Lula e o PT são tentados por uma mistura de intolerância, arrogância e ignorância
José Neumanne
Se é verdade mesmo que só um cataclismo pode tirar de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT (a definição é do próprio candidato) a vitória nas urnas no segundo turno da eleição presidencial, domingo, talvez esteja na hora de aconselhar (se bem que, se conselho fosse bom, seria vendido em farmácia e o momento da euforia da vitória dada como certa não seja o melhor para alertar o virtual vitorioso) que evitem essa mistura de arrogância e ignorância (que o professor Roberto Campos chamava de “arrognância”) com intolerância que eles têm exibido. A Nação deve a revelação desse risco a grandes artistas brasileiros, que assim mais uma vez prestam inestimável colaboração à construção e manutenção de nossas instituições democráticas neste delicadíssimo momento, como o é sempre a transição entre governos. Refiro-me, é claro, a Regina Duarte e Caetano Veloso.
Não creio que o depoimento da atriz na abertura do primeiro programa de José Serra, do PSDB, no horário gratuito do segundo turno tenha sido feliz, seja do ponto de vista da imagem dela, seja, sobretudo, na estratégia de campanha dos tucanos. Mas esse é um problema de Regina, Serra e seus marqueteiros. Não tem nada que ver com mais ninguém – Lula, Paloma Duarte, o PT, você, prezado leitor, ou eu. O que, sim, tem a ver com todos nós é a celeuma criada pelo candidato favorito e pelo partido ao reagirem, com fúria fundamentalista, à manifestação livre, soberana e intransferível da opinião de uma personalidade pública, que tem todo o direito de sentir e expressar seu medo a quem quiser: a parentes e amigos ou ao público em geral. As reações petistas ao depoimento (seja os pedidos ao TSE para censurá-la, seja o depoimento infeliz de uma atriz neófita, que se dizia “violentada” pela opinião da outra – o que é isso, companheira Palominha?) foi exatamente a mistura nefasta das manifestações que tentei resumir no neologismo usado no título deste artigo: intolerância em relação ao contraditório; arrogância (que Fernando Henrique chamou de “salto alto”) quanto à vitória tida como certa, mas ainda não consumada; e ignorância do exercício elementar dos direitos da cidadania na democracia.
O caso com Regina Duarte é assustador, porque denota a ameaça do patrulhamento ideológico no exercício do poder republicano. Mesmo na oposição, os grupos xiitas da esquerda, derrotada pela ditadura na guerra suja, já recorreram a esse nauseabundo método stalinista de submeter pessoas que não rezem por sua cartilha ideológica ao “paredón” moral. Um dos execrados, o cineasta Ipojuca Pontes, lembrou muito bem aos privilegiados leitores de seus inéditos textos opinativos a semelhança entre essa prática e a política cultural exercida por Jdanov na ex-União Soviética na fase mais obscurantista da ditadura comunista. É de se temer que os efeitos deletérios desse patrulhamento se potencializem com o exercício de poder, que no Brasil se expressa pelas nomeações na máquina pública e pela generosa distribuição de verbas a artistas de platéia escassa, mas prestígio de sobra junto aos donos do poder. O fato de o PT ter recuado, diante da expressiva manifestação de repulsa das poucas, mas ainda resistentes, mentes pensantes do País é alvissareiro, mas está longe de ser definitivo: uma coisa é bancar o bonzinho agora, antes da eleição; outra é ser justo depois de instalado numa boquinha estatal podendo mandar, desmandar… e gastar.
Outro episódio, menos divulgado, mas igualmente relevante, teve como protagonista o compositor Caetano Veloso, que aderiu a Lula e imediatamente teve uma gravação com sua voz (da canção “Amanhã”, de Guilherme Arantes) incluída na propaganda eleitoral do candidato petista, sem autorização expressa sua. Caetano se queixou, com toda razão, do desrespeito; o presidente nacional do PT, José Dirceu, pediu-lhe desculpas; e o fonograma foi retirado da propaganda de Lula. O primeiro movimento é sintomático, por expressar a convicção petista de que o voto dado ao partido (ou mesmo ao candidato, que teve mais que o dobro dos votos na legenda no primeiro turno, ou seja, o lulismo é de fato muito maior do que o petismo) é uma carta branca que lhe permite fazer o que bem entender com o eleitor que lho deu. Na democracia, contudo, o mandatário é escravo do compromisso assumido com o eleitor, não o contrário. O segundo revela que os setores dominantes do partido, José Dirceu à frente, têm noção da insensatez política de se apropriar do voto dado sem sequer tentar entender, antes, a cabeça do eleitor.
A estas alturas, talvez só nos reste rezar para que essa sensatez moderadora (encarnada por José Dirceu) leve Lula e o PT, no poder, a calçarem as sandálias do pescador e resistirem à embriaguez do sucesso eleitoral e às tentações do demônio do triunfalismo cego, surdo e falante, que só lhes farão mal. E pior: a nós todos, a Nação.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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