Edson Ronaldo Nascimento*
A partir de 1º de janeiro de 2003, assim como no governo federal, vários governos estaduais receberam novos titulares e novas equipes de gestores assumiram o comando das finanças públicas estaduais e a nível federal. A novidade nessa passagem de governo foi processo da “transição democrática” inaugurada pelo governo federal e utilizada com igual sucesso em diversos Estados.
Outra novidade refere-se às exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF em relação ao final de mandato dos governantes, exigências essas que alcançam tanto o novo governante, como aquele que foi reeleito.
A principal exigência da LRF para o final de mandato (independentemente da reeleição) refere-se a impossibilidade de se deixar despesas contraídas nos últimos oito meses de mandato (obrigações de despesas, conforme a lei) sem disponibilidades financeiras para a sua cobertura (art. 42). Mas que outras regras deverão ser observadas pelos governantes que assumiram (ou reassumiram) os governos estaduais em janeiro de 2003?
Esse texto apresenta uma síntese dos principais itens que deverão ser observados pelas novas equipes de governo no sentido de verificar o atendimento da Lei de Responsabilidade Fiscal identificando-se, nesse caso, a responsabilidade de cada governante (o que assume – ou continua – e o que deixa o governo).
Restos a pagar e disponibilidades de caixa
Sem dúvida, a análise mais importante a ser feita pelas novas equipes de governo refere-se às despesas contraídas no final do mandato. A contabilidade, nesse caso, deve identificar os chamados Restos a Pagar, dividindo-os em processados e não processados. Em tese, as regras do artigo 42 da LRF aplicam-se aos Restos a Pagar processados já que os não processados poderão ser cancelados.
Ressalte-se que a disponibilidade financeira a que se refere o citado artigo 42 será utilizada para pagamento das despesas contraídas. De acordo com a boa prática contábil o pagamento das despesas se dará após a liquidação, o que não alcança os Restos a Pagar não processados, já que esses, regra geral, não passaram por essa fase da despesa.
É importante para os gestores a identificação e o reconhecimento dos Restos a Pagar e das disponibilidades financeiras. Ressalte-se que disponibilidade financeira não significa somente dispor de dinheiro em caixa ou em banco. Deverá ser verificado se os recursos estão de fato disponíveis, sem outro comprometimento ou vinculação.
É preciso verificar também o total dos Restos a Pagar processados na posição 30 de abril de 2002 (oito meses antes do encerramento do mandato) já que, de acordo com a Lei 8.666/93, deve-se respeitar a ordem cronológica para pagamento de fornecedores. Isto significa que, ao considerarmos as disponibilidades financeiras para as despesas contraídas nos últimos oito meses de mandato, devemos assegurar, em primeiro, lugar o pagamento dos débitos mais antigos.
É possível que em alguns casos, após a posse do novo governante, sejam identificadas determinadas obrigações de despesas que não foram apresentadas durante o processo de transição ou que não estavam contabilizadas como tal (os chamados “esqueletos”). Ressalte-se que nesse caso, a responsabilidade pessoal (e criminal) é do governante que deixa o governo.
No entanto, se as despesas (esqueletos) forem identificadas somente em período posterior (no governo seguinte ao que esta assumindo) pode-se configurar omissão do governante atual ou mesmo solidariedade com a prática (irresponsável) do não reconhecimento de despesas nos balanços.
Qualquer irregularidade constatada nesse sentido deve ser comunicada ao Tribunal de Contas ao qual o ente público está jurisdicionado e ao Ministério Público local.
Passivos, Ações Trabalhistas e Precatórios a Pagar
Essas despesas deverão ser rigorosamente identificadas no sentido de se conhecer as pressões que poderão ocorrer à curto prazo sobre a administração. Ressalte-se que a LRF determina a elaboração de Anexo de Riscos Fiscais na LDO e a constituição de reservas de contingência para a cobertura desse tipo de despesa, no curto prazo. O descumprimento a essa regra (elaboração de Anexo de Riscos Fiscais e constituição de reserva de contingência) representa crime de responsabilidade do governante.
Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA
É preciso verificar se a lei orçamentária está efetivamente adequada às novas regras definidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (além da LDO). Ressalte-se que a elaboração das leis do orçamento em desacordo com a LRF importará em multa de 30% dos vencimentos anuais do administrador público e sanções fiscais ao ente público, o que significa a impossibilidade de contratar e receber transferências voluntárias do governo federal. As multas recairão sobre o governante que sai. Mas a impossibilidade de contratar convênios recairá sobre o novo governo, até que o problema seja sanado. (1)
Independente das sanções que recairão sobre o antigo gestor, caberá á nova administração a adequação das leis orçamentárias às regras da LRF (elaboração de Anexos de Metas, Anexos de Riscos, previsão de receitas, reservas de contingências, etc).
Atendimento dos Limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal
Outro assunto importante na transição de governo é a identificação dos principais limites legais definidos na LRF e a situação encontrada em cada Estado. São eles:
Limites para despesas com pessoal – no caso estadual, o total das despesas não poderá ultrapassar a 60% da Receita Corrente Líquida – RCL (2), sendo 3% para o Poder Legislativo, 6% para o Judiciário, 2% para o Ministério Público e 49% para o Executivo. A data limite para o atingimento dos limites legais, (no caso do excesso) de acordo com a LRF é dezembro de 2002;
Limites para endividamento público (saldo devedor) – neste caso, o limite legal é igual a duas vezes a RCL para Estados e 1,2 vezes para Municípios;
Limites com serviços terceirizados – até dezembro de 2002, o máximo que um governo estadual e municipal poderá despender com essas despesas corresponde ao porcentual gasto, observado em dezembro de 1999 (gasto anual) com essa rubrica.
O retorno ao limite legal (no caso em que haja excesso) será obrigação dos novos governantes, sem prejuízo das sanções penais que recairão sobre os antigos gestores. No entanto, as sanções fiscais recairão sobre a nova administração que deverá observar os prazos definidos na LRF (sem postergação) para excesso de gastos com pessoal (dois quadrimestres) e para excesso de endividamento (três quadrimestres).
A publicação dos relatórios fiscais (RREO e RGF), informando o montante da dívida e dos gastos com pessoal, além do resultado primário e nominal verificado no período é de responsabilidade do ente público. Nesse caso, a falta da publicação de qualquer relatório fiscal, a partir de setembro de 2000, poderá tornar inadimplente o Estado, impedindo-o de contratar operações de crédito, receber de transferências voluntárias da União, etc.
Na falta da publicação de quaisquer desses relatórios, nos períodos definidos pela LRF (relatórios anuais, bimestrais e quadrimestrais), os novos governantes deverão providenciar as publicações em atraso para não sofrerem as sanções fiscais(3).
Situação Patrimonial
Outra questão importante em relação ao processo de transição refere-se a avaliação da situação patrimonial do ente público. Muitos governos estaduais e municipais desconhecem a verdadeira situação do patrimônio publico local. Essa verificação é importante pois poderá envolver processos judiciais (retomada de imóvel, indenizações, etc) e também torna-se importante para o reconhecimento de ativos que, potencialmente, poderão ser utilizados, por exemplo, em dação de pagamentos de dívidas.
Ressalte-se que avaliação patrimonial deverá ser feita a sob a forma contábil (Balanço Patrimonial) mas também “in loco”. Dessa forma o gestor poderá ter uma visão global da situação patrimonial da administração pública.
Situação das Empresas Estatais
A situação financeira e fiscal das empresas estatais é outro item importante dentro do processo de transição de governo. É necessário identificar-se, antes de qualquer coisa, aquelas empresas públicas chamadas “dependentes” (ou empresas estatais dependentes, conforme a LRF). Essas empresas comporão os limites para gastos com pessoal, limites para endividamento, etc, já que, de acordo com a LRF inserem-se no conceito de ente da federação, conforme inciso I, do artigo 2º da lei.
Acordos Firmados com o Governo Federal
Desde 1997, quando foram assinados os últimos programas de refinanciamento de dívidas estaduais, esses entes assumiram programas de ajuste fiscal junto ao Governo Federal, sob o acompanhamento da Secretaria do Tesouro Nacional. Os novos governos deverão atentar para as metas fiscais assumidas pelos antigos gestores já que são metas trienais e deverão ser revistas a cada ano. Qualquer descumprimento das metas e compromissos acertados com a União poderá representar para a administração pública acréscimos no pagamento de dívidas refinanciadas no âmbito da Lei nº 9.496/97.
Conclusão
A transição de governo não deve ser vista como um processo que se encerra na posse dos novos governantes. Na medida em que as equipes técnicas entrarem em contato com as receitas e as despesas públicas poderão encontrar problemas não identificados durante a passagem de governo. Nesse momento, os novos gestores devem acionar seus Tribunais de Contas, o Ministério Público e a Justiça para que não venham a ser prejudicados por uma herança incômoda.
Notas de rodapé:
(1) Isso poderá ocorrer, por exemplo, se a LOA não apresentar a previsão de arrecadação de todos os tributos de competência do ente público
(2) Receita efetivamente disponível
(3) Maiores informações poderão ser encontradas no texto “Entendendo a Lei de Responsabilidade Fiscal”, disponível no site do Ministério da Fazenda, endereço www.fazenda.gov.br
Edson Ronaldo Nascimento Economista, Analista de Finanças do Tesouro Nacional, autor dos livros “Entendendo a Lei de Responsabilidade Fiscal” e “Finanças Públicas: União, Estados e Municípios”.