Paulo Tadeu Rodrigues Rosa*
O processo administrativo disciplinar conforme ensina a doutrina tem por objetivo analisar a conduta do militar, federal ou estadual, acusado em tese da prática de uma transgressão disciplinar previamente estabelecida no regulamento disciplinar, que deve ser uma lei elaborada pelo Poder Legislativo, Estadual ou Federal, em atendimento aos princípios estabelecidos no art. 5 º, LXI, da Constituição Federal.
A respeito do assunto, previsão da transgressão militar em lei, Eliezer Pereira Martins, observa que, “Em outras palavras, impõe a Constituição Federal que a transgressão e o crime propriamente militar, estejam definidos, ou seja, capitulados em lei, para ensejarem a decretação da medida restritiva da liberdade individual”.(1) (grifo nosso)
Mas será que a afirmação apresentada por parte da doutrina a respeito da previsão da transgressão disciplinar em lei não seria uma premissa pobre, um argumento divorciado da realidade, proveniente de uma interpretação literal? A expressão contida no texto constitucional não seria lei no sentido lato sensu? Deve-se observar, que a previsão em lei da transgressão disciplinar militar é defendida por Ana Clara Victor da Paixão, assessora do Ministério Público do Estado de Goiás, por Márcio Luís Chila Freyesleben, promotor de justiça no Estado de Minas Gerais, Joilson Fernandes de Gouveia, tenente-coronel da Polícia Militar de Alagoas, entre outros.
A resposta a esta questão é apresentada por Eliezer Pereira Martins segundo o qual, “Pode-se cometer o equívoco de entender-se que quando o legislador constitucional pede uma lei para integrar a eficácia da norma contida na constituição, está na realidade referindo-se à lei lato sensu (medidas provisórias, decretos, portarias, etc). Tal interpretação contudo, em sendo feita de modo genérico, como mostraremos, é rematado erro hermenêutico, já que no universo das disposições restritivas da liberdade individual, a lei a que se refere o legislador é sempre o ato que tenha obedecido o processo legislativo como elemento de garantia do princípio da legalidade e mais exatamente da reserva legal. Ora, é cristalino que decreto não é lei. Na melhor doutrina, aquele é instrumento de regulamentação nos estritos limites da lei que o ensejou”. (2)(grifo nosso)
Na busca de uma classificação das espécies de processo administrativo militar, com fundamento na lei federal e nas legislações dos Estados-membros, regra geral, este pode ser organizado da seguinte forma. O processo administrativo disciplinar que é destinado a analisar a conduta dos militares acusados em tese da prática de uma transgressão disciplinar, que não seja caso de submissão a um processo para a perda da graduação ou do posto.
O processo disciplinar sumário é destinado a analisar a conduta dos militares que não possuem estabilidade, ou seja, contam com menos de 10 anos de serviços na Corporação Militar, e são acusados em tese da prática de um ato ou transgressão disciplinar militar que possa levar a perda da graduação.
O militar, praça, que possui estabilidade será submetido ao Conselho de Disciplina, que tem por objetivo analisar a conduta dos militares acusados em tese da prática de um ato ou de uma transgressão disciplinar militar grave que possa levar a perda da graduação. No âmbito federal, o CD é regido pelo Decreto Federal, expedido pelo Poder Executivo, n º 71.500, de 05 de dezembro de 1972. No âmbito Estadual, o CD é regido por leis estaduais ou decretos estaduais, que tem como fundamento a norma federal, que é utilizada como paradigma.
No caso de um militar, pertencente ao quadro de oficiais, este será submetido ao processo administrativo denominado Conselho de Justificação, que tem por objetivo analisar se a prática de um ato ou de uma transgressão disciplinar poderá levá-lo a perda do posto ou da patente, ou a declaração de sua indignidade para o oficialato. No âmbito Federal, o CJ é regido pela Lei Federal n º 5.836, de 05 de dezembro de 1972. Nos Estados-membros da Federação, o Conselho de Justificação é regido em regra por Lei Estadual aprovada pela Assembléia Legislativa, que tem como fundamento a Lei Federal n º 5.836/72.
Processo administrativo no Estado de Minas Gerais
O Estado de Minas Gerais por meio de sua Assembléia Legislativa editou um novo Código de Ética e Disciplina que substituiu o então vigente Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, e modificou as normas que regem o processo administrativo. Deve-se observar, que o novo Código Disciplinar da PM atende aos preceitos constitucionais, uma vez que as transgressões encontram-se previstas em lei, em atendimento ao art. 5o, inciso LXI, da CF.
A respeito da previsão das transgressões disciplinares em lei Márcio Luís Chila Freyesleben ensina que, “À guisa de especulações, o Decreto n.º 88.545/83, RDM, sofreu alterações de alguns de seus dispositivos, provocadas pelo Decreto n.º 1011, de 22 de dezembro de 1993. Com efeito, após a CF/88 o RDM passou a ter força e natureza de lei ordinária, não sendo admissível que uma lei venha a ser modificada por um decreto. É inconstitucional”.(3) (grifo nosso)
Com fundamento na Lei Estadual n º 14.310, de 19 de junho de 2002, a PM de Minas Gerais não mais possui em seu Código de Ética, a previsão do Conselho de Disciplina ou do Conselho de Justificação. Nesse sentido, o processo administrativo destinado a julgar os militares daquele Estado se denomina Processo Administrativo Disciplinar, art. 64, da Lei Estadual. Segundo o art. 64 da Lei Estadual, “Será submetido a Processo Administrativo-Disciplinar o militar, com no mínimo três anos de efetivo serviço”
A Comissão Administrativa Disciplinar é composta segundo o art. 66 do Código de Ética e Disciplina da PM de Minas Gerais por três militares, que devem possuir maior grau hierárquico ou serem mais antigos que o acusado. Em atendimento ao princípio do julgamento do acusado por seus pares, no processo administrativo onde o acusado seja um militar integrante do quadro de praças, a Comissão também poderá ser composta por praças, excetuando-se o presidente que deverá ser um oficial pertencente a Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros Militar.
As modificações estabelecidas pelo novo Código de Ética e Disciplina da PM de Minas Gerais podem ser consideradas como sendo um paradigma a ser observado pelas demais Forças Auxiliares, na busca de uma integração entre os agentes de uma mesma Corporação que são os responsáveis pela preservação da ordem pública, em seus aspectos, segurança pública, tranqüilidade e salubridade.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu novos princípios que aos poucos estão sendo incorporados pelas organizações militares, que são essenciais no Estado de Direito, e sem as quais a nação não consegue realizar os seus objetivos nacionais e caminhar para o desenvolvimento econômico e social.
Processo administrativo no Estado de São Paulo
A Polícia Militar do Estado de São Paulo, Força Auxiliar que foi instituída por ato do Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar em 15 de dezembro de 1831, seguindo os preceitos estabelecidos pela Constituição Federal permite aos militares estaduais acusados da prática de ilícitos administrativos, o exercício da ampla defesa e do contraditório, e a presença de advogados nos quartéis, batalhões, companhias, destacamentos, e nos atos processuais.
Os infratores que integram a PM paulista, a legião de idealistas, quando comprovada a falta disciplinar constante na portaria ou no termo acusatório, são punidos de forma efetiva, para exemplo da tropa, inclusive com a demissão, a expulsão, mas com o exercício da garantia da ampla defesa e do contraditório.
Os militares punidos muitas vezes buscam a proteção do Poder Judiciário, art. 5 º, inciso XXXV, da CF, mas na maioria das vezes não conseguem êxito, porque o ato foi praticado de forma perfeita em atendimento aos seus requisitos e aos princípios constitucionais. Os policiais infratores não são reintegrados, pois o processo tramitou de forma escorreita, e isso impede que a Fazenda Pública do Estado de São Paulo tenha que despender qualquer tipo de quantia, uma vez que a ação de indenização do infrator será julgada improcedente, trazendo economia para os cofres públicos, permitindo o investimento do dinheiro público em outras áreas.
A I-16 PM que cuida do processo administrativo no Estado de São Paulo, no art. 2º, caput, prescreve expressamente que, “O processo administrativo reger-se-á pelas normas contidas nestas Instruções, respeitados os preceitos constitucionais e administrativos, a legislação específica, os atos normativos do Governador do Estado, do Secretário da Segurança Pública e os Convênios”. (grifo nosso)
A prática de uma infração disciplinar traz como conseqüência a possibilidade de punição, direito legítimo do Estado, que não é e nunca foi questionado. A aplicação dos princípios constitucionais ao processo administrativo não significa a quebra de preceitos, mas o fortalecimento do ato administrativo, que levado ao Poder Judiciário dificilmente será modificado, uma vez que preenche os requisitos estabelecidos em lei.
Considerações finais
Todos os infratores devem ser punidos, sem exceção, independentemente do cargo ou posição social, em atendimento ao preceito estabelecido no art. 5 º, caput, da CF. A lei não deve permitir a impunidade em qualquer área do Direito. As penas se necessário devem ser severas, inclusive com a perda do cargo, posto, patente, graduação, vantagens, liberdade, bens, prerrogativas, o que for necessário.
A sociedade não aceita que o Estado seja representado por pessoas que não respeitam a lei e não obedecem as ordens previamente estabelecidas. Mas, a punição efetiva deve ter como fundamento o respeito aos preceitos constitucionais.
Ao comentar os preceitos constitucionais no processo administrativo militar, Dênerson Dias Rosa, observa que, “Todavia, a questão de punições militares não pode ser disciplinada tão somente com vistas a manter-se sempre a hierarquia e a disciplina, mesmo porque, se estes princípios militares são normas constitucionais, há duas normas que em verdade são princípios constitucionais que em qualquer situação devem ser respeitados e atendidos: a “presunção de inocência” e o “direito ao contraditório e à ampla defesa”. (4) (grifo nosso)
Ainda segundo o estudioso, “Mesmo havendo a necessidade de procedimentos sumários para manter-se o controle hierárquico da tropa estes institutos (Presunção de inocência e o Direito ao contraditório e à ampla defesa) devem ser sempre respeitados, caso contrário não se estaria em um Estado de Direito”.(5) (grifo nosso)
O art. 5 º, da CF, norma fundamental, estabeleceu garantias que se aplicam ao processo judicial e administrativo. O ato processual ou administrativo deve preencher as formalidades, os requisitos estabelecidos em lei, para a sua validade e a efetiva aplicação da sanção.
O devido processo legal é uma garantia que fortalece o ato praticado pelo julgador, cuja decisão no âmbito da administração não faz coisa julgada, que dificilmente terá a sua decisão revista pelo Poder Judiciário, guardião dos direitos e garantias fundamentais do cidadão conforme o art. 5 º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
O processo administrativo pode ser efetivo, célere, mas com a observância dos princípios constitucionais, sem que isso signifique a quebra dos poderes outorgados a administração pública, que deve punir de forma exemplar todos os infratores, inclusive com a demissão, expulsão, perda do cargo, independentemente da sua posição funcional.
Afinal, a sociedade que de forma democrática escolheu os seus novos mandatários não tolera mais a corrupção, que vem corroendo as divisas do país, que deve conceder a todos os brasileiros uma vida digna em atendimento aos princípios enumerados no texto constitucional ao tratar da República Federativa.
Notas de rodapé
1- MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade. Leme : Editora de Direito, 1996, p. 86.
2- MARTINS, Eliezer Pereira, op. cit ., p. 87.
3- FREYESLEBEN, Mário Luís Chila. A prisão provisória no CPPM, Belo Horizonte : Del Rey, 1997, p. 202.
4- ROSA, Dênerson Dias. O princípio constitucional da ampla defesa e o processo administrativo disciplinar militar. Internet :
http://www.apoena.adv.br , set/02, p. 2.
5- ROSA, Dênerson Dias, op., cit., p. 02.
Revista Consultor Jurídico
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa é advogado em Ribeirão Preto, professor de Direito Penal e Processual Penal, coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Moura Lacerda, mestre em Direito pela Unesp – Campus de Franca e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.