Luiz Salvador *
A doutrina e a jurisprudência têm se debatido no exame de qual é a natureza jurídica da obrigatoriedade de submeter-se a demanda trabalhista à apreciação preliminar da Comissão de Conciliação Prévia.
Essa submissão é instituída como condição ao exercício pleno do direito de ação assegurado no artigo 5º, inciso XXXIV da CF, que dispõe: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: (a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. O inciso XXXV do mesmo artigo complementa a garantia: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A discussão decorre do disposto no artigo 625-D, da CLT, redação introduzida pela Lei 9.958/00. A lei estabeleceu os critérios de criação das comissões, como forma de eliminar o grande volume de ações trabalhistas na Justiça do Trabalho.
Urge ressaltar o entendimento já cristalizado que os créditos trabalhistas previstos em lei são reconhecidamente parcelas salariais alimentares, de ordem pública, irrenunciáveis. Esses créditos não se enquadram, portanto, na definição de direitos patrimoniais disponíveis, suscetíveis de renúncia e ou pactuação. Para que seja permitida a transação há que se atender ao disposto no artigo 1035 do atual CCB, cuja redação foi mantida exatamente a mesma no novo CCB a entrar em vigência em janeiro de 2003, como se pode verificar pelo exame do artigo 841: “Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”.
Por isso, que Vólia Bomfim Cassar, conclui que “quando o artigo 625-D da CLT, se referiu à submissão prévia de todas as demandas às comissões, tornou obrigatório o procedimento, apenas para as demandas em que a matéria discutida não se refira a direitos patrimoniais indisponíveis. Assim, sendo, a eficácia liberatória geral referida no artigo 635-E, § único da CLT quita apenas os demais direitos privados, além daquele transacionado, não atingindo os direitos irrenunciáveis”. (VÓLIA BOMFIM CASSAR é juíza titular da 43ª VT-RJ, professora da Ematra-RJ, autora dos livros Sentença Trabalhista e Resumo de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, in Trabalho Nacional em Revista, Editora DT, Decisório Trabalhista, ano 20, 04/02, nº 237).
Necessário para compreensão da questão que a referida lei 9958/2000 em comento não obriga a criação de comissão prévia. Mas, se criada, impõe ao trabalhador a submissão prévia de sua demanda. Quando instalada, é necessário que os pedidos sejam submetidos previamente a essa comissão, que tentará conciliar as partes. Em havendo conciliação, a comissão fornecerá certidão necessária para o ajuizamento da ação perante a Justiça do Trabalho.
É conveniente que o trabalhador não perca tempo no célere ajuizamento de sua reclamação trabalhista, haja vista a demora no atendimento da prestação jurisdicional por parte do Estado. Em face disso, muitos trabalhadores ajuizam a reclamação trabalhista, reivindicando seus créditos trabalhistas impagos e apresentam o mesmo pedido à comissão prévia, ao mesmo tempo. Tão logo obtenham a certidão negativa de conciliação, juntam-na aos autos antes mesmo do oferecimento da defesa.
Diante de tal procedimento, alguns juízes extinguem sumariamente o processo. Eles entendem que a obrigatoriedade de submissão prévia da demanda à comissão revela-se pressuposto processual de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. Na sua inobservância, cabe ao juiz a determinação de extinção do processo sem julgamento do mérito (artigo 267, inciso IV do CPC).
Do exame acurado do artigo 625-D não se consegue extrair qualquer obrigatoriedade da certidão negativa ser protocolizada junto com a peça inicial. Assim, fica proibida sua juntada a posteriori ainda que antes do oferecimento da defesa. O § 2º do artigo 625-D, diz, sim, que tal termo deverá ser juntado à eventual reclamação trabalhista. Mas não fala que seja com a petição inicial. Reclamação trabalhista é a materialização do direito de ação que se transforma em relação jurídica processual a partir da citação da reclamada para oferecimento de resposta.
O entendimento de que sua juntada deva ser feita com a inicial, em nosso entendimento, é equivocado e em nada contribui para a evolução necessária do direito processual do trabalho que hoje se defasou. Perde-se a dianteira inicialmente revolucionária em colação com o processo civil cada vez mais informal e preocupado com a efetividade do direito material subjacente.
Calmon de Passos preleciona que do exame da processualística civil vigente deve prevalecer o interesse predominante, ou seja, o interesse final de realização dos fins de justiça do processo.
Neste mesmo sentido, Moacir Amaral dos Santos, na obra “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, ressalta que: “o que se deve verificar é se o ato, pela forma que adotou, atingiu a sua finalidade próxima, de autenticar e fazer certa uma atividade, e remota, mas que lhe é própria, de meio para atingir a finalidade do processo. Quer dizer que o princípio da instrumentalidade das formas dos atos processuais recomenda que, ao julgar da validade ou invalidade de um ato processual, se atendam a dois elementos fundamentais: a finalidade que a lei atribui ao ato e o prejuízo que a violação da forma traria ao processo”.
Analisando esta questão, Valentim Carrion, conclui não tratar-se de pressuposto processual, mas de “condição da ação trabalhista, já que, inobservado esse requisito, faltaria interesse de agir” (CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho 26ªed. atual. e ampl. por Eduardo Carrion- São Paulo: Saraiva, 2001 p.459 e 460).
Jorge Luiz Souto Maior, consultado sobre seu entendimento sobre a questão debatida, manifesta-se no sentido seguinte: “(…) não considero que a passagem pelas comissões seja sequer uma condição da ação. Diante de uma reclamação trabalhista, não deve o juiz extinguir o processo sem julgamento do mérito porque a via negocial extrajudicial não fora tentada e ponto (…). Sob o ponto de vista da luta por um direito mais justo, não sou muito a favor de se acomodar com o mal menor, ou seja, de se acatar o entendimento de que a tentativa de acordo nas comissões de conciliação (quando existente) constitui uma condição da ação e não um pressuposto processual (…). No artigo 652-D ficou determinado que “qualquer demanda de natureza trabalhista será submetida à Comissão de Conciliação Prévia se, na localidade da prestação de serviços, houver sido instituída a Comissão no âmbito da empresa ou do sindicato da categoria”. Não se fixou, expressamente, que submeter-se à Comissão constitua-se condição para o ingresso em juízo, como havia no projeto de lei, e não há na lei, igualmente, uma penalidade específica para o descumprimento de tal procedimento, como também havia no projeto de lei. Não se poderá entender que a “declaração da tentativa de conciliação”, mencionada no parág. 2o., do art. 652-D[3], seja um documento indispensável à propositura da ação trabalhista, motivando a extinção do feito, sem julgamento do mérito, sem sua apresentação com a petição inicial, já que esta pena não está prevista na lei e trata-se de princípio hermenêutico a noção de que as regras de restrição de direitos não se interpretam ampliativamente; além do que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II, do art. 5º., da CF)”. (Jorge Luiz Souto Maior, Juiz do Trabalho, Titular da 3ª Vara de Jundiaí/SP, LIVRE-DOCENTE em Direito do Trabalho pela USP,autor de diversas e relevantes obras jurídicas publicadas pela Ed. LTR).
O TRT-PR, examinando esta questão, já decidiu, em entendimento atual e recente: “O juiz pode determinar o saneamento da inicial pelo descumprimento da exigência legal da submissão da demanda à comissão de conciliação prévia, desde que o faça antes da primeira tentativa conciliatória entre as partes. A extinção do processo sem julgamento do mérito somente teria cabimento quando inobservada essa determinação judicial. É que a obtenção de acordo judicial encerraria o processo, enquanto a sua não realização evidenciaria o desinteresse para a conciliação também naquela instância administrativa. Nesta última hipótese, o processo deve seguir o seu trâmite normal. Os princípios da razoabilidade e da economia dos atos processuais dão suporte a esse entendimento, mesmo porque a norma instituidora dessas comissões não impôs qualquer cominação para o caso de descumprimento do disposto no caput do artigo 625-D da CLT”. (TRT-PR-RO-8616/2001-PR-AC 01838/2002-Relator Juiz TOBIAS DE MACEDO FILHO – DJPr. Em 15-02-2002).
“Atenta contra os princípios básicos que informam principalmente o processo do trabalho (instrumentalidade, celeridade processual, simplicidade e, principalmente, economia processual) a decisão que extingue o processo, sem julgamento do mérito, por não atendimento do requisito do artigo 625-D, da CLT, quando, mesmo após o ajuizamento da ação, é comprovada a submissão do litígio à comissão de conciliação prévia” (TRT-PR-RO-9264/2001-PR-AC 05457/2002-2001, ACORDAO-Relator Juiz ARION MAZURKEVIC – DJPr. em 15-03-2002).
“O ônus da prova quanto à existência de Comissão de Conciliação Prévia, a que deveria se submeter o Autor antes de ingressar com a ação trabalhista, é da Ré. Isto porque, em regra, exigem-se apenas as condições genéricas da ação (legitimidade de partes, interesse de agir e, para parte da doutrina, possibilidade jurídica do pedido), incumbindo a quem alega a existência dessa condição específica (artigo 625-D da CLT), o ônus de prová-la, posto que, na forma do artigo 818 da CLT, a prova das alegações incumbe à parte que as fizer, incorporando o brocardo latino ‘iudicet secundum allegata et probata'” (TRT-PR-ROPS-01140/2001-PR-AC 02943/2002-Relator Juiza SUELI GIL EL-RAFIHI – DJPr. Em data de 15-02-2002).
E mesmo considerando-se que o entendimento do § 2º do artigo 625-D se refira à necessidade de juntada do referido termo com a petição inicial, os efeitos do seu incumprimento não podem ser da extinção do processo sem julgamento do mérito.
Não se trata obviamente de pressuposto processual, mas condição da ação, como elucida o lúcido ensinamento de Sérgio Pinto Martins:
“Nota-se que o procedimento instituído representa condição da ação para o ajuizamento da reclamação trabalhista” (MARTINS, SÉRGIO PINTO. Comentários à CLT, 4ª Edição, ATLAS, pág. 643).
Ivan Alemão entende também tratar-se condições da ação e não de pressuposto processual: “Verifica-se que as exigências a conciliações prévias (extrajudiciais) como condição para a ação é típica de sistema autoritário, distante das concepções democráticas. A história repete suas tragédias e farsas. Já no império havia preocupação com o enorme número de demandas e a obrigatoriedade de conciliação prévia foi implementada até que os republicanos, então modernos, passaram a combatê-la. Todavia, a proposta nunca foi superada, com especial, quanto às demandas dos trabalhadores” (ALEMÃO, IVAN. juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de São Gonçalo, autor de diversas obras jurídicas publicadas pela Ed. LTR, e dentre as quais destacamos a “Garantia do Crédito Salarial”, “Direito das Relações do Trabalho” e “Execução do Devedor, Satisfação do Trabalhador”).
Em publicação divulgada pelo site www.internet-lex.com.br e pela Revista Síntese de setembro de 2000, o renomado processualista Júlio César Bebber analisa essa polêmica da natureza jurídica da submissão da demanda trabalhista ao sistema prévio conciliatório. Conclui com clareza que não se trata nem de pressuposto, nem de “nova condição específica da ação”, mas mero interesse de agir já contemplado como uma das três clássicas condições previstas no CPC: “Criada a comissão de conciliação prévia – no âmbito da empresa ou do sindicato da categoria – na localidade da prestação de serviços, será obrigatória a passagem por ela de qualquer demanda de natureza trabalhista, como caminho necessário para o ajuizamento da ação perante o Estado (CLT, artigo 625-D, caput) [1][1].
Para alguns juristas, como é o caso do Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, tal requisito constitui pressuposto processual. Segundo ele, “a nova lei exige que, nas localidades ou empresas onde houver comissão de conciliação prévia instituída, o empregado apresente sua demanda à comissão, para apreciação (CLT, artigo 625-D), constituindo a exigência pressuposto processual para o ajuizamento de ação trabalhista, caso não seja bem sucedida a conciliação” [2][2].
Não me parece adequada, porém, essa classificação. Pressupostos processuais são requisitos que devem existir – ou não existir (caso dos pressupostos processuais negativos) – para que o processo se constitua e seja válido.
A ausência de submissão da demanda (sic) à comissão de conciliação prévia não impede que a relação processual se instaure e tenha desenvolvimento regular. O que ocorre, na verdade, é que a inobservância desse requisito impossibilita a apreciação do mérito da causa. Esse fato transporta a questão para o âmbito das prejudiciais de mérito (condições da ação), já se tendo, nesse momento, transposto a sede das preliminares (pressupostos processuais).
Outros, ainda, entendem que se trata de pressuposto processual que emerge do fato da lei exigir que a petição inicial se faça acompanhar dos documentos comprobatórios da passagem pela comissão de conciliação prévia (CLT, artigo 625-D, § 2o), ou nela haja declaração do motivo relevante que impossibilitou a observância da submissão da demanda à comissão (CLT, artigo 652-D, § 3o).
Também não me parece correto esse entendimento. Pressuposto processual de validade não são os requisitos da petição inicial, mas sim, a petição inicial apta. A ausência de um dos requisitos da petição inicial a torna inapta, e é por esse motivo (inaptidão da petição inicial) que o processo é extinto sem julgamento de mérito (CPC, arts. 267, IV e 295, inc. VI).
A exigência legal quanto aos requisitos da petição inicial (CPC, artigo 282 e CLT, arts. 840 e 852-B) – aí incluídos os documentos que devem instrui-la (CPC, artigo 283 e CLT, arts. 787 e 625-D, § 2o, in fine) – não constitui pressuposto processual destacado, uma vez que se contém no âmbito de petição inicial apta.
Sendo inversa a linha de pensamento, que, data vênia, parece-me de todo inadequado, deve-se afirmar, então, que o pedido – com as suas especificações -, a indicação do valor da causa e das formas de provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados são, também, pressupostos processuais destacados, uma vez que o artigo 282 do CPC exige a presença desses elementos na petição inicial.
Há, também, aqueles que sustentam que a exigência de fazer com que a demanda primeiro passe pela comissão de conciliação prévia é uma condição da ação específica, ao lado da legitimidade de parte, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.
Tal entendimento, muito provavelmente, é fruto da redação original do projeto de lei, que dizia: “os conflitos individuais do trabalho entre empregado e empregador serão submetidos, previamente, à Comissão de Conciliação Prévia, como condição para o ajuizamento da ação” (artigo 836-C).
Se bem refletirmos, porém, veremos que a exigência de passagem da demanda pela comissão de conciliação prévia não é condição da ação destacada ou específica, inserindo, assim, no conceito de interesse de agir.
Neste sentido, inclusive, são os ensinamentos do jovem e brilhante jurista José Affonso Dallegarve Neto: “a não-satisfação desta condição importará Carência da Ação por ausência de interesse processual, extinguindo-se o processo sem julgamento do mérito, nos termos do artigo 267, VI, do CPC”. (BEBBER, JÚLIO CÉSAR. Juiz do TRT-MS, professor da AMATRA-MS, mestrando da USP, autor de diversas, importantes e atualizadíssimas obras jurídicas publicadas pela ed. LTR).
O TRT -SP, também, examinando, o assunto, reiteradamente tem decidido que: “a tentativa de conciliação em Comissão de Conciliação Prévia não se traduz em condição da ação. A lei 9.958/00 que deu redação ao artigo 625-D da CLT em nenhum momento fixa penalidade ao empregado que não se apresenta à Comissão de Conciliação Prévia dirigindo-se diretamente ao Poder Judiciário. Não bastando isso, o direito de ação encontra-se garantido pelo artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, sendo inadmissível através de lei ordinária a afronta ao referido mandamento constitucional.” (TRT/SP 20010405644 RS – Ac. 03ªT. 20010749343 , DOE 27/11/2001, Rel. MARCELO FREIRE GONÇALVES).
“Comissão de Conciliação Prévia. Artigo 625-D, da CLT. Não há cominação para o não comparecimento à comissão de conciliação prévia, razão pela qual, constituindo uma faculdade (e não uma obrigação), não impede o ajuizamento da ação na Justiça do Trabalho” ( TRT/SP 20010312280 RS – Ac. 06ªT. 20010735946 DOE 27/11/2001- Rel. MARIA APARECIDA DUENHAS).
Conclusão
Não lhe tendo sido pagos os créditos trabalhistas, com base no disposto no artigo 5º, incisos, XXXIV (a) e XXXV da Constituição e observado o prazo prescricional regulado pelo artigo 7º, inciso XXIX (a) da Lex Legum, correto o entendimento de que para o trabalhador propor sua reclamação trabalhista deva apenas atender ao regramento processual geral, o regramento da presença apenas das condições genéricas da ação (legitimidade de partes, interesse de agir e da possibilidade jurídica do pedido).
Não há como enquadrar o termo negativo de transação em comissão prévia como “pressuposto processual”, nem como “nova condição específica da ação”. Sua juntada aos autos pode ocorrer antes da primeira tentativa conciliatória entre as partes, por ocasião da realização da audiência inaugural.
Registre-se, ainda, posicionamento mais elástico, tanto da doutrina, como da jurisprudência, no sentido de que o ônus da prova quanto à existência e comprovação de Comissão de Conciliação Prévia é da empresa reclamada em sede de defesa.
Luiz Salvador é advogado trabalhista em Curitiba e em Paranaguá, diretor de assuntos legislativos da Abrat e da Alal, e colaborador da Revista Consultor Jurídico