, 532, 533 e 534).

Há, ainda uma série de modificações em relações a outros tópicos do Código de Processo que merecerão outros comentários.

O que se denota do apresentado é uma grave preocupação da defesa em relação às dificuldades claras de sua própria produção e um excesso de poderes destinados ao julgador, o que pode ensejar casos de ‘arbitrariedades legais’.

No que toca às questões constitucionais da nova lei, não conseguimos dissociá-la de flagrantes inconstitucionalidades em razão de ofensa aos direitos fundamentais, principalmente ao direito à ampla defesa.

Podemos esperar barulhenta reação dos órgãos de classe, e, sinceramente, esperamos a guarida do STF aos régios princípios democráticos e pétreos, salvaguardados na Constituição de 1988.

Em termos práticos, não haverá justiça mais rápida, pois o que há hoje é excesso de processos e não um mau processo penal. Trata-se de resposta ao terror penal midiático, que sempre surge após crimes de grande repercussão.

É questão de lógica, uma audiência que duraria de uma a duas horas levará em torno de sete, oito horas, o que implicará em menos audiências por dia nas varas. No entanto, estaremos todos sujeitos à má prestação jurisdicional. Foi um grande passo para trás. Não se investe no material humano e no equipamento do judiciário, tentando resolver os problemas na base da lei. É um paliativo de péssima escolha.

Fábio Antônio Tavares dos Santos
Coordenador da área criminal

Revista Consultor Jurídico

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