Decreto imperial não garante título de doutor para bacharéis

Marcelo Dolzany da Costa*

A propósito do artigo “Doutores e ‘Doutores’” (Consultor Jurídico de 20/9/02), indagaram-me se um decreto assinado por Dom Pedro I, em 1825, fundamentaria o emprego do título “doutor” aos bacharéis em Direito. Agradou-me o contraponto especialmente porque fundado numa visão exclusivamente legalista, daí fácil seu desate. (Nós outros da área jurídica já acreditamos que se liquidaria até inflação com um simples tiro de decreto-lei ou, se necessário, uma rajada de medidas provisórias).

Os cursos jurídicos foram instituídos no Brasil por obra do decreto imperial de 1º de agosto de 1825. Um de seus artigos outorgava aos concluintes da faculdade de Direito o título de “doutor”. As oligarquias não mais precisariam enviar seus filhos à Universidade de Coimbra, mas a Pernambuco e São Paulo. Rompia-se um dos laços mais fortes com a Metrópole.

O advento da República ainda esperaria a década de 30 para que se estabelecessem as bases de um sistema nacional de educação. A Constituição de 1934 explicitou a competência da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. A influência entre nós remonta à unificação italiana na segunda metade do século XIX. Um exemplo dessa inspiração é a lei piemontesa de 1861, cujos propósitos urgentes eram a erradicação do analfabetismo e a implantação de uma língua nacional como fator de consolidação do movimento de Garibaldi (BARBAGLI, 1974: p. 29, apud SAVIANI, 1997: p. 205). No Brasil, o espírito federativo desprezado na República Velha ressurge para reconhecer a cooperação entre os Estados-membros e a União na política de ensino.

Para encurtar a referência à legislação nacional, recuo o suficiente para lembrar nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases – LDB, a lei 4.024, de 20/12/1961. Seu artigo 69 previu que “nos estabelecimentos de ensino superior podem ser ministrados (…) os cursos de graduação, pós-graduação e de especialização”. O legislador deixou bem claro que tais cursos não eram sinônimos: graduado é graduado, pós-graduado é pós-graduado, especialista é especialista.

O art. 17 da lei 5.540, de 28/11/1968, a Lei da Reforma Universitária, praticamente reiterou a classificação acima e aproveitou para acrescer o verbete ‘aperfeiçoamento’ aos cursos de especialização. Em passagem anterior, a mesma lei atribuiu à Câmara de Educação Superior, na tarefa de assessoramento ao ministro da Educação e do Desporto, o poder-dever de deliberar sobre (a) diretrizes curriculares para os cursos de graduação, e (b) os relatórios para reconhecimento periódico de cursos de mestrado e doutorado (art. 9º, § 2º, letras ‘c’ e ‘g’). Como se vê, a distinção entre os três graus acadêmicos continuou.

A vigente LDB – a lei 9.394, de 20/12/1996, promulgada exatamente 35 anos depois da lei 4.024 – classifica a educação superior e cursos e programas (a) seqüenciais, (b) de graduação, (c) de pós-graduação (mestrado e doutorado, especialização, aperfeiçoamento e outros), e (d) extensão (art. 44, nºs I a IV). A nova LDB reafirma a necessidade de reconhecimento de diplomas de mestrado e doutorado expedidos por universidades estrangeiras (art. 48, § 3º). A pretexto de qualificar o corpo docente, taxativamente exigiu que pelo menos um terço contasse com “titulação acadêmica de mestrado ou doutorado” (art. 52, º II, e art. 66).

Temos leis em abundância – todas posteriores, específicas, hierarquicamente superiores e expressamente incompatíveis com a ordem constitucional do Império – para concluir que não faz sentido a titulação de “doutor” outorgada no decreto de 1825. Está revogado o vetusto decreto (art. 2º, § 1º, do decreto-lei 4.657, de 4/9/1942, ou Lei de Introdução ao Código Civil).

Um caso de revogação semelhante se registra com um decreto da Regência em 1831. A deposição de Pedro I precipitou a formação de uma guarda nacional cujos postos militares eram colocados à venda. Proprietários e afins, mediante paga de até 200 mil réis anuais, eram agraciados com os títulos de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel. Aí se enraíza legalmente o instituto do coronelismo tão caro à democracia brasileira. Ninguém duvida que os subseqüentes Estatutos Militares da vida republicana revogaram tais titulações.

Portanto, senhores doutores e “doutores”: coronéis hoje, por lei, só nas Forças Armadas; para os outros “coronéis” e “doutores”, lei para quê?

Revista Consultor Jurídico.

Marcelo Dolzany da Costa é bacharel em Direito, juiz federal em Minas Gerais, ex-diretor cultural da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e ex-juiz do Tribunal da ONU para os Crimes Graves de Timor Leste.

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