"Judiciário é a primeira vítima de uma ditadura corrupta."

A semana trouxe eventos ricos de significado para os brasileiros. Não me refiro às bravatas do presidente na viagem de propaganda nordestina. O seu espetáculo de pequenez e de imensa falta de compostura prejudica o Brasil e o afunda no folclore. Se é verdade que a política sempre foi teatral, tivemos presidentes vilões ou heróis trágicos. Vargas ditador, por causa de sanguinários como Felinto Muller, desempenhou primeiro como tirano. No segundo ato foi empurrado para o papel de mártir da nacionalidade. Jânio Quadros foi artista perfeito: ao mesmo tempo encarnou a tragédia e a comédia.

João Goulart foi uma Ifigênia masculina, pois seguiu para o abate
mansamente, enquanto a esquerda se proclamava dona do poder e a direita invadia palácios e casernas. Não é preciso dizer o papel dos militares no palco. A partir da frágil democratização, as peças definiram-se cada vez mais como tragicomédia.

Nos últimos dias de Sarney a baderna era geral. Desaparecera o governo e o Brasil desconhecia autoridade. A inflação venceu qualquer ato político. Demagogia às escâncaras, “planos” dos charlatões da economia, nada conteve a voragem inflacionária. Foi eleito o bufão que, num golpe supremo de irresponsabilidade de seus economistas, arrancou bens dos governados. A retórica moral encobriu quadrilhas e quadrilhas que atacavam simultaneamente, na era Collor, o Executivo e o Congresso (os “anões do orçamento”).

Passado o governo de FHC, o País escolheu um presidente que vendia a promessa do diálogo, do respeito à diversidade (“Lulinha, paz e amor”). Em meses, a miragem deu lugar ao real. Temos no poder uma pessoa vingativa, destemperada, que ignora o decoro e não mede palavras quando ataca os que dela divergem. Trata-se de um ego inchado pela lisonja e que se julga melhor do que é.

Na última lengalenga, o presidente indicou a si mesmo como “o mais
importante sindicalista do Brasil”. Antes, aceitou contente a indicação para o Nobel. A fome de louvaminhas que o move ser um sereno magistrado é tremenda. Dias sombrios virão para o País enquanto os que hoje se lambuzam com o poder, a começar do presidente, imaginam-se superiores à lei e às normas republicanas.

Os eventos mais importantes, entretanto, da semana passada, foram de ordem policial. A operação Anaconda, com certeza. De modo fulminante, a polícia enquadrou, em vasta rede, membros do judiciário e de outros setores. Pouco antes, tivemos as notícias sobre as operações de campanha do PT, as quais visavam defender a sua candidatura e prejudicar, sem cuidados éticos, as concorrentes.

O caso de Santo André foi reaberto com a divulgação de fitas nas quais surgem diálogos impressionantes, sugerindo providências para abafar os fatos, definir um cordão sanitário entre a consciência pública e o que se passou. Gravíssima a implicação no episódio do procurador da república, Luis Francisco. No mínimo, ele demonstrou sectarismo incompatível com o seu cargo. Se as suas estrepolias já o indicavam como candidato a Savonarola inconseqüente, agora as coisas pioraram.

A operação Anaconda pode ser importante para aperfeiçoar o Judiciário. Mas pergunto: a quem interessa desmoralizar a Justiça? Sempre que uma ditadura corrupta está sendo gestada, a primeira vítima é o Judiciário. Recordemos o caso de Fujimori. De fato, existiam problemas graves nos tribunais peruanos. O ditador, baseado em sua imensa quantidade de votos, golpeou e afastou juízes, impedindo que os procedimentos legais fossem acessíveis aos seus opositores. Com a desculpa da luta contra a corrupção e o terrorismo, seus asseclas estabeleceram um reinado de pavor e de ladroagem.

O mordaçamento da imprensa ajudou sua tarefa. É preciso reformar o Judiciário, é preciso pôr na cadeia os corruptos. Mas que tudo isto seja feito à luz do dia, sob a proteção da lei e do Estado democrático de direito. E este não é compatível com messianismos, perseguições, ou golpes brancos contra juízes. O executivo, desde longa data, é responsável por boa parte das mazelas dos outros poderes. Estes, por sua vez, devem assumir o seu papel eminente no Estado. Caso contrário, o País sempre será conduzido por artistas de opereta, alguns deles perfeitos canastrões circenses.

Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp. O artigo foi publicado no jornal Correio Popular

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