Inelegibilidade: barrando os “ficha suja”

O Senado Federal, em meio à pressão popular para barrar a candidatura de políticos com “fichas sujas” iniciou a discussão do Projeto de Lei Complementar nº 390/05 com a emenda substitutiva apresentada, para complementar a regulamentação do disposto no § 9º do art. 14 da Constituição Federal:

“§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Verifica-se, de pronto, que não se trata de uma faculdade conferida ao Legislativo, mas de expressa determinação para que o Congresso Nacional acrescente às hipóteses de inelegibilidades previstas nos §§ 4º e 8º, do art. 14 outros casos de inelegibilidade.

Só que a Constituição não deu uma carta em branco ao Parlamento Nacional. Prescreveu balizamentos mínimos para a ação do legislador, que deve buscar motivação válida do ato legislativo, fundamentando sua ação, dentre outros valores, na proteção da probidade administrativa e na moralidade para o exercício do mandato.

Assim, o projeto legislativo em discussão altera a redação da letra e do art. 1º da Lei Complementar nº 64/90, que condiciona a inelegibilidade ao trânsito em julgado da sentença condenatória por crimes aí especificados.

Pelo projeto ficam inelegíveis ‘os que forem condenados, em primeira ou única instância ou tiverem contra si denúncia por órgão colegiado, pela prática de crimes definidos como hediondos, de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, contra a administração pública, a economia popular, a fé pública, os costumes, o patrimônio público, o meio ambiente, a saúde pública, o sistema financeiro, dolosos contra a vida, de abuso de autoridade, eleitorais, de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores, de exploração sexual de crianças e adolescentes, ou de redução a condição análogo à de escravo, desde a condenação até o integral cumprimento da pena”.

Verifica-se do extenso rol de condutas antijurídicas que a propositura legislativa reflete a realidade atual em que os referidos delitos efetivamente foram perpetrados por alguns políticos, conforme amplamente noticiados pela mídia.

Contudo, a maior contribuição que o projeto propicia, em termos de restabelecimento do imprescindível prestígio à classe política, cuja imagem depreciativa já está a comprometer a legitimidade dos vencedores do pleito eleitoral, reside no acréscimo da letra f ao elenco de inelegibilidade previsto no art. 1º da LC nº 64/90.

Esse dispositivo torna inelegível “os condenados em qualquer instância por ato de improbidade administrativa, desde a condenação até integral execução das cominações impostas, a despeito do prazo de suspensão dos direitos políticos fixado pela sentença”.

O projeto prescreve, ainda, que “publicada a decisão que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado o registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma, se já expedito”. Evita-se a procrastinação do processo para beneficiar-se do fato consumado. Aliás, o projeto prevê a priorização das apelações interpostas pelas pessoas condenadas.

A Lei nº 8.492/92 prevê três modalidades de atos de improbidade administrativa: (a) atos que implicam enriquecimento ilícito do agente público (art. 9º); (b) atos que causam prejuízo ao erário (art. 10); e (c) atos que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).

Governantes estaduais e municipais vêm, de longa data, cometendo, impunemente, atos de improbidade administrativa na modalidade prevista na letra c retro mencionada, atentando virulentamente contra as leis orçamentárias. Vêm promovendo, de forma sistemática e planejada, desvios de verbas consignadas ao Poder Judiciário para pagamento de precatórios judiciais, como se essas verbas pudessem estar na disponibilidade jurídica do Executivo. Alguns vêm sonegando a inclusão orçamentária das verbas tempestivamente requisitadas pelo Judiciário, prática introduzida no Município de São Paulo em 2001 que caracteriza, inclusive, crime de prevaricação capitulado no art. 319 do CP.

E não fazem segredo dessa prática de ato de improbidade administrativa na certeza de sua impunidade. Alguns proclamam, publicamente, a necessidade de remanejamento das dotações orçamentárias para atender outras prioridades, como se pudesse existir prioridade maior do que a de cumprir a decisão que emana do próprio Estado, por meio do órgão que detém o monopólio da atividade jurisdicional.

Esses maus políticos, que semearam a cultura do calote de precatórios e que estão pressionando o Congresso Nacional para aprovar logo a PEC 12, conhecida como obra de Satanás, pelo visto, terão que se reeducar para o exercício das funções públicas. Terão que deixar de lado a costumeira arrogância e se curvarem diante do mandamento constitucional até agora ignorado por ausência de mecanismo repressivo eficaz.

As raríssimas condenações por atos de improbidade administrativa, tendo em conta a quantidade enorme de infrações da espécie perpetradas diariamente pelos governantes, arrastam-se por longos anos nos escaninhos da repartição judiciária por conta dos incontáveis recursos interpostos. Esse fato tem permitido a sucessiva postulação a cargos eletivos por parte de políticos notoriamente ímprobos.

Nesse particular, o projeto legislativo em discussão é digno de maiores encômios por tornar inelegível aquele que for condenado em qualquer instância por prática de atos de improbidade administrativa. Supre-se a omissão da LC nº 64/90, dando cumprimento ao disposto no § 9º, do art. 14 da CF, que determina o estabelecimento de outras hipóteses de inelegibilidade tendo em vista a proteção da probidade administrativa e da moralidade pública.

Estivesse em vigor há mais tempo medidas como as preconizadas no projeto legislativo sob exame, certamente, os sucessivos calotes constitucionais de precatórios não teriam acontecido. Nem, a Pec nº 12, apelidada de obra de Satanás, estaria sendo discutida.

A dívida de precatório não tem e nunca teve como fundamento a escassez de recursos financeiros. O que existe de fato é a decisão política de calotear os precatórios desviando suas verbas para obras ou setores que rendam dividendos políticos aos governantes. Em outras palavras, os governantes visam vantagens pessoais como objetivo principal, sendo que o benefício à sociedade é um mero efeito colateral.

Quem conhece a fundo os problemas com precatórios sabe muito bem que, quando as leis de regência da matéria são aplicadas com rigor (sem as liminares para suspender os efeitos de decisões judiciais) a fila de precatórios desaparece.

Independentemente da aprovação desse projeto legislativo não seria destoante do bom direito proceder-se a uma triagem dos candidatos negando o registro de suas candidaturas quando os interessados estiverem respondendo a processos judiciais por atos de improbidade administrativa, em qualquer instância, com respaldo na ordem jurídica global. O princípio da presunção de inocência até final condenação, que sem dúvida é um direito individual, não pode se sobrepor ao princípio da moralidade pública de interesse de toda a sociedade, permitindo que pessoas notoriamente ímprobas disputem cargos eletivos para exercerem funções de representantes do povo ou de governantes que lidam com o dinheiro público.

Se é para restabelecer a moralidade política é preciso reverter o quadro atual de escolher o menos pior, salvo raras exceções.

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Kiyoshi Harada
jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP

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