Os bens imateriais da propriedade intelectual pós-Internet

São diversas as discussões e as listas que atualmente levantam a questão da validade das licenças copyleft importadas para nosso ordenamento jurídico, como a GNU/GPL, para programas de computador, e as licenças da CreativeCommons para outras obras autorais. Os questionamentos costumam ser mais ou menos no seguinte sentido: é preciso elaborar uma licença nacional em razão de nossas normas serem diferentes? é necessário alterar nossa legislação? o que é preciso para que o Brasil passe a aceitar os bens livres da propriedade intelectual?

Normalmente são apresentadas soluções baseadas em pequenas alterações legais, ou a elaboração de alguma licença feita sob medida para o Brasil, entre outras. Mas o problema se apresenta muito mais complexo do que costuma aparentar, e este parece ser o momento propício para uma reflexão mais séria a respeito do papel do direito e dos bens imateriais da propriedade intelectual pós-advento da Internet.

Também são comuns as críticas feitas ao direito, na maioria das vezes promovidas por leigos ou pessoas que dele conhecem apenas uma das facetas. Costuma-se alardear que o direito brasileiro impede o País de experimentar novas tecnologias e novos conceitos de bens intelectuais. E isso também será discutido aqui.

I.

Esse texto tem por base a introdução da obra de Tércio Sampaio Ferraz Junior intitulada “Introdução ao Estudo do Direito”. Tércio, um dos filósofos do direito de maior proeminência no Brasil, faz reflexões muito importantes sobre a instrumentalização do direito e de como o próprio homem acaba por se enquadrar em um sistema meio-fim, e como esse mesmo homem perde a noção original de sua importância frente aos seus produtos. Apesar de não citar os desdobramentos de tais fatos na proteção de bens imateriais da propriedade intelectual, seus argumentos servem muito bem a esse propósito, pois semelhante fato acontece com as artes e técnicas, dentre elas o próprio direito segundo a forma como é interpretado atualmente. É sob este enfoque que aqui será analisada a noção de bens imateriais da propriedade intelectual, a forma como eles são regulados e como novos conceitos de liberdade devem ser recebidos pelo direito.

II.

O homem, segundo Aristóteles, pertence a duas ordens distintas de existência. Uma baseia-se nas relações familiares, que tem como analogia a casa, ou oikia no grego; outra toma por base as relações do homem na sociedade, ou seja, na polis. A distinção serviu, em tempos anteriores, para diferenciação entre labor, ação e trabalho, hoje não-existente, ou, no mínimo, incomum.

III.

Por labor tomava-se todo tipo de atividade voltada às necessidades naturais do homem, aquelas realizadas no convívio familiar, destinadas a saciar a fome, a sede, enfim, toda a sorte exigências da condição animal do ser humano. Uma das principais características do labor é que este se produzia em um ciclo ininterrupto, e na medida das suas necessidades, pois a destinação do labor encontrava-se na incorporação fruto ao próprio corpo do homem. O alimento assim produzido tinha por destino o próprio produtor ou sua família, em um processo denominado oiko nomos, a administração da casa – origem do termo economia. Os ferramentais utilizados constituíam-se de extensões do próprio corpo, como o arado, a enxada, etc, e da mesma forma apenas circundavam o valor central da relação, o próprio homem. Essa é também a origem do termo direito privado, pois os regramentos eram, em sua maior parte, privativos da liberdade de agir, já que impostos por uma necessidade inerente à natureza de todos os animais. O animal, na natureza, não é totalmente livre.

IV.

Já na polis os homens deixavam o domínio de suas necessidades naturais e podiam agir de forma livre, no meio de pares em igual situação. Na polis não havia a hierarquia tradicional da oikia, comandada pelo pater famílias e nem a privação das necessidades naturais. O agir, neste momento, tem uma concepção muito distinta de labor, na medida em a ação liberta, permite ao homem seu autogoverno no meio de tantos outros homens livres das necessidades imanentes dos animais. Esta é a esfera pública, política, que objetiva ao governo comum de liberdades. Enquanto o labor se caracterizava pela não-interrupção e pela limitação de alcance aos anseios fisiológicos, a ação, ao contrário, era ilimitada e espontânea; mais do que isso, ela não tinha destinação certa, era imprevisível, pois sua fonte política presumia a participação do politikon zoon, ou seja, um animal integrado à sua sociedade. A liberdade da ação não permitia uma determinação lógica de seus rumos.

É da ação que surgem a ars e a téchne, ou seja, os aspectos estéticos e técnicos dos anseios do homem que vivia em uma teia de ações. Também daí nascem as primeiras limitações da ação, limitações não-restritivas mas sim delimitadoras, demarcadoras de fronteiras. Aparecem as normas jurídicas, as noções de estado, etc.

V.

Neste momento surge o conceito de trabalho, o terceiro termo que apontamos no início deste texto. Diferentemente do labor e da ação, o trabalho humano tinha por traço distintivo a relação meio-fim. Se o labor visava as necessidades animais do homem e a ação os anseios políticos, o trabalho não visava objetivamente nada no próprio ser humano, a não ser produzir um meio para se atingir outros fins, ou mesmo novos meios. O termo do trabalho era passível de determinação: o produto ou bem de uso ou consumo. Além disso, o produtor se distinguia do resultado de seu trabalho. Se na ação e no labor o produto se incorpora à sociedade e ao homem, respectivamente; no trabalho o produto se destaca do produtor e, como principal característica, passa a incorporar o mundo, dividindo-o com o próprio homem. O trabalho é naturalmente violento na medida em que traz ao mundo do homem algo que a ele não pertencia. O labor e a ação não alteram a natureza senão na medida das necessidades naturais e sociais do ser humano; o trabalho não.

VI.

Podemos concluir, até este momento, que na Antiguidade existia uma clara divisão entre labor, ação e trabalho; assim também existia diferença entre jus e lex, ou seja, entre o direito fruto da ação e o direito fruto do trabalho, aquele expresso nos conceitos sociais de justiça, este nas normas trabalhadas pelos legisladores. Os bens se assentavam em semelhante distinção, sendo alguns de uso próprio, alguns com destinação político-social e outros com fins de comércio.

VII.

Quando da Era Moderna e, mais recentemente, da chegada da noção capitalista de acúmulo de bens, a idéia de ação como ato de virtude deixa de ter seu sentido isolado e passa a ser cada vez mais absorvido pelo trabalho fabril e sua intenção finalista. Tal fato tem reflexos no direito, fazendo prevalecer a norma à justiça; na produção humana, preponderando o bem com destinação final fora do homem ao bem que visava as necessidades naturais e sociais. A própria vocação política do politikon zoon se vê dirigida a fins outros, como a paz, o comércio, etc e não mais à busca de ações virtuosas per se. O direito, neste último aspecto em particular, passa a servir de comando para defender certos fins fora dele mesmo, fora de sua idéia de justiça, e se transforma em ferramenta para o homo faber, ou o homem que trabalha.

Ainda segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, o homo faber degrada o mundo porque subverte o valore das coisas em si em valor-utilidade, em uma relação pragmática apenas. As coisas deixam de ser valiosas por elas mesmas e passam a ser, paradoxalmente, valiosas na medida em que servem como meio para se alcançar outras coisa, coisas estas que são também meios para se chegar a outras coisas. Os bens, no sentido mais amplo, são agora fins em si mesmos, pois não se integram novamente ao homem ou à sua sociedade, mas na mesma medida em que se destacam do ser humano passam a servir apenas como meio.

A esfera pública deixa de ser a esfera do político, da ação e da virtude e passa a ser a esfera do comerciante, do trabalho e dos bens fabris. Outros reflexos importantíssimos se seguem: o homem, que se relaciona na já citada esfera política, passa a ser valorado não pelas ações, mas pelos bens que possui e que sustentam a sociedade moderna. Mesmo o direito passa a ser um bem em comércio, quando mercantilizado, e passa a servir a esses interesses e a ser valorado conforme sua serventia. O direito perde quase que por completo sua dogmática e se flexiona às necessidades da principal atividade política: a troca de produtos.

VIII.

São várias as conseqüências práticas de tal comportamento, sendo uma das principais aquela que utiliza o direito para a criação de bens que sustentem a esfera política tal qual esta se encontra. É nesse contexto que surge a questão de escassez, noção econômica adotada pelo direito para a proteção dos bens frutos do trabalho, bens estes que, por não serem ilimitados, recebem um valor de troca.

Todos os bens escassos e com valor de troca passam a receber proteção da “ferramenta jurídica” do direito lex, fruto de trabalho, enquanto o direito ius, aquele que tem um fim no homem e no conceito de justiça, é praticamente abandonado.
A propriedade passa a ser, então, a base do sistema jurídico moderno.

IX.

A adoção do conceito econômico de bens escassos pelo direito fabril, entretanto, não abrangia tudo que a política também baseada em bens visava controlar. O direito, que deixou de ter aquele fim em si quase que completamente, serviu aos interesses políticos criando outros tipos de bens por analogia.

Uma das classes de bens com essa origem são os bens imateriais da propriedade intelectual. Comparativamente aos bens tradicionais, eles guardam algumas dessemelhanças:

a. os bens tradicionais são materiais, os da propriedade intelectual não o são;

b. enquanto os primeiros são escassos, (quando alienados o antigo possuidor deixa de poder tirar proveito do bem), os segundos não o são, já que uma idéia ou uma obra podem ser copiadas do autor sem que este deixe de poder utilizá-la;

c. os bens tradicionais são normalmente frutos do trabalho, ou seja, são produzidos com a finalidade de inserção no mundo do homem para serem depois trocados; já os bens imateriais são frutos da ação, pois as idéias são intrinsecamente livres e não-controladas. Mesmo que ela seja voltada para a produção de bens de troca, a idéia em si é distinta de seu produto e mantém as características da ação.

Foi sobre tais conceitos que a sociedade moderna moldou seu sistema de propriedade intelectual. Mesmo o que antes se diferenciava dos bens materiais passou a ser tido como um desses pelo direito instrumental. Hoje temos diversas áreas dentro da propriedade intelectual, como por exemplo o direito de autor – que cuida de obras voltadas para o lado artístico – e a propriedade industrial – que se foca nos bens imateriais das indústrias, como marcas, patentes, desenhos industriais, etc.
As idéias, no seu sentido mais amplo, assim como o próprio direito, foram praticamente absorvidas pela instrumentalização.

X.

O conceito de copyleft surge juntamente com a idéia de software livre e desponta como uma inversão de valores do copyright. Segundo os formuladores do conceito, bastaria que o autor, ao disponibilizar sua obra, permitisse de antemão o uso quase que irrestrito dela, com a condição de que o licenciado aceitasse fazer uso das mesmas prerrogativas na redistribuição, alteração, uso e derivação.

Com base em tal idéia, os programas de computador considerados livres permitem seu uso, cópia, alteração e distribuição por qualquer interessado, desde que este não altere nenhum dos direitos já concedidos aos licenciados. O mesmo começou a ocorrer com outros tipos de obras intelectuais, como textos, músicas, etc. Para cada tipo de obra foi desenvolvida uma licença segundo o conceito de copyleft. Em alguns casos são várias as opções disponíveis.

XI.

O conceito de copyleft, entretanto, passou a encontrar problemas quando as obras licenciadas segundo as normas de um ordenamento jurídico começaram a se espalhar por outros ordenamentos, com regras diferentes.

Abriu-se então o debate citado no primeiro parágrafo deste texto. As soluções apontadas como imediatas começam a surgir: são propostas de alterações legislativas, como a alteração da Lei dos Programas de Computador ou a Lei dos Direitos de Autor para que estas comportem as obras livres, em especial neste momento o programa de computador livre, sem as obrigações que uma obra fechada gera em razão de sua destinação comercial, como a garantia, por exemplo.

Outras propostas nos põem a produção de uma licença específica e válida perante nossas leis, que suplante as obrigações tradicionais do comerciante. Existem ainda as que propõem a tradução juramentada de licenças estrangeiras para que o sistema interno não conflite com o pregado no exterior.

Todas essas propostas são válidas e muitas elaboradas por pessoas bem preparadas para tal. Elas podem, sim, trazer resultados imediatos e satisfatórios para os operadores que agem com programas livres e outros tipos de obras que seguem o mesmo ideal.

XII.

Entretanto, para uma solução mais adequada do problema seria interessante uma revisão mais ampla dos conceitos de propriedade no direito utilitário. Seria preciso partir não do problema-objeto mas sim do problema conceitual. Do contrário, a solução seria mero paliativo sujeito a novas revisões dentro de muito pouco tempo. Ademais, estaria se tratando apenas o problema de como as tais obras são abraçadas pelo direito e não o problema em si, que consiste no fato de nossas normas regerem aquilo que não é mais o interesse da polis atual, formada por uma comunidade ampla e global, em que as ações humanas ganham nova força e alcance.

As obras livres só o serão quando consideradas como frutos da ação humana, e não como produto do trabalho. Tais obras, para que livres sejam, necessitam de uma conceituação diferente, voltadas à ação humana em si. Elas não podem ser tomadas por exceção às regras da propriedade intelectual. Por exemplo: os programas livres, que constituem o tipo de obra mais avançada neste conceito, não devem ser considerados como produto fabril, destinados à troca e finalistas. E na prática eles não o são. Basta ver que eles não têm destinação imediata, mas são desenvolvidos com o intuito de aumentar o conhecimento humano disponível. Compete aos interessados em produzir trabalhos sobre essas obras buscar uma destinação, adaptando-as às suas necessidades. De outro lado os programas ditos proprietários, ou industriais, preenchem todos os quesitos dos produtos fabris, dos produtos de trabalho: são planejados, têm prazos de produção e de uso, regras de licenciamento, distribuição, etc; e como qualquer produto fabril são destinados à troca.

Os programas livres, ou as obras livres para ser mais abrangente, são livres não no aspecto comercial apenas, mas principalmente livres das prerrogativas listadas. Essa é a principal razão para não se enquadrarem nas normas do direito instrumentalista, o direito lex. O que não quer dizer que os juristas, aqueles que se ocupam também do direito jus e dos aspectos deônticos deste, não possam ou não devam se ocupar de tais tipos de obras. Talvez aqui sua participação possa ser até mais efetiva, mas não é esta ocupação finalista que leva os que se voltam à ação e não ao trabalho.

O problema, na verdade, se divide em dois: um de vocação imediatista e utilitarista, e outro de vocação principiológica. A revisão há de ser em princípios, e não meramente legislativa. Os programas livres e as obras abertas têm como fim o próprio homem na medida em que se adaptam a ele, retornando diretamente, e não servindo como meio para o alcance de outros bens.
Nada obsta, porém, que os dois sejam resolvidos paralelamente, mas apenas a solução dos problemas últimos do direito traria ao ser humano a paz de poder agir por seus próprios fins, livre, como e quando quiser. Somente com tal mudança uma música, um texto, um programa de computador ou uma idéia inventiva poderão ser elaborados pelo simples prazer de fazer. Só com tal reforma estrutural a ação em obras livres será realmente livre.

Pablo de Camargo Cerdeira é advogado formado pela Universidade de São Paulo e programador, atuante nas áreas de Direito da Tecnologia da Informação e Propriedade Intelectual.

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