Pulseiras da discórdia – Mesmo sumulado, uso de algemas ainda desperta paixões

por Priscyla Costa

O Supremo Tribunal Federal não editou a Súmula Vinculante 11, que restringiu o uso de algemas, para dificultar o trabalho da Polícia, mas sim para deixar claro que ou se cumpre as regras do Estado de Direito ou serão invalidados os atos de força contrários ao princípio da dignidade humana. A afirmação é do advogado criminalista Alberto Zacharias Toron.

O advogado foi um dos palestrantes no seminário Uso de Algemas e o Supremo Tribunal Federal — debate sobre a Súmula Vinculante 11, que aconteceu em São Paulo, na quarta-feira (27/8). O evento reuniu advogados, delegados, juízes, membros do Ministério Público e policiais civis e militares no Fórum Criminal da Barra Funda.

O seminário teve a participação também do deputado estadual e promotor de Justiça licenciado Fernando Capez; do juiz diretor do Fórum Criminal, Alex Tadeu Monteiro Zilenovski; do juiz Rodrigo Capez; do advogado constitucionalista e secretário de Transportes de São Paulo, Alexandre de Moraes; do juiz aposentado Luiz Flávio Gomes; do diretor-geral ajunto da Polícia São Paulo, Paulo Bicudo; e do desembargador Henrique Nelson Calandra, presidente da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis).

Prevê a Súmula Vinculante 11: “só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

O texto foi aprovado em 13 de agosto pelo Supremo. A decisão de editar a súmula foi tomada no julgamento do pedido de Habeas Corpus que requereu a anulação do júri de um réu que permaneceu algemado durante todo o julgamento. O ministro Marco Aurélio, relator da causa, acolheu o pedido da defesa e afirmou que manter um réu algemado durante o julgamento contraria a Constituição. Isso porque é preciso considerar o princípio da não-culpabilidade.

A Súmula Vinculante 11 torna o uso da algema uma exceção, como já é previsto no Código de Processo Penal Militar e na Lei de Execução Penal. O que o Supremo Tribunal Federal fez foi dar caráter vinculante à regra, sob pena de anulação do ato. Segundo os palestrantes, foi assegurado o princípio constitucional da razoabilidade — o chamado bom senso — que deve cercar, a partir de agora, as ações policiais.

A decisão de usar algema terá de estar sempre justificada por escrito. A motivação pode ser apresentada depois do ato da prisão. A mera alegação antecipada de risco de fuga, por exemplo, não poderá justificar o emprego de algema, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

O policial que descumprir a ordem poderá responder processo disciplinar administrativo. Quando não houver justificativa convincente, a prisão será considerada nula. Poderá ser anulado também todo o ato processual a que se referir a prisão, além de o estado ser chamado a responder pelo ato de seus agentes.

Algemas na prática

No Fórum Criminal da Barra Funda, por exemplo, transitam diariamente 300 presos, que vão para prestar depoimento ou ser julgados pelo Tribunal do Júri. Todos são escoltados algemados até a sala de audiências. Depois disso, é o juiz quem decide se mantém o réu algemado ou não e justifica sua decisão na ata de audiência. Esse procedimento continua igual. O que mudará é o ato do transporte do preso.

Com a Súmula Vinculante, o uso de algema durante o transporte do preso terá de ser justificado caso a caso, o que, para o deputado estadual Fernando Capez, burocratizará os trabalhos da Polícia e da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP).

Em São Paulo, a idéia é de que a corregedoria-geral do Tribunal de Justiça e a SAP criem um provimento conjunto disciplinando o trânsito de presos dentro dos fóruns criminais. Nos casos de prisão temporária e preventiva, a recomendação será a de que os juízes já especifiquem se o policial pode ou não usar as algemas. Se no momento da prisão ficar claro que a ação pode ficar prejudicada e a algema não estiver autorizada, o policial pode usá-las e depois justificar sua decisão ao juiz. O documento será anexado ao processo.

Na prisão em flagrante, o que valerá é a avaliação do policial. “Se o preso não tiver cometido crime com uso de violência, então a dica é de que não se coloque algema. Caso contrário, o uso é justificável”, explica Luiz Flavio Gomes.

Pelas algemas

A algema não significa emprego abusivo de força. Ao contrário. Serve para neutralizar a força. A opinião é do superintendente regional da Polícia Federal em São Paulo, delegado Leandro Daiello Coimbra. Segundo ele, a PF criou regras internas de conduta no caso do emprego de algemas por causa da omissão legislativa. E essas regras internas já fazem parte do cotidiano dos agentes. “Para a Polícia, não algemar o preso é a mesma coisa que colocá-lo em uma cela com as portas abertas”, afirmou Daiello.

“O policial tem um segundo para avaliar se a situação é perigosa ou não. Sua avaliação pode custar a vida de um colega e isso é mais sério do que qualquer procedimento administrativo conforme prevê a súmula”, disse o delegado. Coimbra explicou que na PF a regra para o emprego de algemas está previsto em manual interno. Pelo manual, a algema deve ser utilizada nos casos em que serve para preservar a integridade física do preso, do policial ou de terceira pessoa. “É uma técnica que evita riscos.”

O delegado afirmou que todos os casos nos quais dispensou o uso de algema não foram bem sucedidos, porque os presos tentaram reagir agredindo o agente da PF ou tentaram se livrar da prisão cometendo suicídio. “Por isso, não arrisco”, afirmou. “O momento da prisão é cercado de estresse. É impossível prever o temperamento daquele que está para ter a liberdade cerceada. A perspectiva da Polícia no uso de algema é a de manter a segurança e não a de abusar da autoridade”, afirmou.

Quando da edição da súmula, o ministro Celso de Mello criticou as ações em que agentes da Polícia Federal efetuaram prisões com uso de algemas sob a alegação de estarem amparados em manuais internos. “É preciso ler as leis, mas algumas autoridades preferem ler manuais. Configura crime de desobediência e é uma afronta visível ao que foi decidido pelo STF na semana passada”, alertou o ministro.

Paulo Bicudo, delegado-geral adjunto da Polícia de São Paulo, que participou do evento representando os interesses da Polícia Civil, defendeu que a Súmula Vinculante não interferiu no cotidiano porque a Polícia Civil de São Paulo sempre agiu dentro da legalidade. “Estamos despreocupados”, disse o delegado.

Polêmica sumulada

O deputado Fernando Capez criticou a edição da súmula: “O STF, enfurecido em razão de como vem agindo a PF, tratou de dar uma resposta emocional”. Segundo ele, “antes, o uso da algema era exagerado. Agora, a regra, além de genérica, restringiu além do necessário as algemas. É claro que não se pode negar que o STF observou sim a Constituição, mas também agiu emocionalmente. E isto representa um grande risco”.

De acordo com o deputado estadual, ainda não era tempo da edição da súmula. Isso porque a lei que disciplina o uso desse instrumento afirma que a Súmula Vinculante deve existir quando há reiteradas decisões sobre um mesmo tema na corte, o que não aconteceu no caso concreto. “A Súmula Vinculante 11 foi criada com base em dois precedentes e só. É por isso que acredito que foi mais uma reação emocional do que uma situação legal”, disse o deputado.

Luiz Flávio Gomes e Henrique Nelson Calandra afirmaram que foi editada uma “súmula de ocasião”, mas elogiaram a conduta do STF. “A súmula impedirá abusos”, afirmou o juiz aposentado Luiz Flávio Gomes. Para Calandra, é excepcional que o juiz tenha a liberdade de decidir se manterá o réu algemado. “A Justiça paulista respeitará a Súmula Vinculante e punirá os abusos dentro do que entendermos ilegal”, afirmou.

O constitucionalista Alexandre de Moraes acredita que a dificuldade estará justamente no que Calandra disse que será observado pela magistratura paulista. “O Poder Judiciário ainda não digeriu a existência das súmulas vinculantes e esse mecanismo ainda sofre rejeição. Por isso, acredito que o que se discute não é o conteúdo das súmulas, mas sim sua existência.”

De acordo com o advogado, o que precisa ser entendido é que o uso de algema foi apreciado pelo ponto de vista constitucional. O Supremo analisou o regramento já existente e deu interpretação de acordo com o que determina a Constituição Federal. A partir desse entendimento, qualquer lei criada às pressas pelo Legislativo terá seu efeito reduzido se questionada no STF, porque agora o que se tem é um ponto de vista constitucional.

“Concordo que a súmula seja genérica, mas vai permitir distinção. Não há porque espernear. Desde que motivado, o uso das algemas continua como está. Não há fantasma nenhum”, observou o constitucionalista.

“A algema não é uma questão ideológica, ao contrário do que se acredita. Ou vivemos com uma Polícia que respeita os direitos e garantias fundamentais ou vivemos com uma Polícia que não respeita as leis. Lei não é manual. Por isso que deve ser usado o princípio da razoabilidade. O bom senso vai levar o policial a interpretar a súmula com inteligência. Não é uma questão de pobre e de rico. É uma questão de inteligência”, finalizou Alberto Zacharias Toron.

Revista Consultor Jurídico

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