O Brasil é, hoje, um país democrático. Nessa consideração não há exagero. Mas ela não dispensa esclarecimentos sobre o tipo de democracia que temos.
Fernando Henrique Cardoso
Trata-se de democracia recente. Basta dizer que, desde Juscelino Kubitschek, em 1° de janeiro de 2003 será a primeira vez que um Presidente eleito passará a faixa presidencial a outro Presidente também eleito diretamente pelo povo.
No espaço de mais de quarenta anos houve mudanças presidenciais. Algumas com o vezo autoritário das eleições indiretas. Outras, com a passagem do governo a vice-presidentes em condições não rotineiras.
Portanto, no próximo 1° de janeiro assistiremos a uma transmissão de cargo plena de significado simbólico: a soberania popular regendo a passagem de governo. É a democracia que se consolida.
Mas que democracia?
Sem dúvida, constitucional e representativa. Com um Congresso eleito popularmente, Judiciário independente e a divisão harmônica entre os Três Poderes, que conviveram nos últimos oito anos sem crises institucionais.
Tudo isso em clima de liberdade plena. Liberdade da mídia, de organização partidária, religiosa, sindical e de organizações não-governamentais, o que atesta os avanços democráticos.
As eleições, de igual modo, serão livres, supervisionadas pela Justiça, com as máquinas governamentais contidas pelas leis e pela opinião pública, sem riscos de fraudes que comprometam os resultados.
Na verdade, o que decide as eleições é a opinião pública, e ela se forma nesse clima de liberdade. Em contraposição, as organizações político-partidárias são relativamente frágeis e apresentam escassa militância, além de pouco debate político-ideológico.
Democracia de massas, com partidos pouco atuantes fora do Congresso, em uma sociedade com reivindicações sociais crescentes (auspiciosamente) e que apresenta níveis de informação política fragmentada.
Neste contexto, os meios de comunicação (desta feita não só o “horário gratuito”, mas também o noticiário e os debates na mídia) constituem o principal veículo de informação e de formação de opinião. As instituições contam menos do que o pipocar das notícias, slogans e imagens. E nesse embate pontual, ganha relevo um conjunto de imagens que, embora não desligado das contendas mais significativas, freqüentemente as sufoca.
Nas presentes eleições, mais do que nunca, a tessitura político-partidária, a trama de interesses por trás de cada candidato e, até mesmo, os projetos políticos propostos ficaram em segundo plano.
Os eleitores parecem estar decidindo apenas entre pessoas, devendo escolher por seus atributos, positivos e negativos. Esses constituem obviamente critério importante de escolha, mas insuficiente para a definição política do voto.
Fui candidato duas vezes à Presidência. Em ambas, o que estava em jogo não era apenas a minha biografia, meus defeitos ou qualidades, em contraposição aos do meu contendor. Tanto ele como eu apresentávamos nossas visões do mundo, nosso modo de encarar as políticas econômicas e sociais (a estabilidade, o redistribucionismo, etc), nossas percepções quanto ao papel do Estado e, mesmo, da democracia. A escolha não foi apenas pessoal, mas uma opção entre caminhos para o Brasil.
A fragilidade dos partidos, o declínio das ideologias e a personalização da política pela técnica do jogo de imagens restringiram grandemente o debate sobre as opções que realmente estão em causa.
O PT, que entre todas as organizações partidárias é a que mais guarda semelhança com as concepções tradicionais de partido, desta feita sucumbiu à tentação de mostrar mais o candidato do que suas propostas partidárias, talvez por ter o partido se tornado um ator mais relevante no jogo do poder e menos portador de uma mensagem de renovação.
Enquanto isso, o PSDB procurou, por motivos compreensíveis, dar ao seu candidato um perfil próprio, com uma mensagem diferente de renovação e mudança. Sem o contraponto oposicionista para suas propostas, não teve espaço de debate para cristalizar na mente do eleitor uma visão nítida sobre as opções relevantes.
Daí porque, ou parecem inexistir alternativas essenciais às políticas correntes que o atual governo realiza (salvo a retórica do “vamos mudar tudo que aí está”), ou há, como é mais provável, uma agenda oculta que será revelada à cidadania depois das eleições.
Em qualquer hipótese, a definição de regras claras para a transição entre o atual e o futuro governo será útil, além de ser um modo civilizado e democrático de fazer-se a transferência de mando.
No caso de vitória, ardentemente desejada por mim, do candidato do PSDB e seus aliados, o Senador José Serra, a transmissão das informações é necessária para que ele possa iniciar desde o primeiro dia do novo mandato as modificações (necessárias, depois de oito anos) na estrutura administrativa e nas políticas atuais, tanto econômicas quanto sociais e internacionais.
No caso de vitória oposicionista, da mesma maneira e com mais necessidade, esse período de transição ajudará o novo governo a conhecer melhor o atual e a preparar-se para as modificações que certamente fará.
Prepararemos um calendário de compromissos existentes e de decisões a serem tomadas nos primeiros cem dias de 2003, para evitar a paralisação administrativa e para facilitar as mudanças que o novo governo proporá.
Assim, se antes das eleições as opções não tiverem ficado claras para o eleitorado, nos dois meses entre a eleição e a posse haverá tempo para que o país perceba as opções que fez e para que o novo governo se prepare para executá-las com maior conhecimento de causa.
Continuarei torcendo para que tudo dê certo, para que, vitorioso, Serra possa dar segurança ao país, fazendo as mudanças necessárias. Em caso contrário, vitorioso um candidato oposicionista, torço para que as imagens transmitidas não tenham sido apenas uma maneira de ajustar os candidatos ao suposto gosto da maioria, e não uma revisão profunda do modo de ver o mundo, a sociedade e o mercado.
De qualquer modo, aguardo com emoção e esperança o momento de passar a faixa presidencial ao meu sucessor. Sei que, em qualquer caso, seja na hipótese de vitória de meu companheiro de partido, seja na de um opositor, estarei apertando as mãos de um brasileiro que foi escolhido pelo voto livre da maioria dos brasileiros para governar. Estarei torcendo, como todo o Brasil, para que tenhamos dias cada vez melhores, e transmitirei este sentimento com emoção, no momento do abraço ao novo Presidente.
www.direito.com.br