Mário Gonçalves Júnior*
Criticado pelo seu caráter acentuadamente individualista, o sistema processual brasileiro que vigorou até final do século XX foi profundamente reformado para assumir uma nova feição, mais pluralista e democrática.
O excesso de formalismo, a demora na obtenção de resultados práticos e o custo de uma contenda judicial faziam com que, naturalmente, ‘pequenos’ direitos lesados não fossem levados ao Poder Judiciário para as reparações cabíveis. O cidadão preferia, como se diz no jargão, ‘deixar para lá’ pequenos prejuízos, porque maior seria tentar repará-lo através de processo judicial que, sabia-o de antemão, a decisão levaria anos a fio para ser proferida, e outro tanto para se traduzir em medidas concretas em relação ao réu.
Vários novos institutos foram criados, a maior parte deles tendo como objetivo facilitar a busca das pessoas pelo Poder Judiciário, bem como agilizar os resultados práticos dessa busca. A essas transformações, sem dúvida alguma bem-vindas, os estudiosos classificaram como medidas de acesso à Justiça.
Para Cândido Rangel Dinamarco, respeitado jurista na área de processual, “acesso à Justiça equivale à obtenção de resultados justos. É o que já se designou como acesso à ordem jurídica justa (Kazuo Watanabe). Não tem acesso à Justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma Justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem.
Augura-se a caminhada para um sistema em que se reduzam ao mínimo inevitável os resíduos de conflitos não-jurisdicionalizáveis (universalizar a tutela jurisdicional!) e em que o processo seja capaz de outorgar a todo aquele que tem razão toda a tutela jurisdicional a que tem direito. Nunca é demasiado lembrar a máxima chiovendiana, erigida em verdadeiro slogan, segundo a qual na medida do que for praticamente possível o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (A Reforma da Reforma, Malheiros, São Paulo, 2002 pág. 37).
Nem sempre se pode contar com a ética, todavia. À facilitação do acesso ao Judiciário pelo depuramento dos instrumentos legais que tornavam o processo demasiadamente lento e formalista correspondeu em proporção, o surgimento de lides temerárias, inspiradas veladamente no desejo de lucro fácil: hoje, infelizmente, o que se constata é que por qualquer razão, muitas vezes fúteis mesmo, se tenta forçar a demonstração de chamados danos morais para postular, em juízo, milionárias indenizações reparatórias.
O pedido campeão desse ‘movimento’, que bem poderia ser alcunhado de ‘caradurismo’, pode ser encontrado em boa parte das ações judiciais de reparação de supostos danos morais. Trata-se da conhecida dor da alma, que, muito embora não se discuta serem intraduzíveis economicamente, se pretende incansavelmente traduzir em dinheiro. Qualquer contratempo, angústia ou desconforto derivado de um outro dano (este sim, material, quantificável em pecúnia) = sustenta-se = deve também ser objeto de reparação, em valor a ser fixado, caso a caso, pelo juiz.
Os casos mais esdrúxulos são de tamanha teratologia que logo se espalham pelos que lidam profissionalmente com o assunto. Mas está tomando tal proporção, que o assunto deve ser amplamente discutido, para tentar recolocar a coletividade no rumo certo, seja pelos instrumentos legais que já existem, seja pela necessidade de se aprimorarem os atuais com vistas à repulsa que causam aos valores éticos de uma sociedade civilizada.
Passo a compartilhar alguns casos absurdos para reflexão…
Na revista eletrônica Consultor Jurídico de 12/7/02 foi veiculada notícia sobre um caso em que a rivalidade entre a atual e a ex-namorada foi parar na Justiça e no qual o “sofrimento” causado por injúrias desta última àquela foi considerado suficiente para indenização por danos morais.
Em outro caso, no Estado de Santa Catarina, uma menor de idade, representada por sua genitora, ajuizou ação de reparação a pretexto de ter sido ‘humilhada’ ao ser ‘barrada’ num baile de gala por não estar trajada a rigor. Pediu R$ 5.440,00 (cinco mil, quatrocentos e quarenta reais) a título de ‘reparação’. Os seguintes trechos da referida sentença dão bem o tom da estranheza (para dizer o mínimo) que assalta qualquer pessoa de bom senso diante de casos tão esquisitos:
“No Brasil, morre por subnutrição uma criança a cada dois minutos, mais ou menos. A população de nosso planeta já ultrapassou seis bilhões de pessoas e um terço deste contingente passava fome, diariamente. A miséria se alastra, os problemas sociais são gigantescos e causam a criminalidade e a violência generalizada.
Vivemos em um mundo de exclusão, no qual a brutalidade supera com larga margem os valores humanos. O Poder Judiciário é incapaz de proporcionar um mínimo de Justiça Social e de paz a sociedade. E agora tenho de julgar um conflito surgido em decorrência de um vestido. Que valor humano importante é este, capaz de gerar uma demanda judicial?
Moda, gala, coluna social, são bazófias de uma sociedade extremamente dividida em classes, na qual poucos usufruem da inclusão e muitos vivem na exclusão. Mas, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, cabe ao Poder Judiciário julga toda e qualquer lesão ou ameaça a direito. É o que passo a fazer”.
Calmon de Passos, outro renomado estudioso no assunto, brindou-nos em recente artigo intitulado O imoral nas indenizações por dano moral (“in” Jus Navigandi, n. 57 – www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp? id=2989) com outros quatro casos em que foi chamado a opinar como parecerista, em que se verificaram com maior nitidez nua e crua intenção de lucro fácil, com pedidos de indenizações estimadas pelas supostas ‘vítimas’ em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais) R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) e mais um de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
Não cabe reproduzir os históricos desses quatro casos para não delongar (até porque podem ser diretamente obtidos via internet), nos quais, segundo o autor, há visível intenção de enriquecimento desmesurado e fácil. Mas me valho de parte desse formidável estudo para nos convidar a uma maior reflexão, principalmente sobre a hipocrisia com que certos valores morais são manipulados por pessoas inescrupulosas em ações judiciais de reparação de danos: “(…) Nada mais suscetível de subjetivar-se que a dor, nem nada mais fácil de ser objeto de mistificação.
Assim como já existiram carpideiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chorá-la, porque não a experimentavam, também nos tornamos extremamente hábeis em nos fazermos carpideiras de nós mesmos, chorando, para o espetáculo diante dos outros, a dor que em verdade não experimentamos. A possibilidade, inclusive, de retirarmos proveitos financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e meliantes extremamente hábeis, quer como vítimas, quer como advogados ou magistrados.
(..) Se o filho é vitimado, o pai é premiado com uma indenização, sem se cogitar das verdadeiras relações afetivas que existiam entre este reprodutor, chamado de pai, e o fruto de sua ejaculação. Antes, quanto menos dor realmente ele experimenta, tanto maior é a sua dor oculta para fins de indenização. Não se indaga se aquele que se enche de furor ético porque teve recusado um cheque de sua emissão teve, por força disso, forte abalo emocional, ou é simplesmente um navegador esperto no mar de permissividades e tolerância que apelidamos de ousadia empreendedora. quando a moralidade é posta debaixo do tapete, esse lixo pode ser trazido para fora no momento em que bem nos convier. (…)”.
Revista Consultor Jurídico.
Mário Gonçalves Júnior é advogado do Demarest & Almeida Advogados, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho.