Nehemias Gueiros Júnior *
O que teriam em comum o inventor da imprensa Johannes Gutenberg, o escritor alemão Goethe e o pirata inglês-tornado-navegador Sir Francis Drake? Os três, cada um em seu tempo, têm uma relação direta com a pirataria, essa incansável – e incontrolável – atividade humana de copiar, reproduzir e se apoderar de obras intelectuais de outrem com finalidade lucrativa sem respeitar os direitos dos criadores originários.
A pirataria, mais ativa do que nunca nestes tempos digitais, é um dos maiores flagelos do mundo globalizado, em que literalmente tudo é copiado e reproduzido sem qualquer possibilidade de controle ou restrição a curto ou médio prazos, malgrado os esforços resultantes do estudo e da aplicação do Direito Autoral, o jovem ramo do Direito voltado para o estudo e a regulamentação da propriedade intelectual.
Antes da invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg no século XV, não havia motivo para muita preocupação com a reprodução de obras intelectuais – na época basicamente literárias e de artes plásticas – já que o simples ato de escrever um livro, pintar um quadro ou esculpir uma estátua se revestia de grande dificuldade em função das rudimentares ferramentas então existentes.
Eis porque todos os juristas, advogados e especialistas consideram a invenção de Gutenberg a pedra fundamental do Direito Autoral. A viabilidade de se reproduzir qualquer obra literária em mais de um exemplar ou cópia foi o berço fértil da contrafação e da pirataria, gerando um verdadeiro boom de utilização ilegal por toda a Europa. O escritor alemão Goethe, no século XVIII, foi obrigado a viajar por toda a Alemanha – então subdividida em dezenas de cantões – para negociar com os inúmeros contrafeitores que publicavam suas obras sem lhe pagar um tostão.
Mas a pirataria já existe há muito tempo. No século XVI, o inglês Francis Drake, com o beneplácito da coroa inglesa, pagava uma espécie de dízimo ou dividendo à realeza sobre o produto das embarcações que saqueava em alto mar. Na Roma antiga, era comum o castigo físico aos chamados “plagiadores”, que se apoderavam de versos e textos de terceiros com interesses econômicos ou políticos.
O conceito de pirataria que está hoje na ordem do dia é o da pirataria intelectual: a utilização, reprodução e copiagem desautorizadas de obras intelectuais do engenho humano, com finalidade econômica. Produtos de consumo, marcas registradas, patentes de invenção, obras literárias, artísticas e científicas, tudo hoje é objeto de reprodução e copiagem ilegal, gerando bilhões de dólares de prejuízo aos titulares dos direitos e aos mercados estabelecidos, além de prejudicar sobremaneira o desenvolvimento de novas tecnologias e colocar em risco até a saúde dos consumidores.
Em recente levantamento da indústria fonográfica mundial, foi constatado um prejuízo da ordem de US$ 3 bilhões nas vendas de produtos musicais, em virtude da massificação da copiagem de CDs e a proliferação do download via Internet. No campo da informática o dano é sensivelmente maior. A Business Software Alliance – BSA, em balanço do ano 2001 recentemente publicado, verificou um prejuízo causado pela pirataria que monta a US$ 11.75 bilhões, um incremento de 37% em termos globais.
Os esforços multinacionais para coibir a pirataria são coordenados pela WIPO – World Intellectual Property Organization, com sede em Genebra, que conta com 170 países-membros e promove a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo, administrando diversos tratados e convenções internacionais sobre a matéria.
Parte integrante do ordenamento jurídico das Nações Unidas, a WIPO tem como atuação-chave a criação de normas e padrões de regulamentação, com eficácia e aplicação mundiais, mas sempre correlacionados com a legislação específica interna das nações-membros. A WIPO opera em estreita sintonia com a Organização Mundial do Comércio (WTO), na implementação contínua de métodos e sistemas de controle e combate à pirataria em nível planetário. Um dos resultados dessa parceria é o TRIPS – Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, tratado que vigora desde 01 de janeiro de 1995: o mais extenso e detalhado acordo de proteção à propriedade intelectual até hoje existente.
Mesmo assim, com toda uma parafernália legal e física à disposição para buscar maior controle sobre as atividades de contrafação, a pirataria digital ainda é uma sombra que paira sobre o globo, na esteira da vertiginosa velocidade e imensidão informativa da grande rede de computadores Internet. Criptografia, codificação, firewalls, assinatura digital e outras salvaguardas tecnológicas que vêm sendo freneticamente desenvolvidas não são – nem serão tão cedo – capazes de estancar o fluxo avassalador da pirataria de obras intelectuais que se processa na Web.
A mastodôntica tarefa com que se deparam os juristas e advogados do nosso tempo está diretamente relacionada com a vertiginosa evolução da tecnologia – de que o Direito Autoral é irremediavelmente refém – e com a literalmente impossível missão de controlar a contrafação digital.
A Internet é incontrolável. Com a recente entrada em operação da Internet 2, de uso apenas acadêmico e 45 vezes mais veloz do que a original, bem como pelo menos outras duas redes de computação em gestação nos laboratórios do Primeiro Mundo, desenha-se no horizonte a materialização da Information SuperHighway, a superestrada da informação, que trará em seu bojo a televisão e o rádio transmitidos digitalmente, o cinema de alta definição, a banda larga e outros prodígios da tecnologia contemporânea, certamente combustível fácil – e fértil – para as atividades dos piratas digitais. Piratear é uma atividade altamente lucrativa, que não gera impostos para os países, nem royalties para os titulares dos direitos e muito menos segurança para o consumidor, que se vê reduzido à impotência absoluta no que respeita à garantia e à qualidade dos produtos que adquire.
Por outro lado, há aqueles que defendem a pirataria pela pura e simples razão do preço. Alegando que os produtos originais se tornam muito caros em função de todos os custos envolvidos, especialmente em nações mais pobres, multidões de usuários e consumidores fazem a festa dos contrafeitores, principalmente em relação a CDs, softwares e produtos de marcas famosas.
A pirataria é uma enfermidade que se alastra exponencialmente, um vírus que contamina toda a sociedade mundial do Terceiro Milênio. Todos os esforços, legais, políticos e econômicos que forem adotados para o controle e o combate da pirataria são tacanhos diante da urgente necessidade de desenvolvimento de uma política mundial voltada para o problema, tão sem fronteiras quanto a própria Internet.
Nehemias Gueiros Júnior é advogado especializado em Direito Autoral e professor da Fundação Getúlio Vargas
Revista Consultor Jurídico