Airton Florentino de Barros*
Basta uma frase populista como “as contas não fecham”, “a Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser cumprida”, ou “precisamos acabar com os privilégios” para convencer a opinião pública a encampar qualquer que seja a medida governamental anunciada.
Um exemplo é a nova reforma da Previdência, que importantes segmentos da sociedade resolveram aplaudir sem que os termos do projeto oficial sejam conhecidos. Nem se atentou para o fato de que os proponentes da reforma não respondem e se esquivam de algumas perguntas. Pois, vamos a elas! E às suas respectivas respostas, claro!
1. Por que um trabalhador que depositou 20% ou um quinto do seu salário integral, pelo sistema de contribuição bipartida (parte do empregado, parte do empregador) não pode, depois de 35 anos, ter proventos integrais de aposentadoria?
Trinta e cinco anos correspondem a 420 parcelas que, por sua vez, somam 84 salários integrais. Se honestamente capitalizado com o menor dos rendimentos do mercado (0,5% ao mês), durante esse tempo, o valor chegaria a 172,2 salários integrais. A quantia é suficiente para proporcionar frutos mensais maiores que um salário integral, durante todo o resto de vida do aposentado. Depois disso, dizer que cada aposentado é sustentado por dois trabalhadores em atividade é deslavado cinismo.
2. Por que ninguém do governo nunca falou em ir atrás de quem roubou esse capital de renda constituído pelo trabalhador?
Decerto porque sabiam que iriam apurar improbidade de muitos governantes, que desviaram os recursos em seu benefício eleitoral ou enriquecimento ilícito pessoal. Ou também porque estavam certos que encontrariam muitos corruptos no sistema de arrecadação. Ou ainda porque teriam de perseguir grandes empresas que financiam campanhas eleitorais.
Num Estado ausente (que socorre banqueiros, mas não provê saúde, educação, segurança, habitação, emprego), é natural que as coisas se invertam e que o cidadão esteja acostumado a se reconhecer como culpado, e não vítima.
É o que parece, muita vezes, quando alguém procura a polícia para fazer o registro do roubo de seu automóvel e ouve da autoridade: “Agora não dá. Se quiser mesmo registrar a ocorrência, terá que voltar outro dia ou, então, ficar aí esperando umas horas até que apareça o escrivão. Ele está tirando um plantão numa empresa de segurança privada, um bico… sabe como é. Você não tinha seguro? Não tem cabimento não fazer seguro hoje em dia. Onde foi que isso aconteceu? Ah, mas todo mundo sabe que aquele cruzamento é o reduto dos ladrões…”
Isso vale para a vítima dos desvios da Previdência. Num Estado ausente, repita-se, a vítima é que deve arcar com o prejuízo.
3. Por que, verdadeiramente, as contas da Previdência não fecham mês a mês?
O cálculo do governo se baseia espertamente no raciocínio orçamentário simples, isto é, considera o que arrecadou de contribuições previdenciárias no mês e o que gastou com a folha de aposentados no mês. E então chega à única conclusão a que o equivocado critério pode levar, ou seja, um considerável déficit mensal.
Entretanto, não é preciso ser especialista na matéria para perceber que as contas previdenciárias devem considerar as receitas capitalizadas desde o início das contribuições de todos os agora aposentados (incluindo a parte de seus empregadores). E isso, como já se demonstrou em tópico anterior, não é pouco.
Se o governo, seja como empregador, seja como gestor do fundo ou fiscalizador dele, tivesse cumprido a sua parte, constituindo e capitalizando o fundo (de cuja constituição os trabalhadores jamais puderam escapar), não deveria haver déficit algum.
Se é por isso que as contas não fecham, logo se vê que não cabe às vítimas recompor a perda decorrente de verdadeiro roubo. Se houve desfalque por omissão do governo, ao Estado é que cabe cobrir o prejuízo, apurando as causas e perseguindo os verdadeiros responsáveis.
4. Por que ninguém propôs a realização de uma auditoria nos institutos de Previdência?
Feita a auditoria, não daria para continuar tirando mais e mais dinheiro do povo. A primeira conclusão a que se chegaria é que o empregado deposita sua parte por meio do empregador corretamente, porque sua contribuição já é descontada na folha de pagamento. Se o empregador não recolhe aos cofres da Previdência e o INSS não toma nenhuma providência para responsabilizá-lo, os agentes de Previdência também deveriam ser perseguidos severamente pelo governante de boa-fé.
A apuração desses fatos, todavia, levaria à descoberta de corrupções mais graúdas, atingindo a “dignidade” do poder, com o risco de maior instabilidade institucional. O pensamento vigente é: “Já não basta o chato do Ministério Público, atrás da mais mínima improbidadezinha das autoridades?” A obscuridade na maioria das vezes é conveniente.
5. Por que o governo fixa em 25% a taxa anual de juros que o povo tem de pagar aos banqueiros e não capitaliza os fundos de Previdência em pelo menos 0,5% ao mês?
Certamente porque até agora nunca apareceu governante capaz de evitar que a riqueza formada pelo sacrifício do trabalhador brasileiro ficasse nas mãos de quem sempre esteve, apesar de em campanhas eleitorais prometer uma justa distribuição de riquezas.
6. Por que líderes sindicais e dirigentes de entidades de classe não defendem, como é seu dever, o interesse dos trabalhadores no processo de reforma?
Porque o maior interesse deles é se converter em banqueiros, gestores de fundos de Previdência Complementar (cada um da respectiva categoria). Isso fica claro diante do indisfarçável interesse na privatização da Previdência. Sabe-se que em dez anos, esse setor de captação de poupança popular movimentará quase um PIB, uma fortuna que não escapa ao olho grande dos mercenários.
7. Por que o governo do PT, depositário das últimas esperanças do povo, cai agora (talvez voluntariamente) na armadilha de seus antecessores no governo? Por que encamparam um projeto que não propõe o fim de sérias distorções e não aprofunda o estudo sobre o sistema?
Não é justo que o governo estimule campanha contra a aposentadoria do trabalhador, quando se sabe que o déficit orçamentário (motivo alegado para a reforma) decorre de desacertos em diversas contas e não só da Previdência.
Não é preciso indicar onde estão os ralos do bueiro sorvedouro de todo o produto do trabalho do povo brasileiro: os juros de 25% ao ano; a manipulação do mercado de câmbio e de capitais; o superfaturamento de obras e serviços públicos; os saques fraudulentos contra o erário; a privatização na bacia das almas de ricas empresas estatais sucateadas; a não responsabilização dos banqueiros pela apropriação indébita de fundos sociais anteriormente constituídos e sob sua gestão (FGTS, Fundo 157, incentivos fiscais); a corrupção, a impunidade, etc.
O Comind, por exemplo, um dos maiores depositários do FGTS, ao ter a liquidação extrajudicial decretada pelo Banco Central, suprimiu a contabilidade desse fundo. Ao invés de ser punido, foi beneficiado pelo governo. É ao trabalhador, todavia, que sobra a conta do prejuízo correspondente. Em conseqüência desse rombo, cada vez mais dificulta o governo o levantamento de qualquer quantia do mencionado fundo de garantia ao trabalhador necessitado.
Não é justo que o Partido “dos Trabalhadores” tire dos pobres (trabalhadores) para dar aos ricos (os banqueiros), que vão gerir o fundo de Previdência Complementar.
8. Por que não se fala em resolver a falência dos órgãos incumbidos de regulamentar e fiscalizar o sistema de Previdência Privada?
Porque nunca importou ao governo a correção das distorções. O que fez até agora a Susep para evitar os prejuízos causados pelas incontáveis entidades por ela autorizadas a gerir fundos de Previdência Complementar? Pelo contrário, chegou até a dificultar a atividade do Ministério Público, quando instaurava inquéritos e propunha ações civis em favor das vítimas.
Para que a reforma pretendida passe sem atropelos não convém chamar a atenção do povo para o fato de que inúmeras entidades de Previdência Privada estão sendo demandadas pelos trabalhadores que nelas acreditaram e, durante longo tempo, depositaram quantias que jamais conseguiram reaver.
9. Por que o governo insiste em cobrar contribuição previdenciária de quem já está aposentado?
A ausência de educação e informação foi deliberada. Não foi à toa que investiram tanto na manutenção de um povo desorganizado e de pouca instrução, que não consegue discernir entre o que lhe é benéfico e o que lhe é prejudicial. Povo que não compreende, não reclama. Povo que não reclama, pode ser tributado e bitributado e nunca exigirá retorno dessa pesada tributação por meio de serviços públicos a que teria direito.
O fundo de Previdência nada mais é do que um capital constituído pelo trabalhador para, quando da aposentadoria, render-lhe frutos representados pelos proventos esperados. Pode-se usar como exemplo o antigo sistema de constituição de patrimônio para renda. A pessoa, que pretendia parar de trabalhar depois de 30 anos de atividade, resolvia comprar nesse tempo duas casas financiando-as em 30 anos. Depois, transcorrido esse período, alugava uma das casas para render-lhe o equivalente à aposentadoria.
No raciocínio do governo, embora tendo se sacrificado durante todo esse tempo, o trabalhador dono do patrimônio (fundo) constituído, terá de continuar pagando o equivalente à prestação do financiamento, o que é uma aberração econômica, política, social e jurídica. Constituído o fundo, o trabalhador não pode continuar pagando o que já quitou integralmente.
10. Por que não tem o governo a coragem de propor o retorno ao regime jurídico que vigorou durante todo o império?
Faz-se aqui até uma sugestão de projeto de Reforma da Previdência, bem simples, com apenas três artigos: Art.1º: Fica a aposentadoria sujeita ao regime jurídico da alforria. Art. 2º: O governo é que, a seu critério, deve decretar quando, como e com que proventos cada trabalhador deve se aposentar. Art.3º: Revogam-se as disposições em contrário.
Sabe como é, alforria é mera expectativa de direito, de modo que ninguém poderá alegar direito adquirido. Fica tudo mais fácil. Nenhum general vai poder insurgir-se contra o fato de se aposentar como sargento. Nenhum ministro de Tribunal Superior vai poder contestar por se aposentar como escrevente de cartório. Ninguém vai dizer que a exigência de idade mínima para a aposentadoria, por exemplo, tem servido de punição a quem foi obrigado a começar a trabalhar e contribuir muito cedo. É simples. Não se trata de aposentadoria e sim de alforria. E pronto! Em crises, satirizar é preciso!
Airton Florentino de Barros é procurador de Justiça em São Paulo e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.