As reportagens protocolares da mídia e o nazismo

Claudio Julio Tognolli*

Artigo transcrito do site Observatório da Imprensa.

Não é o marxismo que cria radicais. Cada nova geração de radicais é que cria o seu próprio Marx. (Charles Frankel)

Foi em 1990. Luíza Erundina, prefeita de São Paulo, manda publicar no Diário Oficial do Município que estava proibido, passível das devidas punições, o uso da cruz suástica na cidade. Comerciantes do babalaô místico-mágico, sobretudo os do panteão hindu, vieram logo a público. Afinal de contas, referiam, a suástica vinha de uma tradição hindu do avatar de Shiva, o da destruição (se você injeta ar numa suástica, ela gira no sentido anti-horário).

E sempre acompanhada do seu contrário, a sovástica, ligada a Vishnu, o avatar da construção. Não importa: o uso que se faz de uma criação acaba fazendo parte da criação. E, para tristeza da gente “papo cabeça”, e alegria da cidadania, a suástica acabou mesmo indo para o espaço.

No dia da publicação da proibição, um personagem aparece na redação da Folha de S.Paulo. Dizia-se advogado. Trajava verde. Encimado de uma boina, bem green beret. Falava pausadamente. Afetava bonomia. Educadíssimo. Era também cadencioso nas frases, que defrontavam, nas entrelinhas, a ilusão de um princípio. Que logo, aliás, revelou ao repórter: iria processar a prefeita Erundina pela decisão de banir a suástica da cidade.

Ao final da entrevista, diz ao repórter: “Você me tratou muito bem e agora vou te revelar que sou meio-irmão do deputado Eduardo Matarazzo Suplicy”. (O atual senador era deputado, à época.)

Esse personagem, Anésio, entraria para o anedotário nacional meses depois. Afinal, esteve pessoalmente no Centro de Tradições Nordestinas, na Rádio Atual, na zona norte de São Paulo, quando ali estiveram Erundina e um punhado de autoridades, para hipotecar solidariedade à rádio — que fora, naquela madrugada, pichada por neonazistas, para variar juveniilistas de plantão.

Paulo Francis desceu o sarrafo em Anésio, pespegando-lhe a frase disparada por este, segundo a qual os campos de concentração “apenas serviram para retirar pulgas dos judeus, segundo provas do historiador francês professor Faurisson”. Anésio chegou a ir, meses depois, até ao delegado federal que investigava os neonazistas propondo-se como advogados dos incautos.

Nelson Werneck Sodré gostava de referir que vivemos na “contemporaneidade não-coetânea”. Ou seja: você, cidadão que combate o racismo e viaja na internet, pode conviver lado a lado com medievos que acreditam que o homem não foi à Lua, que a net é obra da CIA e que, enfim, Adolf Hitler foi um injustiçado da mídia. E que judeus não foram massacrados. O homus interneticus e cidadão do futuro nivela, infelizmente, seu destino com gente entre o homem de Java e o homem de Pequim. Com a imprensa não é diferente.

“Gente que não existe”

A mídia, em geral, gosta de produzir reportagens protocolares, em tácitas palavras, que atinjam especificamente a seu público consumidor e produtor de notícias. Gente de classe média para cima, quando atingida por “fatalidades”, ganha um tratamento fenomenológico para lá de Gaston Bachelard. Até um “liberou geral” poético se adota nessas circunstâncias (“quem ama as estrofes gosta também das catástrofes”, nota Gottfried Benn).

Filhos da classe média vitimizados recebem reprodução de suas fotos na “escolinha”, com a namorada etc. Pobre, preto e nordestino, desde que ainda habitem o off Broadway da existência, viram numerário. Matar a dimensão simbólica de alguém é sobretudo transformá-lo em números.

Quem canta rap, na periferia de São Paulo, sabe disso quando fala com jornalista: e sempre dispara ao repórter “Estamos aqui, vivos, e contrariando as estatísticas”. Para o New York Times, o povo do rap também costuma usar expressão semelhante “here, alive and against all odds”.

Se a mídia “mata”, pela omissão, por que não cometer mortes mais decentes, nesse processo? Estamos falando, é claro, do nazismo.

Vejamos o que foi publicado no jornal O Estado do Paraná, no sábado (31/5/2003).

Eis uma novíssima versão de Sigfried Ellwanger Castan, o maior nazista deste país. O novo “ícone” é alemão. Lutou na guerra. Refere que os judeus “declararam” guerra a Hitler; que a Polônia começou a guerra com as “provocações” que esse país fez à Alemanha; que “não morreram 6 milhões de judeus”; que os judeus, 60 anos depois da guerra, fazem “lavagem cerebral do mundo”. O jornal tampouco contou ao leitor desavisado que o “cidadão” é caudatário do revisionismo.
Sob o título “Seria Hitler uma vítima?”, o repórter Luigi Poniwass ainda coloca uma legenda “didática” em que se lê: “Escritor curitibano tenta redimir povo alemão dos horrores da guerra”.

Eis a íntegra do texto:

Enquanto baixa a poeira da última investida do império norte-americano no Oriente Médio, e Roman Polanski ainda saboreia a vitória no Oscar de O Pianista, belo filme sobre o recorrente tema do holocausto, está nas livrarias a segunda edição de uma obra polêmica por si só: …E a Guerra Continua, primeiro livro do publicitário paranaense Norberto Toedter, propõe uma reflexão sobre o lado alemão nas duas grandes guerras, particularmente a segunda.

“Sou filho de alemães, e tenho apreço pelas minhas raízes”, explica o escritor. “Eu estava lá durante a Segunda Guerra, entre os alvos civis dos bombardeios dos chamados ‘aliados’, e me solidarizei com aquela gente. O que se tem mentido, o que se tem falado mal injustamente desse povo me revoltou.” Ele vai além: “Por que o Oscar a O Pianista? Por que a insistência nesse tema? Para manter o povo alemão sob custódia. Minha intenção é defender o povo alemão, tão oprimido por esse eterno mea-culpa, pela lavagem cerebral que vem sofrendo nos últimos 60 anos”.

Para explicar sua tese, Toedter apresenta argumentos controversos. Mostra a Alemanha como vítima, ao ressaltar que as duas guerras mundiais foram deflagradas contra o mesmo inimigo. Sobre a Segunda Guerra, diz, por exemplo, que a Áustria jamais foi anexada:

“A Áustria pertencia à Alemanha desde 1919, logo após o fim do império austro-húngaro. A parte germânica do país optou por pertencer à Alemanha em um plebiscito. Entre 1937 e 1938 foi feita outra consulta, e mais uma vez o povo austríaco optou por permanecer unido à Alemanha”.

Com relação à Polônia, Toedter diz que o que se pretendia era a recuperação da cidade de Gdansk ao território alemão. “Essa cidade possuía 94% de alemães na época, e se constituía num importante corredor para o transporte de mercadorias entre a Alemanha e a Prússia oriental.”

Segundo o escritor, Adolf Hitler e o governo alemão caíram numa “armadilha”: “A Polônia tinha recebido, por parte da Inglaterra e dos Estados Unidos, todas as garantias de que seria defendida no caso de um conflito com a Alemanha. Essa promessa encheu os poloneses de confiança, e os fez provocar os alemães ao máximo, inclusive com perseguições às minorias germânicas. O que se viu depois é que a Polônia não só foi abandonada pelos ‘aliados’, como perdeu seu território para a URSS. O grande erro de Hitler foi imaginar que poderia resolver a situação com negociações diplomáticas”.

Ingenuidade

Norberto Toedter tem a coragem de expor uma opinião bastante peculiar sobre o führer. Questionado se Hitler teria sido vítima ou algoz, ele responde: “Foi um ingênuo, como normalmente é ingênuo o povo alemão nessas questões políticas e militares”.

E as atrocidades, a crueldade amplamente divulgada dos campos de concentração? “A Segunda Guerra foi a demonstração máxima de crueldade e selvageria jamais vista na humanidade, de ambos os lados. Quanto aos campos de concentração, não havia apenas dissidentes do regime e judeus, mas também criminosos comuns, que foram libertados com o fim da guerra.”

Ceticismo

O escritor se mostra cético também com relação às execuções em massa nas câmaras de gás, às famosas “experiências” médicas e à tortura. “Será que foi daquele jeito mesmo? Há muitas notícias contraditórias publicadas em diversos jornais da época, como eu mostro no livro. Se eles mesmos diziam que havia 14 milhões de judeus no mundo inteiro, na época, como seria possível exterminar 6 milhões?”

Ele também vê com desconfiança a alardeada fúria expansionista do exército alemão: “Dá para acreditar que um governo alemão, instalado havia menos de seis anos, de repente se imaginasse em condições de enfrentar o mundo e as potências da época (Inglaterra e Estados Unidos)? Sem recursos econômicos, humanos e militares para isso? Não faz sentido. Quem sempre teve apetite imperialista, desde a doutrina Monroe de 1823 (“A América é dos americanos”), foram os Estados Unidos”.

Toedter não nega, mas minimiza a perseguição de Hitler aos judeus: “Ele reclamava mesmo dos judeus, porque eles ocuparam todos os cargos e posições estratégicas na Alemanha, tanto no setor empresarial como na mídia. E ele pretendia acabar com esse domínio”. As diferenças teriam se acirrado com uma suposta “declaração de guerra” dos judeus de todo o mundo à Alemanha, publicada em jornais ingleses poucos meses depois de Hitler ter tomado posse como primeiro ministro.

Ele menciona ainda os prisioneiros de guerra: “Ninguém jamais ouviu qualquer queixa a respeito do tratamento conferido aos prisioneiros sob a custódia do exército alemão… Já os alemães foram mandados para a Sibéria, ou morreram por lá ou voltaram muitos anos depois – a última leva só voltou para a Alemanha em 1958. Acho que está mais do que na hora de as pessoas pensarem um pouco mais sobre o que realmente aconteceu, para que esse povo, que é muito valorozo, possa recuperar a dignidade”.

Se a mídia é tão pródiga em matar e enterrar as pautas quando tratam de “gente que não existe” (negros, nordestinos e pobres em geral), por que não cometer um assassinato decente contra a pauta quando se trata do nazismo? Está faltando o “fator Erundina” no Paraná. Com a palavra, a sociedade paranaense.

Revista Consultor Jurídico

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