O direito à vida prevalece sobre o direito à integridade moral e psíquica. Com esse entendimento, o juiz Charles Maciel Bittencourt, de Soledade (RS), negou o pedido de interrupção de gravidez formulado pela mãe de uma adolescente, de 15 anos, com retardo mental e que foi vítima de estupro. A menina está grávida de cinco meses.
Para o juiz, as limitações da adolescente não determinam que seu bebê também as possua, já que nos autos não há nenhuma prova nesse sentido. “Talvez seja esta a oportunidade de a filha da autora ter mais uma razão para integrar-se ao meio social, uma vez que não se verifica, em princípio, alienação completa da adolescente”, afirmou o juiz,
Bittencourt assinalou ainda que não são raros os casos em que pessoas portadoras de necessidades especiais convivem “normalmente” em sociedade, com companheiros, filhos, em perfeita adaptação ao meio social.
Fundamentos
O juiz destacou que o estágio atual de gravidez, ainda que autorize a realização do aborto, resultará em riscos à vida da adolescente. “Dada a conclusão médica, não se afigura aconselhável autorizar a interrupção da gravidez no estágio em que se encontra, sob pena de, aí sim, ser causado risco à vida/saúde da adolescente”.
Charles Bittencourt acrescentou ainda que, “mesmo sendo compreensível a intenção da genitora em submeter sua filha a tal espécie de procedimento, caso houvesse tempo hábil, cumpria indagar-lhe se não prefere a incolumidade da adolescente à gestação”.
Para o juiz, no caso, há dois direitos contrapostos: o direito à vida de alguém totalmente indefeso e o direito à integridade moral e psíquica da adolescente. “O primeiro direito deve prevalecer, principalmente, para se preservar não só a vida do feto, mas, também, da própria gestante, consoante restou delimitado pelo perito, diante dos riscos de uma intervenção cirúrgica no estágio da gestação atual”, afirmou.
Ele ressaltou que, caso a mãe da jovem não tenha interesse ou condições de zelar pela criança, é plenamente legítima a entrega à adoção.
Processo 6.244-094
Leia a decisão:
PODER JUDI CIARIO
COMARCA DE SOLEDADE – JUIZADO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
PROCESSO N° 6244-094
NATUREZA: Interrupção Gravidez
REQUERENTE: xxxx
JUIZ PROLATOR: Charles Maciel Bittencourt
DATA: 19/06/2008
Rh. Vistos.
Trata-se de pedido de interrupção de gravidez apresentado por xxx, na condição de genitora de xxx, de 15 anos de idade, sob a alegação de que esta, portadora de retardo mental (fI. 10) foi vítima de estupro.
O feito restou distribuído junto à 1 Vara Judicial desta Comarca, tendo sido indeferido o pedido de urgência (fI. 17).
O Ministério Público manifestou-se nas fls. 18-20, opinando tratar-se de matéria de competência do Juizado da Infância e Juventude, bem como pela intimação da autora para que traga laudo médico indicando a possibilidade de realização do aborto.
Este Magistrado declinou da competência para o Juizado do Tribunal do Júri (fls. 21-2).
A Colega que jurisdiciona o Tribunal Popular declinou da competência para o Juizado da Infância e Juventude (f Is. 24-6).
Este Juízo firmou sua competência para processamento do feito (f Is. 29-30).
Sobreveio laudo pericial (f 1. 37), e sua complementação (fI. 42), bem como cópia de inquérito policial (fls. 45-84).
Oportunizada vista dos autos à parte requerente, esta se manifestou pelo deferimento do pedido (tI. 86).
O Ministério Público opinou pela procedência do pedido (f Is. 88-90).
É o relatório. Decido.
Inicialmente, convém salientar que o presente feito somente foi ajuizado em 30.05.2008 (fl. 02), e que, ainda que este Juízo tenha buscado imprimir máxima celeridade ao seu processamento (especialmente considerada a insuficiência de elementos aportados com a inicial), o termo indicado pelo perito para interrupção da gravidez se avizinha (23.06.2008 — conforme fI. 37), caso fosse deferido o pedido, o que faz imperiosa a prolação de sentença, sendo que tal providência resta albergada pelo princípio da instrumentalidade das formas, as quais servem apenas para a utilidade do processo, que restará prejudicada se postergado o julgamento.
Tecidas tais considerações, passo à análise do mérito.
O pedido aforado pela genitora da adolescente xxxx é deveras compreensível e apto a sensibilizar qualquer indivíduo (mesmo operadores do Direito — os quais não estão imunes aos preceitos sociais), tanto que a) própria legislação infra-constitucional previu a hipótese de abortamento necessário sentimental no ano de 1940 (Código Penal, artigo 128, incisos 1 e II).
Desse modo, o primeiro enfoque a ser analisado diz respeito ao fato de que não se está tratando da hipótese de “aborto necessário” (art. 128, inciso 1 do Código Penal), e sim do, denominado por alguns, “aborto sentimental” (art. 128, inciso li do Código Penal).
Logo, a finalidade da interrupção da gravidez no caso presente não está atrelada ao risco de vida à gestante ou ao fato de tratar-se de feto anencéfalo (o que vem sendo chancelado pela Justiça), mas possui caráter de liberalidade da mãe da gestante (que atua como sua representante legal), que não pretende prosseguir com a gestação, tendo em vista a alegação de ser ela “indesejada, pelo fato de a filha estar acometida de retardo mental, pelo sofrimento psicológico e moral e, ainda, porque tal fato agravará o estado de saúde de sua filha”. Estas são as razões elencadas na inicial (conforme fI. 02).
Portanto, vê-se claramente o porquê de o aborto autorizado pelo art. 128, inciso II do Código Penal ser intitulado de “aborto sentimental”, uma vez que decorre do (des)interesse da gestante no prosseguimento da gestação.
Dada tal interpretação, impende referir que, da leitura do laudo médico da tI. 42, o caso in concreto não permite a realização do procedimento de interrupção da gravidez sem que haja risco de vida à gestante (adolescente), tendo o expert nomeado pelo juízo declinado expressamente o seguinte:
“Os riscos maternos inerentes deste procedimento estão direta e proporciona/mente relacionados ao período de gestação, ou seja, à idade gestacionaL Estes riscos, em Hospital capacitado para este fim são minimizados, mas não são nulos. Estes riscos incluem hemorragias, infecção e os relacionados ao ato anestésico.
No primeiro trimestre, até as 12 semanas, estes riscos são de pequena monta.
Após o primeiro trimestre a indução ao aborto deve ser medicamentosa. Este fato pode estar associado a um risco maior de insucesso deste procedimento, o que exige manipulações cirúrgicas de dificuldades crescentes podendo atingir um índice de morbidade cirúrgica quatro ou cinco vezes maior do que os riscos do procedimento executado no primeiro trimestre” (g.n.).
Ou seja, embora não se desconheça a existência de riscos na realização de qualquer intervenção médica, especialmente a cirúrgica, verifico que o estágio atual de gravidez da requerente, ainda que autorize a realização do aborto, lhe resultará em riscos à própria vida.
Portanto, entendo que não se justifica a pretensão da genitora da adolescente no abortamento, sendo que este poderá privá-la da própria filha, cuja vida poderá ser ceifada na busca da interrupção da gravidez.
E, assim sendo, ainda que compreensível a intenção da genitora em submeter sua filha a tal espécie de procedimento, caso houvesse tempo hábil, cumpria indagar-lhe se não prefere a incolumidade da adolescente à gestação, em razão de sua profissão (enfermeira).
Nesse ínterim, registro que uma das motivações elencadas pela parte requerente, evitar o agravamento do estado de saúde da adolescente, não possui adminículo de prova nos autos, tampouco foi suscitada pelo perito nomeado pelo Juízo (fls. 37 e 42), sendo consabido, aliás, o conceito de que a gravidez, de per se, não compromete a saúde da gestante.
Fosse esta a hipótese, a leitura poderia ser distinta.
No entanto, não é o risco de vida da filha da requerente que está em jogo no caso presente, e, dada a conclusão médica, não se afigura aconselhável autorizar a interrupção da gravidez no estágio em que se encontra, sob pena de, aí sim, ser causado risco à vida/saúde da adolescente.
Além disso, considerado o advento da Constituição Federal de 1988, entendo que seja indispensável tecer uma análise constitucional do dispositivo autorizativo, tendo em vista o princípio da Supremacia Constitucional, sendo que a Lex Mater deve permear todo o sistema jurídico pátrio, sendo que compete ao Poder Judiciário o controle de constitucionalidade das normas, o qual in casu é admissível pela via difusa.
Aliado a tais circunstâncias fáticas, em que pese não se desconheça a interpretação protagonizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 351011, ouso afirmar que o feto no estágio que se encontra na situação presente (com formação de seus órgãos vitais completa, o que ocorreu por volta da 12 semanas de gestação2) é plenamente digno de proteção legal e, mais do que isso, constitucional.
A proteção legal se evidencia, a uma, pela própria dicção do art. 2 do Código Civil, o qual, a par dos debates terminológicos (se feto, nascituro ou ser humano), põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Desse modo, ainda que não se possa, perante a lei civil, rogar personalidade ao nascituro, certo é que ele é um precursor da vida humana (para aqueles que afirmam que esta só se dá com o “nativivo”), com direitos ressalvados pela legislação infra-constitucional (conforme se exemplifica pelo disposto no art. 2 do Código Civil).
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), por meio de seu art. 7 ressalva o direito dos não nascidos, asseverando que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
Outrossim, é oportuno referir que a recentemente questionada Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/05), estabeleceu que a pesquisa com células-tronco embrionárias somente poderá ser realizada em relação a “embriões inviáveis ou congelados há mais de 3 anos” (ad. 5 incisos 1 e ll)3 Ora, mutatis mutandis, está o presente feto plenamente protegido, pois não se trata de mero “embrião inviável”, visto que se encontra com órgãos vitais formados, com 148 batimentos cárdio-fetais por minuto (fi. 37).
Ou seja, a própria legislação infra-constitucional recente veda a hipótese de aborto deliberado (pautado no interesse exclusivo da gestante). Nesse passo, é de rigor mencionar que, se o legislador de 1940 entendeu que à mulher/gestante compete a “discricionariedade” de disposição completa de seu corpo, tendo feito prevalecer seu sentimento de dor e angústia pelo estupro sofrido em detrimento da vida (conceito amplo) nela introjetada, cedo é que não observou os mandamentos da Constituição ora vigente, a qual somente estabeleceu a pena de morte como medida excepcional, em caso de guerra declarada (consoante ad. 52, XLVII, alínea “a”). Aí está, pois, a proteção constitucional a que faz jus o nascituro que a adolescente xxx carrega em seu ventre, podendo-se, inclusive, afirmar a inconstitucionalidade do inciso II do ad. 128 do Código Penal4.
Analisadas tais premissas, uma vez que não se pode asseverar a existência de direito absoluto, entendo que num juízo de ponderação (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), o sacrifício da adolescente e de sua genitora seja imperioso à proteção da vida que já existe (sendo que o feto se encontra, praticamente, com cinco meses). Ainda, a manutenção da gravidez é adequada à proteção dos direitos do nascituro. Por fim, deve ceder o direito da requerente e de sua filha à integridade moral e psicológica (aduzido na inicial) em favor da proteção à vida do ser humano que está por vir (se é que não se pode considerar o nascituro ser humano). Em outras palavras, no meu entender, há dois direitos contrapostos, um direito à vida de alguém totalmente indefeso, e um direito à integridade moral e psíquica de outrem, que possui outras formas para solver o impasse em tela, conforme será delineado posteriormente, sendo que o primeiro direito deverá prevalecer, principalmente, para se preservar não só a vida do feto, mas, também, da própria gestante, consoante restou delimitado pelo perito, diante dos riscos de uma intervenção cirúrgica no estágio da gestação atual.
De outro vértice, cumpre salientar que à pretensão da parte requerente (interrupção da gravidez) existem outras alternativas. Caso a genitora não tenha interesse ou condições de zelar pela criança, é plenamente legítima a entrega desta à adoção, com o que resguardará a vida de sua filha.
Outra, ainda, pode ser a leitura realizada, na medida em que, considerando-se o fato de a adolescente Rita ser portadora de necessidades especiais, não determina que seu feto também as possua, até porque não há nenhuma prova nos autos neste sentido. Assim, tal criança, no futuro, poderá contribuir como responsável pelo próprio zelo da avó (em sua velhice), ou, ainda, da própria adolescente, dada a necessidade especial que ostenta, se for o caso.
Ademais, não há nos autos esclarecimento acerca do nível de alienabilidade mental da adolescente, não se podendo desconsiderar que, embora a genitora/requerente seja sua responsável legal, tal criança pode ser fruto de relacionamento afetivo da adolescente, conforme deflui das declarações de xxx, que se afirmou “amiga e confidente da vítima” (f 1. 82), mesmo que um dos supostos pais possua outra família.
Nesse contexto, observe-se que não são raros os casos em que pessoas portadores de necessidades especiais convivem “normalmente” em sociedade, possuindo companheiros(as), filhos, em perfeita adaptação ao meio social. Talvez seja esta a oportunidade de a filha da autora ter mais uma razão para integrar-se ao meio social, uma vez que não se verifica, em princípio, alienação completa da adolescente.
Por fim, não se está desconsiderando a gravidade, em tese, do delito perpetrado contra a adolescente, porquanto o(s) eventual(is) responsável(is) poderá(ão) sofrer as sanções devidas na seara penal, se for o caso, e, infelizmente, as conseqüências já ocorreram. Logo, diante do cotejo dos direitos em colisão, reitero que deve prevalecer o direito à vida do nascituro, nos termos supra expendidos, até para preservar a humanidade e a solidariedade em relação a este, que poderá, talvez, ter uma vida no seio de outra família, na hipótese dos familiares da gestante não pretenderem a guarda da criança, sendo que aquela (gestante) poderá se restabelecer após o parto, mediante tratamento e assistência médico-psicológica.
Isso posto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido formulado por xxx, qualificada na inicial.
Sem custas.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitada em julgado, arquive-se com baixa. Diligências legais.
Soledade, 19 de junho de 2008.
CHARLES MACIEL BITTENCOURT,
Juiz de Direito.
Nota de rodapé:
1. Na qual se afirmou que: “ Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que á é própria de uma concret pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5 diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado. ADI 351 0/DF, reI. Mm. Carlos Britto, 28 e 29.5.2008. (ADI-3510)”.
2. Conforme constou do laudo pericial (ti. 42).
3. Registro que o questionamento referido trata-se da ADI 3510/DF, que restou julgada improcedente.
4. Corroborando este entendimento, já se manifestou o professor de Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal, Henrique Savonitti Miranda, em artigo intitulado – “Investigações acerca da constitucionalidade do ‘aborto sentimental’ no direito positivo brasileiro’ Disponível em http//www.savonitti.br/cursos/doutrina/aborto.asp. Acesso em: 19.06.2008.
Revista Consultor Jurídico