por Maria Tereza Sadek
Artigo originalmente publicado na edição de domingo (31/8/08), do jornal O Estado de S. Paulo
Esta semana é do Supremo. As anteriores também foram. As próximas, muito provavelmente, serão. Os temas são variados: Habeas Corpus; uso de algemas; registro de candidatos a cargos eletivos; nepotismo; demarcação de terra indígena; interrupção de gravidez de feto anencéfalo; lei seca; lei de imprensa; cotas nas universidades; mensalão; união homoafetiva; transposição do Rio São Francisco; etc. A lista, além de extensa, é repleta de questões sensíveis.
O processo de tomada de decisões expõe e confronta princípios como, por exemplo, presunção de inocência e moralidade da administração pública; direito de acusados e direito de investigar; direito de optar e imposição ou pretensão do Estado de legislar; segurança nacional; soberania nacional e direito dos índios; diversidade cultural.
O embate, contudo, não é só de princípios. Instituições, grupos, corporações, interesses, imiscuem-se em categorias filosóficas abstratas. Assim, aparecem em lados opostos índios, organizações não-governamentais, Ministério Público e governo federal versus fazendeiros, deputados e governo estadual; Igreja contra cientistas; entidades médicas em desacordo com religiosas; cúpula do Judiciário e setores da advocacia em confronto com juízes de primeiro grau, aos quais se somam integrantes do Ministério Público, membros da Polícia e associações representativas.
A relevância dos temas e sua potencialidade de provocar impactos no âmbito público, na esfera de ação de corporações e na área privada justificam que se dirija a atenção para as decisões do Supremo. Com efeito, de área de interesse quase exclusiva de juristas e de operadores do direito, a Justiça estatal passou a constar da agenda política e da pauta dos meios de comunicação.
Propostas de reforma do sistema de Justiça saíram do reino da retórica transformando-se em medidas concretas. O Judiciário e seus integrantes converteram-se em objeto de manchetes, recebendo destaque em todos os veículos, jornais, revistas, rádios, televisões e blogs. A própria TV Justiça – uma singularidade brasileira -, no início vista com desdém pela maior parte dos conhecedores de mídia, tem conquistado audiência, especialmente quando transmite julgamentos vistos como memoráveis.
A rigor, esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é novo. A novidade está em seu robustecimento, em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização deu ensejo a uma atuação ampla por parte do Judiciário e particularmente de sua corte suprema, o STF. Não é acidental que o Supremo seja levado a se pronunciar sobre tantos assuntos e menos ainda que eles digam respeito a tão ampla gama de temas. A Constituição de 1988 consagrou extenso rol de direitos, conferiu condições que garantem status de poder ao Judiciário, ampliou o número de legitimados com acesso direto ao Supremo. Ademais, a expressiva judicialização de questões políticas, econômicas e sociais implicou a composição dos tribunais como arena de disputas políticas e instância decisória final.
Em termos comparativos internacionais, é possível dizer que a participação do Judiciário na esfera pública é quase tão antiga quanto sua ascensão a Poder de Estado e a Corte Constitucional. Bastaria recordar a atuação da Suprema Corte americana e seu impacto na vida pública daquele país. Os exemplos são muitos. É, porém, suficiente lembrar seu apoio à segregação racial, negando a cidadania para os negros na primeira metade do século 19; sua intervenção invalidando leis sociais que objetivavam limitar a jornada de trabalho, em 1905; sua oposição ao New Deal do presidente Roosevelt; sua decisão a favor da pílula anticoncepcional e do aborto.
Quer agindo de forma conservadora quer de forma progressista é inegável o papel político do Judiciário. O desempenho desse papel está fortemente condicionado pelo desenho institucional da corte constitucional, mas também por características de seus integrantes. O perfil de seus ministros faz diferença. Em outras palavras, a despeito dos incentivos a uma atuação política propiciada pelos parâmetros institucionais, traços individuais contam. Em conseqüência, a atuação da corte reflete de forma inequívoca se o grupo é mais ou menos homogêneo, do ponto de vista ideológico e doutrinário; se predominam comportamentos mais ou menos reservados, atitudes mais ou menos agressivas, mais ou menos sensíveis a problemas sociais; enfim, importa como é ocupado o espaço concedido aos atributos individuais, tanto os vistos como positivos como os negativos.
Na mesma medida em que se robustece o protagonismo do Judiciário, crescem e se acirram as posições favoráveis e as contrárias a esse fenômeno. A valorização do ativismo judicial e do constitucionalismo tem seu contraponto na contenção, nos riscos da extrapolação de suas funções, nos preceitos majoritários. A polêmica, uma vez mais, não é só de princípios. Está em jogo a força relativa das instituições e de seus integrantes, como também a distribuição de poder no interior das instituições, a manutenção de privilégios e a efetivação de projetos políticos.
Face a tais características, não há como desconhecer a importância e o significado do Supremo na vida pública. Importância e significado que têm crescido nos últimos anos, impulsionados por características de seus integrantes. Qualquer que seja sua decisão, ou mesmo sua decisão de adiar uma decisão, tem potencial de produzir efeitos notáveis.
Para nos atermos a exemplos mais recentes, bastaria recordar as reações de lideranças políticas, de parlamentares, seus parentes e apaniguados em relação às imposições relativas à contratação de pessoas ligadas por vínculos familiares. E, por outro lado, as respostas favoráveis por parte dos que defendem uma administração pública baseada na impessoalidade, no mérito, na moralidade. Quanto à questão da demarcação de área indígena, postergar a decisão funciona como recurso de busca de solução salomônica, com maior potencial de pacificação das partes em conflito.
A vitalidade do Supremo é inquestionável. Os últimos anos testemunham seu protagonismo, decidindo ou postergando decisão, suscitando maior ou menor controvérsia. Sua presença é constante, como protagonista principal ou como ator pronto a entrar no palco. Tem tanto disciplinado matérias, atendo-se às suas clássicas atribuições, como legislado, adentrando em searas parlamentares. O presidente do Senado, ciente do risco do espaço perdido, reconheceu uma regra básica da política – a inexistência de vácuo. Ou, como consta dos escritos federalistas, “o poder é abusivo por natureza”. Hoje, o que está em discussão não é o protagonismo do Judiciário, mas sua extensão e limites.
Revista Consultor Jurídico