60 anos – Prisão de depositário infiel viola os Direitos Humanos

Este texto faz parte da série especial sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos preparada pela Secretaria de Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal. A declaração foi aprovada pela 3ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948.

Por ocasião do transcurso dos 60 anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A da Assembléia-Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, o Brasil registra avanços substanciais neste campo. Isto se reflete não só no próprio texto de sua Constituição Federal de 1988 e nas emendas oferecidas a seu texto, como também na jurisprudência dos tribunais brasileiros.

No Supremo Tribunal Federal, é exemplo dessa evolução a abordagem do tema por ocasião de julgamentos que versem sobre a prisão do depositário infiel. Se a CF, em seu artigo 5º, inciso LXVII, ainda admite essa prisão como uma das exceções em que é possível a prisão por dívida — a outra é a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia —, a Suprema Corte não tem mais admitido nem esse tipo de restrição da liberdade.

Tendência

O ministro Marco Aurélio, precursor dessa tendência, já vinha, há tempos, negando a prisão de depositário infiel. Em março deste ano, esta corrente ganhou um aliado importante: o ministro Celso de Mello, que até então se alinhava entre os defensores do texto do inciso LXVII do artigo 5º da CF, mudou de entendimento e passou a defender claramente a não-prisão do depositário infiel.

Fundamento desta tendência é o próprio artigo 5º da Constituição, no que trata dos direitos fundamentais do homem. A idéia básica é que, além da vida, a liberdade constitui o maior bem do ser humano, que só pode ser cerceado em casos excepcionalíssimos.

A mesma idéia vem levando o tribunal a ser cada vez mais exigente, também, com o cumprimento dos pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal para a manutenção de uma pessoa sob prisão preventiva. Quando o juiz não fundamenta devidamente a existência concreta desses pressupostos — que são a garantia da ordem pública e econômica, a conveniência da instrução criminal e a garantia da aplicação da lei penal — para decretar a prisão, a Suprema Corte, com base em jurisprudência que se vem consolidando, tem determinado a soltura do indiciado ou réu.

Depositário infiel

A tendência contra a prisão do depositário infiel consolidou-se na última quarta-feira, quando o Plenário do STF, por maioria, restringiu a prisão civil por dívida ao inadimplente voluntário e inescusável de pensão alimentícia. Até a prisão civil de depositário judicial infiel, cuja manutenção foi proposta pelo ministro Menezes Direito, foi rejeitada pela maioria. Para dar efetividade à decisão, o Plenário revogou a Súmula 619/STF, que a admitia.

A decisão foi tomada na conclusão do julgamento dos Recursos Extraordinários 349.703 e 466.343 e do Haeas Corpus 87.585, em que se discutia a prisão civil de alienante fiduciário infiel. Nos REs, os bancos Itaú e Bradesco questionavam decisões judiciais que consideraram o contrato de alienação fiduciária em garantia equiparado ao contrato de depósito de bem alheio (depositário infiel) para efeito de excluir a prisão civil.

O Plenário rejeitou os dois recursos e estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois recursos. No HC, que foi concedido, seu Autor se insurgia contra a sua prisão civil sob acusação de ser depositário infiel.

Direitos humanos

“A Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais”, disse o ministro Cezar Peluso durante o julgamento, ao lembrar que os direitos humanos são direitos fundamentais com primazia na Constituição. “O corpo humano, em qualquer hipótese (de dívida) é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o ‘corpus vilis’ (corpo vil), sujeito a qualquer coisa”.

No mesmo sentido, o ministro Menezes Direito afirmou que “há uma força teórica para legitimar-se como fonte protetora dos direitos humanos, inspirada na ética, de convivência entre os Estados com respeito aos direitos humanos”.

Tratados e convenções proíbem a prisão por dívida

Em sua decisão desta semana, a maioria dos 11 ministros que integram o STF levou em contra os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário, os quais proíbem a prisão civil por dívida. É o caso, por exemplo, do Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992, e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, patrocinado em 1966 pela Organização das Nações Unidas (ONU), ao qual o Brasil aderiu em 1990. Por seu turno, a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá (Colômbia), com a participação do Brasil, já previa esta proibição naquela época, enquanto a Constituição brasileira de 1988 ainda recepcionou legislação antiga sobre o assunto.

Também a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena (Áustria), em 1993, com participação ativa da delegação brasileira, então chefiada pelo ex-ministro da Justiça e ministro aposentado do STF Maurício Corrêa, preconizou o fim da prisão civil por dívida. O ministro Celso de Mello lembrou em agosto passado, quando foi iniciado o julgamento das REs e do HC concluído na última quarta-feira, que, naquele evento de Viena, ficou bem marcada a interdependência entre democracia e o respeito dos direitos da pessoa humana, tendência que se vem consolidando em todo o mundo.

Tratados com força supralegal

No julgamento da última quarta-feira (3/12), venceu, por 5 votos a 4, a corrente capitaneada pelo presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, que defende a supralegalidade dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, vencida a corrente liderada pelo ministro Celso de Mello, que confere a eles status equivalente ao do texto da Constituição. A primeira corrente – que considera esses tratados acima da legislação ordinária do país, porém abaixo do texto constitucional — admite, entretanto, a hipótese do nível constitucional desses tratados, quando ratificados pelo Congresso pelo mesmo rito obedecido pelo Congresso Nacional na votação de emendas constitucionais (ECs): votação em dois turnos nas duas Casas do Congresso, com maioria de dois terços, conforme previsto na EC 45, que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da CF.

Revista Consultor Jurídico

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