por Eduardo Mahon
O termo utilizado pelo ministro da Suprema Corte Argentina, Eugenio Raul Zaffaroni, em sua palestra no Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Ibccrim, muito embora tenha saído de voga, conserva o aspecto peculiar original, referindo-se aos grupos que auxiliam sistemas autoritários a implantarem-se num país, ou seja, promove o “ataque interno” da democracia, apoiando frentes antiliberais.
A fala de Zaffaroni, que aconteceu nesta quarta-feira (28/8), contra a omissão teórica e o descaso jurídico em tratar do genocídio, utilizando-se do recente livro O Inimigo do Direito Penal, auxilia a todos os estudiosos a entender de que forma os “inimigos” do estado e da sociedade são eleitos.
Uma forte trincheira se aninha na intelectualidade mediana dos latino-americanos, a recepcionar todos os argumentos constantes das formulações dos países centrais. Esse mimetismo triste faz com que não consigamos visualizar o cunho ideologizado dessas falas, a reforçar o medo como estratégia de abordagem. A despeito de não terem tido oportunidade de consultar bibliografias clássicas, modernas e contemporâneas que revelam a estreita relação entre cárcere e mercado, prisão e fábrica, privação da liberdade e formação de mão de obra, detenção e nível salarial, não se desculpa de forma alguma a ignorância quanto aos índices concretos de “criminalidade” e a política repressiva. É claro que não se exige do leigo, dos comentaristas e pitaqueiros de plantão debruçarem-se sobre o trabalho de Rusche, Kirchhheimmer, Baratta, Wacquant, Young, Pavarini, Melossi, entre tantos outros.
Todavia, pelos menos se espera uma reflexão sobre esse rótulo propagandeado de “escalada de violência” e uma simplória comparação histórica. É o mínimo exigido do crítico ter em mãos a relação entre os efeitos concretos do aprisionamento e os impactos sociais causados pela segregação. E não os há. É o mais básico esperado do refutador da criminologia crítica e das teorias de Hulsman ou de Ferrajoli, guardar consigo dados que permitam demonstrar a relação entre o aumento da repressão, das penas abstratas ou o recrudescimento dos regimes carcerários e a prevenção/intimidação de delitos. E não os há. Por que, então, essa reação tão forte às teses que venham deslegitimar o direito penal e o processo penal ou, pelo menos, desnudá-los à luz da crítica social? A resposta é simples – porque assim estaremos exibindo o próprio viés autoritário de nossa sociedade que, nos momentos agudos de desamparo, ainda tem saudade da ditadura.
O impacto da Lei 8.078/90 é típico, ou seja, nulo. Essa constatação os “partidários da linha dura” preferem omitir. E assim se dá com outras legislações de exceção, de autoridade, de símbolo. É necessário identificar um inimigo para voltar a artilharia e desabafar essa enorme angústia, esse desconforto, esse terror da sociedade pós-moderna. As opções norte-americanas da política das “janelas quebradas” e especialmente do “tolerância zero” provaram cabalmente não serem alternativas para cuidar do decréscimo de ocorrências criminais em médio prazo. Explica-se: basta consultar os índices de violência noutras cidades estadunidenses para constatar que em todas (Nova Iorque e todas as demais metrópoles norte-americanas) os índices de violência foram rebaixadas, incluindo naquelas que a política era diametralmente oposta à da intolerância máxima. Então, não foi isso que fez a diferença.
A fala de Zaffaroni é muito ácida. Não só faz troça da prevenção especial (fantasia transformadora do indivíduo pelo condicionamento, adestramento, reeducação, ressocialização, reprogramação carcerária), como também desacredita na prevenção geral, tanto negativa (intimidação) como positiva (reafirmação da norma). E arremata a sua magnífica palestra deixando bem claro que somente vamos ter algum êxito no combate do sistema penal que rotula o inimigo e que exterminou mais 100 milhões de pessoas (sem julgamento) no século XX, quando desmascararmos o fundo ideológico desses pensamentos reacionários.
É que essa “quinta coluna” (composta de biólogos, criminólogos, antropólogos, jornalistas, profissionais do marketing, penalistas, sociólogos e outros profissionais de saberes distintos) tem vergonha de reavivar um pensamento abertamente etiológico, racista, discriminatório e trata de escamotear os velhos discursos que conduziram a campos de concentração (inclusive nos EUA), a programas de esterilização (inclusive nos EUA), a estratégias de morte pela fome (inclusive nos EUA), a criminalização do casamento inter-racial (inclusive nos EUA).
Então, importando concepções repaginadas, fazem graça os colaboradores do sistema com uma realidade inegável — a incapacidade completa dos instrumentos penais. E, diante de dados, de discussões críticas, de comparações e de relembranças históricas, simplesmente são tomados pela necessidade de extravasar essa latente ansiedade pela carência de explicações. Freud explica, mas não justifica.
Revista Consultor Jurídico