A decisão de Lula de entregar a burocracia federal ao PT e as estatais às corporações é um passo para trás
José Nêumanne
A adesão de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT aos princípios elementares da responsabilidade fiscal – compromisso com metas de inflação e déficit público e com o cumprimento dos contratos assinados – foi oportuna para eles, ao lhes propiciar uma vitória eleitoral histórica após três derrotas consecutivas, e para a Nação, que estava disposta a mudar a equipe no comando republicano, mas sem abrir mão destas conquistas, que são da cidadania, e não de um grupo ou partido. O entusiasmo com essa conjunção adequada tem sido tanta que se está esquecendo de que Lula e o PT nada mudaram em relação a outros assuntos, tão relevantes quanto esses. Um deles é a relação do partido com o Estado: o presidente eleito, em repetidas e claras manifestações posteriores à vitória eleitoral, tem reafirmado que a visão das relações entre política e gestão pública, tanto a dele quanto a de seus correligionários, continua extremamente parcial e utilitária.
Se o PT ocupar a máquina pública para nunca mais sair, ninguém terá motivos para se queixar, pois Lula e a cúpula dirigente do partido têm dado avisos mais do que diretos e eloqüentes de que eles não se dispõem a dividir a rapadura do poder com ninguém mais. Numa reunião com militantes petistas, o presidente eleito manifestou-se explicitamente sobre o assunto, anunciando a consulta às bancadas do partido na Câmara e no Senado para preencher os 20.500 cargos federais disponíveis em 27 Estados e no Distrito Federal. Pode ser que ele não consiga fazê-lo por dificuldades políticas ou estatutárias, mas a intenção já denota que, para ele, a vitória eleitoral significa, mais do que a mera concessão pelo eleitorado do poder de definir estratégias e comandar políticas públicas, a autorização para ocupar o aparelho do Estado com um contingente de devotos fiéis. Esse tipo de ocupação tem dois modelos: a adequação da burocracia czarista aos interesses do Partido Comunista da União Soviética por Josef Stalin nos anos de 1920 e 30 (tática decisiva para afastar o rival Lev Trotsky do comando da máquina do PCUS) e a superposição entre as burocracias pública e partidária, tal como o fizeram os Partidos Revolucionário Institucional no México e Colorado no Paraguai, ao longo do século 20.
A perenização de um grupo político no poder pelo assalto ao que os bolcheviques chamavam de “aparatchik” é uma tática “blanquista” clássica, que Lenine legou a Stalin e os stalinistas do PT aprenderam a manipular com maestria. Num dos debates na campanha, Lula se referiu a ela ao lembrar a Serra que a equipe que executou seus projetos no Ministério da Saúde era de “companheiros”, o que é verdadeiro: o “aparatchik” petista se assenhoreou da burocracia do setor desde que para lá foi levado em pleno governo Collor pelo companheiro cirurgião Adib Jatene. Com pequenas variações de grau, o esquema funciona com êxito na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, desde o primeiro governo do companheiro Mário Covas.
A fé de Lula no “aparatchik” é tanta que ele encarregou o presidente nacional do PT, José Dirceu, seu futuro chefe da Casa Civil, de avisar aos aliados da campanha que poderão indicar os ministros, mas não os subalternos deles, que serão submetidos ao crivo de comissões estaduais controladas por petistas. E aqui se manifestará outra das características da natureza imutável do PT, que é o “assembleísmo”, o hábito de adiar indefinidamente a solução dos problemas para debatê-los até o esgotamento.
Outro dogma de fé de que o PT triunfante não abrirá mão será a noção também funcionalista de que as empresas estatais não são propriedades do povo brasileiro, que interfere em sua gestão por meio de representantes legitimamente eleitos para os Poderes Executivo e Legislativo, mas de seus empregados. Ao manifestar sua intenção de nomear funcionários de carreira para a direção das empresas que escaparam à estatização (entre as quais mostrengos do porte do Banco do Brasil e da Petrobrás), o presidente eleito já deixou bem claro que transferirá às corporações o poder que o povo lhe concedeu de comandá-las. Desta forma, Sua Excelência reafirma – o que pode ser inusitado, mas não é surpreendente – que o PT pode ter deixado de lado um pouquinho o socialismo para experimentar o gostinho do poder, mas continua corporativista, como sempre foi, é e será.
Seja qual for o grau do êxito dessas tentativas de despolitizar a burocracia pública entregando-a a um partido só (a bênção, vovô Ulianov) e de entregar o comando das empresas estatais a corporações que delas já se servem para depenar o contribuinte, tudo o que for feito nesse rumo será um retrocesso no desmonte da pilhagem do Estado por castas de privilegiados, que vinha sendo tentado por Fernando Henrique. Pior do que estatizar o PT (que o presidente nacional José Genoíno jura que evitará) será subordinar o Estado a um partido só.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde