Detalhes na conta – Estado não pode legislar sobre telecomunicações, diz PGR

por Maria Fernanda Erdelyi

A Lei paulista que determina às empresas de telefonia do estado a discriminação nas contas mensais dos pulsos cobrados nas ligações locais deve ser suspensa, na opinião da Procuradoria-Geral da República. O parecer foi enviado ao Supremo Tribunal Federal. A Lei 12.155, de 2005, foi questionada no STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo governador do estado, José Serra (PSDB), no início deste ano.

A Assembléia Legislativa de São Paulo argumenta que a lei diz respeito à defesa e proteção do consumidor, o que a permitiu legislar sobre o assunto. No entanto, o subprocurador-geral da República, Roberto Gurgel, que assina o parecer, acatou os argumentos do governador José Serra no sentido de que a competência para legislar sobre o setor de telecomunicações é exclusiva da União, conforme determina a Constituição Federal.

“Não há admitir que legislação não-federal possa imiscuir-se em matéria relativa à prestação de serviço cuja exploração e trato legislativo a Constituição tenha conferido privativamente à União”, afirma no parecer. A decisão do Supremo nesta ação valerá apenas para o estado, mas abre precedentes para outros processos semelhantes. O relator da ação é o ministro Eros Grau.

Segundo Gurgel, a Lei paulista também afronta o princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão uma vez que impõe despesas com a obrigatoriedade do detalhamento da conta, além de estipular multa por faturas emitidas irregularmente.

ADI 4.019

Leia o parecer

Nº 4057-PGR-AF

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.019-7

REQUERENTE: GOVERNADOR DE SÃO PAULO

REQUERIDA: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE SÃO PAULO

RELATOR: Min. Eros Grau

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI PAULISTA 12.155, DE 2005, QUE IMPÕE A DISCRIMINAÇÃO DETALHADA DE LIGAÇÕES LOCAIS EM CONTAS TELEFÔNICAS. OFENSA À COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE TELECOMUNICAÇÕES (ARTIGOS 21, XI, 22, IV, E 175, DA CF) E AFRONTA AO PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO (ART. 37, XXI, DA CF). PARECER PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedi¬do de medida cautelar, proposta pelo Governador do Estado de São Paulo em impugnação à Lei 12.155, de 19 de dezembro de 2005, da mesma unidade federativa, que “determina a discriminação detalhada das ligações locais, nas contas telefônicas”.

2. A lei impugnada tem a seguinte redação:

“Artigo 1º – As concessionárias dos serviços de telecomunicações emitirão, sem custo extra para os consumidores, conta relativa aos serviços de telefonia fixa e móvel celular que discrimine, em detalhes, todos os pulsos cobrados nas ligações locais.

Artigo 2º – As contas a que se refere o artigo 1º deverão conter, em relação a cada ligação local:

I – o número do telefone destinatá¬rio da chamada;

II – o número do telefone emissor da chamada, no caso de ligação a cobrar;

III – o tempo de duração da ligação;

IV – a quantidade de pulsos.

Artigo 3º – A inobservância desta lei constituirá violação dos direitos básicos do consumidor dos serviços de telecomunicações.

Parágrafo único – Qualquer pessoa poderá denunciar a infração aos órgãos competentes de fiscalização, à Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor – PROCON e ao Ministério Público, para a adoção das medidas cabíveis.

Artigo 4º – Sem prejuízo do disposto no artigo 3º, o descumprimento das determinações contidas nos artigos 1º e 2º sujeitará os infratores ao pagamento de multa de R$ 200,00 (duzentos reais) por conta emitida irregularmente.

Artigo 5º – Esta lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial”.

3. É possível extrair da peça inicial que o Governador requerente, no que respeita ao aspecto estritamente constitucional, sustenta que a lei impugnada usurpa a competência privativa da União para legislar sobre serviço de telecomunicações (artigos 21, XI, e 22, IV, da CF), e viola o disposto no art. 175, caput e parágrafo único, da Lei Maior, que trata do regime de prestação de serviços públicos.

4. Refere-se, como respaldo à tese de usurpação da competência privativa da União, à existência de legislação federal alusiva ao serviço de telecomunicações (Lei 9.472/97, Decreto 2.338/97 e Resoluções 85/98 e 316/2002, da Anatel).

5. O Ministro EROS GRAU, relator, aplicou ao feito o rito do art. 12 da Lei 9.868/99 (fls. 27).

6. A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo prestou as informações de fls. 32-42, afirmando, em síntese, que a lei paulista, em verdade, diz respeito à defesa e proteção do consumidor, de competência legislativa concorrente entre União, estados e Distrito Federal (art. 24, XII, CF).

7. O Advogado-Geral da União, por sua vez, sustenta, em pre¬liminar, a necessidade de emenda da inicial, por ausência de cópia da lei impugnada, e, no mérito, a inconstitucionalidade do diploma questionado, por contrariedade à competência da União prevista nos artigos 21, XI, e 22, IV, da Constituição da República (fls. 55-61).

8. De início, convém refutar a preliminar argüida pelo Advogado-Geral, visto que, embora o Governador requerente não tenha trazido aos autos cópia da lei questionada, a Assembléia Legislativa paulista o fez (fls. 49-50). Constituiria excesso de formalismo instar o requerente para, a esta altura, trazer mais uma cópia da lei impugnada aos autos.

9. No mérito, tem-se que as disposições da lei paulista excedem o campo de ação do ente federado, ganhando tortuosa movimentação sobre critérios que dizem, mais diretamente, com a exploração da atividade concedida, e não propriamente com a proteção e defesa do consumidor. Isso se tira da constatação de que a discriminação detalhada dos pulsos telefônicos de ligações locais, em todas as contas de telefonia fixa e móvel celular dos consumidores paulistas, e a imposição de multa por conta emitida irregularmente, com proibição de repasse de gastos aos consumidores, impõe gravame às concessionárias de serviço de telefonia, repercutindo, pois, de forma imediata, na própria exploração do serviço que lhes foi dele¬gada.

10. Tornar mais onerosa a prestação do serviço de telefonia é efeito que denuncia a patente inconstitucionalidade da ação pública paulista, pois elaborada em desconsideração ao pacto federativo.

11. Assim que a conduta normativa estadual faz-se considera¬velmente relevante para o andamento administrativo de serviço público federal, sua contundência ganha relevo político.

12. Teríamos que aceitar retrocesso nas relações federativas para referendar tal comportamento, pondo de lado as previsões constitucionais que, explícita e apropriadamente, atrelam a regulamentação dos modos e meios pelos quais se deva dar a prestação de serviço público à pessoa política atribuída.

13. Com essas considerações em vista, tem-se que, em tema de telecomunicações, o legislador paulista cuidou de matéria cujo trato não é da competência de seu Estado, mas sim da União, como estabelece a Constituição da República, nestes termos:

“Art. 21. Compete à União:

(…)

XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

(…)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(…)

IV – água, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;” (destacou-se).

14. Nessa competência constitucional da União, por certo deve ser incluída a disciplina acerca do detalhamento das contas telefônicas, as quais constituem, como se sabe, o meio pelo qual as concessionárias do serviço de telefonia levam ao conhecimento do consumidor os serviços efetivamente prestados e os respectivos custos.

15. Se a Constituição da República atribui expressamente à União a exploração de serviços de telecomunicações, seja por delegação, seja diretamente, bem como a disciplina legislativa respectiva, é evidente que a cargo dela também deverá ficar a edição de normas que tenham relação com os meios e modos pelos quais se dá a prestação do referido serviço.

16. Não há admitir que legislação não-federal possa imiscuir-se em matéria relativa à prestação de serviço cuja exploração e trato legislativo a Constituição tenha conferido privativamente à União. Os estados somente podem dispor sobre questões relativas às matérias de competência privativa da União quando autorizados por lei complementar (art. 22, parágrafo único, da CF), o que não ocorre no caso vertente.

17. Em julgamento relativamente recente de pedido de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, tratando de hipótese em muito semelhante à presente, concernente a lei do Distrito Federal, assim decidiu:

“EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO DIRETA. Lei Distrital nº 3.426/2004. Serviço público. Telecomunicações. Telefonia fixa. Concessão. Concessionárias. Obrigação de discriminar informações na fatura de cobrança. Definição de li¬gação local. Disposições sobre ônus da prova, termo de adequação e multa. Inadmissibilidade. Aparência de invasão de competência legislativa exclusiva da União. Ofensa aos arts. 21, XI, 22, IV, e 175, § único, incs. I, II e III, da CF. Liminar concedida. Precedentes. Votos vencidos. Aparenta inconstitucionalidade a lei distrital que, regulando a prestação do serviço correspondente, imponha a concessionárias de telefonia fixa obrigações na confecção das faturas e disponha sobre unidade de tarifação, ônus da prova, termo de adequação às suas normas e aplicação de multas” (ADI 3.322-MC, Ministro CEZAR PELUSO, j. em 2/8/2006, DJ de 19/12/2006).

18. Em sentido parecido, vale rememorar também os seguintes precedentes:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DA LEI DISTRITAL N. 3.596. IMPOSIÇÃO, ÀS EMPRESAS DE TELEFONIA FIXA QUE OPERAM NO DISTRITO FEDERAL, DE INSTALAÇÃO DE CONTADORES DE PULSO EM CADA PONTO DE CONSUMO. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 22, IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.

1. A Lei distrital n. 3.596 é inconstitucional, visto que dispõe sobre matéria de competência da União, criando obrigação não prevista nos respectivos contratos de concessão do serviço público, a serem cumpridas pelas concessionárias de telefonia fixa – artigo 22, inciso IV, da Constituição do Brasil.

2. Pedido julgado procedente para declarar inconstitucional a Lei distrital n. 3.596/05” (ADI 3.533, Ministro EROS GRAU, DJ de 6/10/2006).

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROJETO DE LEI ESTADUAL DE ORIGEM PARLAMENTAR. VETO TOTAL. PROMULGAÇÃO DA LEI PELA ASSEMBLÉIA. NORMA QUE DISCIPLINA FORMA E CONDIÇÕES DE COBRANÇA PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES. MATÉRIA PRIVATIVA DA UNIÃO. OFENSA AO ART. 21, XI, DA CF. LIMINAR DEFERIDA” (ADI 2.615-MC, Ministro NELSON JOBIM, DJ de 6/12/2002).

19. No presente caso, ao lado da violação específica da compe¬tência da União para explorar diretamente, ou mediante delegação, os serviços de telecomunicações (art. 21, XI, da CF), e para legislar privativamente sobre telecomunicações (art. 22, IV, da CF), é de se ter ainda como afrontada a reserva de lei estabelecida no art. 175, caput e parágrafo único, da Constituição, artigo que possui, em sua completude, a seguinte redação:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado”.

20. É indiscutível que a lei à qual aludem o caput e o parágrafo único do art. 175 da Constituição Nacional deve ser lei editada pelo ente federativo competente para a prestação do serviço.

21. Desse modo, é inegável que somente a União pode editar lei que disponha sobre a prestação, direta ou delegada, dos serviços públicos de sua competência – entre os quais se inclui o de telecomunicações –, bem como sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias que prestam tais serviços e os direitos dos usuários. Isso vem apenas corroborar o que já se extrai dos mencionados artigos 21, XI, e 22, IV, da Lei Maior.

22. De se ponderar, ainda, que, em vista das despesas que a lei paulista impõe às concessionárias de serviço de telefonia, não só em razão da obrigatoriedade de detalhamento das contas telefônicas, mas também pela cominação de multa incidente por fatura emitida irregularmente, o diploma estadual ofende o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de serviço de telecomunicações e, assim, o disposto no art. 37, XXI, da Constituição da República.

23. O princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de serviço público tem sido invocado por esse Supremo Tribunal em casos como o que ora se apresenta, como se constata pela leitura das ementas de julgados abaixo transcritas:

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Argüição de inconsti¬tucionalidade da Lei 11.462, de 17.04.2000, do Estado do Rio Gran¬de do Sul. Pedido de liminar. – Plausibilidade jurídica da argüição de in¬constitucionalidade com base na alegação de afronta aos artigos 175, ‘caput’, e parágrafo único, I, III e V, e 37, XXI, todos da Constituição Federal, porquanto Lei estadual, máxime quando diz respeito à concessão de serviço público federal e municipal, como ocorre no caso, não pode alterar as condições da relação contratual entre o poder concedente e os concessionários sem causar descompasso entre a tarifa e a obrigação de manter serviço adequado em favor dos usuários. – Caracterização, por outro lado, do ‘periculum in mora’. Liminar deferida, para suspender, ‘ex nunc’, a eficácia da Lei nº 11.462, de 17.04.2000, do Estado do Rio Grande do Sul” (ADI 2.299-MC, Ministro MOREIRA ALVES, DJ 29/8/2003).

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – CON¬CESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS – INVASÃO, PELO ESTADO-MEMBRO, DA ESFERA DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO E DOS MUNICÍPIOS – IMPOSSIBILIDADE DE INTERFERÊNCIA DO ESTADO-MEMBRO NAS RELAÇÕES JURÍDICO-CONTRATUAIS ENTRE O PODER CONCEDENTE FEDERAL OU MUNICIPAL E AS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS – INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO, POR LEI ESTADUAL, DAS CONDIÇÕES PREVISTAS NA LICITAÇÃO E FORMALMENTE ESTIPULADAS EM CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS, SOB REGIME FEDERAL E MUNICIPAL – MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. – Os Estados-membros – que não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais estabelecidas entre o poder concedente (quando este for a União Federal ou o Município) e as empresas concessionárias – também não dispõem de competência para modificar ou alterar as condições, que, previstas na licitação, acham-se formalmente estipuladas no contrato de concessão celebrado pela União (energia elétrica – CF, art. 21, XII, ‘b’) e pelo Município (fornecimento de água – CF, art. 30, I e V), de um lado, com as concessionárias, de outro, notadamente se essa ingerência normativa, ao determinar a suspensão tem-porária do pagamento das tarifas de-vidas pela prestação dos serviços concedidos (serviços de energia elé-trica, sob regime de concessão fede-ral, e serviços de esgoto e abasteci-mento de água, sob regime de con-cessão municipal), afetar o equilíbrio financeiro resultante dessa relação jurídico-contratual de direito administrativo” (ADI 2.337-MC, Ministro CELSO DE MELLO, DJ 21/6/2002).

Ante o exposto, o parecer é pela procedência do pedido, a fim de que essa Corte declare a inconstitucionalidade da Lei 12.155, de 19 de dezembro de 2005, do Estado de São Paulo.

Brasília, 13 de junho de 2008.

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA EM EXERCÍCIO

Revista Consultor Jurídico

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