O cinismo nas relações de trabalho no Brasil e o novo Código Civil

Mário Gonçalves Júnior*

O Novo Código Civil incorporou a figura da reserva mental em seu artigo 110, dispondo no sentido de que “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.

A reserva mental ou reticência é uma “atitude próxima à simulação”, como ensina Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil, parte geral, Atlas, 3ª ed., São Paulo, 2003, pág. 478), fenômeno consubstanciado na omissão consciente do declarante da discordância com o que está declarando, com intenção de enganar o declaratário. “É diversa da simulação, porque na reserva mental a intenção de enganar é dirigida contra o próprio declaratário, não havendo acordo simulatório”, ou, simplificando, “a reserva mental traduz ‘simulação unilateral’, sendo também a simulação, sob certo aspecto, uma ‘reserva mental bilateral’ (Andrade, 1974:215)” (idem).

Simplificando mais ainda e invadindo algo de outras ciências humanas, a reserva mental nada mais é do que o cinismo. Uma das definições de cínico que se pode extrair do Novo Dicionário Aurélio (Ed. Nova Fronteira), aproveitada da linguagem teatral, é “personagem-tipo que representa o indivíduo sem escrúpulos, hipócrita, sarcástico e oportunista”.

De fato, como lembra ainda Venosa (ibidem, págs. 478/479), “a reserva mental configura-se, é certo, por uma mentira do declarante. No entanto, essa mentira somente será relevante para o negócio se tiver efeitos jurídicos. À mentira pura e simples, que não traduza nenhum reflexo no âmbito do direito, não se pode dar importância para o fim de conceituar a reserva mental (Lopes, 1962, v. 1:451)”.

O Direito do Trabalho, tal como vem sendo interpretado na jurisprudência, terá muito a evoluir se emprestar do Direito Civil o instituto da reserva mental, principalmente naquelas reclamações trabalhistas tão em voga, nas quais altos executivos juram autonomia às empresas tomadoras de seus serviços para, depois de terminada a relação e dela usufruído todas as benesses, revelar, judicialmente, pela primeira vez, que “tudo não passou de uma fraude, pois sempre agiu, na realidade, como autêntico empregado”.

O começo da vida profissional, de fato, principia pelo “primeiro emprego”. Nas grandes corporações e empresas, há inúmeros exemplos de profissionais que iniciaram como contínuos, auxiliares de escritórios, ajudantes e, ao longo de anos, décadas, galgaram postos cada vez mais elevados até chegarem ao nível de gerência ou diretorias.

Outro fenômeno muito comum para esses profissionais é que, alcançados os níveis mais altos do escalão de uma grande empresa, num determinado momento da carreira esses empregados, ousando assumir espírito empreendedor, como que “descolam” da subordinação jurídica e econômica que os subjugava ao empregador e alçam vôo próprio. Passam de beneficiários a potenciais fornecedores de empregos, de empregados a patrões. Muitos empresários são “incubados” no âmbito das grandes empresas.

Em boa parte dos casos, essa dose extra de autonomia só é possível porque o trabalhador, agora infante empreendedor, passa a prestar serviços ao ex-empregador. É natural que a tendência seja essa, pois tendo prestado serviços longos anos na condição de empregado, a confiança e a experiência estimulam o aproveitamento do profissional para novos desafios no mundo dos negócios.

A questão é que nem toda semente é boa ou dá bons frutos, por inúmeros fatores imponderáveis. Justamente quanto esses “empreendimentos” não dão certo, os que capitanearam essas aventuras socorrem-se da Justiça do Trabalho requerendo sejam essas mesmas relações negociais, mantidas após a rescisão de seus contratos de trabalho, reconhecidas como um “apêndice” ou mera continuidade do antigo emprego. Ou seja, declara-se autonomia enquanto tudo vai bem; jura-se subordinação jurídica perante o Juiz quando a vida está em ruínas.

Outro “artigo-chave” do novo Código Civil, como preleciona sempre magistralmente Miguel Reale (“Um artigo-chave do Código Civil”, O Estado de S. Paulo de 21/06/03, Espaço Aberto) é o de número 113: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Em geral esses pseudo-empregados, quando assumiram “de corpo e alma” não declaram sua discordância com sua nova condição (de autônomos), até porque muitos deles inicialmente realmente se empolgam com tais desafios, objetivando enriquecer. Para se safarem do fracasso é que buscam novamente o abrigo da velha CLT…

Para reclamações trabalhistas cínicas como essas, calham as luzes de Reale no artigo referido: “Andou bem o legislador ao se referir à boa-fé, que é o cerne ou a matriz da eticidade, a qual não existe sem a intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade ou do propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado. Dessa intencionalidade, no amplo sentido que Husserl dá a essa palavra, resulta a boa-fé objetiva, como norma de conduta que deve salvaguardar a veracidade do que foi estipulado”.

“Boa-fé é, assim, uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido e pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes”.

Tudo aconselha aplicar os artigos 110 e 113 do Código Civil ao Direito do Trabalho. Só os cínicos terão a perder. Mas eles não merecem proteção legal.

Mário Gonçalves Júnior é advogado do Demarest & Almeida Advogados e pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho.

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