Editorial do jornal O Estado de S. Paulo
Criadas em 2003 para facilitar o combate à corrupção e ao crime organizado, as varas especializadas em lavagem de dinheiro se converteram em objeto de uma polêmica que dividiu a magistratura. A cúpula do Judiciário acusa juízes responsáveis por essas varas de exorbitar de suas prerrogativas, acolhendo pedidos de quebra de sigilo telefônico, fiscal e bancário formulados em termos vagos por órgãos policiais e pelo Ministério Público, enquanto associações de magistrados os defendem, alegando que eles têm sido rigorosos no julgamento de crimes cada vez mais sofisticados.
A polêmica esquentou ainda mais na semana passada, depois que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, anunciou que pedirá ao Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerce o controle externo do Judiciário, uma avaliação do desempenho de algumas dessas varas e de seus titulares. Atualmente, há no país 23 varas especializadas no julgamento de crimes de lavagem de dinheiro. Segundo Mendes, em vez de se limitarem a julgar de modo isento e imparcial os processos que lhes são submetidos, os titulares de algumas dessas varas teriam passado a agir de comum acordo com delegados e procuradores da República.
Para o presidente do STF, esses juízes, ao apoiar as operações midiáticas da Polícia Federal, teriam passado por cima de garantias fundamentais asseguradas pelo artigo 5º da Constituição, comprometendo o princípio da autonomia dos Poderes. “Policiais, procuradores e juízes não podem fazer o trabalho a seis mãos. Cada um tem de fazer seu trabalho específico – a polícia investigando, o Ministério Público denunciando suspeitos e o juiz julgando de forma independente”, diz Mendes.
Embora não tenha citado nomes, fica evidente que o principal alvo de suas críticas é o juiz Fausto Martin De Sanctis (que, por sinal, foi objeto de uma representação disciplinar encaminhada ontem ao CNJ pelo deputado Raul Jungmann, da CPI dos Grampos, que o acusa de ter concedido à Polícia Federal autorizações para interceptações telefônicas sem a fundamentação exigida por lei durante a Operação Satiagraha). Titular da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, Sanctis foi alçado às manchetes dos jornais por ter decretado duas vezes a prisão do banqueiro Daniel Dantas, em julho, no decorrer dessa operação. A segunda decisão foi tomada 24 horas depois de o presidente do Supremo ter acolhido pedido de Habeas Corpus autorizando a libertação do banqueiro. Sentindo-se afrontado, Mendes prometeu levar o caso ao CNJ. Em desagravo ao colega da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, 130 juízes federais divulgaram nota de protesto contra essa medida, apoiados por 42 procuradores da República.
Na última quinta-feira, em encontro que manteve com membros da CPI dos Grampos, Mendes voltou a criticar esses juízes. Ele afirmou que os inquéritos e processos relacionados a crimes de lavagem de dinheiro têm sido conduzidos por um mesmo grupo de pessoas, configurando o que chamou de “ação concertada”. O presidente do STF afirmou que esses magistrados não são escolhidos por sorteio, como ocorre nas demais ações criminais, e citou casos em que um mesmo juiz fez a instrução do inquérito, colheu provas e depois julgou os acusados.
Na mesma conversa, Mendes alegou que, ao se aliarem a delegados e procuradores, alguns juízes das varas de lavagem de dinheiro estariam agindo como integrantes de “milícias”. A crítica foi tão contundente que, na sexta-feira, a Associação dos Juízes Federais expediu nota classificando-a como “grave, ofensiva e desrespeitosa”. A entidade, que reúne 13 mil juízes, exigiu da cúpula do Judiciário uma “investigação profunda” para apurar se as denúncias de Mendes têm fundamento. Foi em resposta a essa nota que o presidente do STF anunciou a decisão de pedir ao CNJ que tome as providências necessárias para avaliar a atuação dos juízes das varas especializadas e enquadrar aqueles que estariam exorbitando de suas prerrogativas.
Resta esperar que o CNJ tenha a firmeza e a prudência necessárias para arbitrar esse confronto.
Editorial publicado nesta quarta-feira (10/9)
Revista Consultor Jurídico