Nos moldes de nossa civilização, a família constitui a base de toda a estrutura da sociedade. Conforme ensina Silvio Rodrigues, o Estado, na preservação de sua própria sobrevivência, tem interesse em proteger a família por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e seus elementos institucionais.
O Código Civil é o estatuto legal que mais se volta à regulamentação familiar, estabelecendo normas sobre o casamento, a separação e o divórcio, a filiação, os alimentos, a tutela, a sucessão hereditária, etc., disciplinando as relações humanas sob o ângulo individual e sob a ótica da preservação da harmonia social.
Em sentido restrito, a família é formada por pai, mãe e a prole. No entanto, de maneira mais ampla, ela é entendida como o conjunto de todos os parentes próximos, como avós, tios, irmãos, primos, cunhados, genro, nora, sogro e sogra. São pessoas que, além dos vínculos de sangue ou legais, costumam privar da convivência mútua, partilhando atividades cotidianas.
A proximidade entre pessoas da mesma família, porém, pode gerar situações de conflito, resultantes de divergências de ponto de vista ou de interesse patrimonial. Não raro, as desavenças vão parar na Justiça, que tem setores especializados para cuidar desse tipo de litígio, as Varas da Família. Lá, os processos costumam ser sofridos para todos, inclusive para os juizes, para os membros do Ministério Público e para os advogados das partes. Além disso, não terminam nunca, pois há brigas que se prolongam indefinidamente no tempo.
Talvez preocupado em evitar dissabores na convivência familiar, o novo Código Civil, em seu artigo 1.513, estipula que “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. No entanto, após detida análise, soa estranha tal determinação.
A “interferência” mencionada no dispositivo não se encontra definida em lei e dá margem a qualquer tipo de interpretação. Que espécie de intromissão estaria proibida? Se, por exemplo, o marido bater na mulher, a comunhão familiar terá de sofrer interferência imediata, principalmente por parte da Polícia.
Se o casal discordar com relação à educação dos filhos, será preciso recorrer ao juiz para resolver o impasse, ocorrendo uma intromissão na vida familiar, embora legal e necessária.
Intrigados com a obscura finalidade desse dispositivo legal, profissionais do direito partiram para a livre especulação quanto às intenções do legislador. Chegaram à conclusão de que o artigo 1.513 do Código Civil somente poderia estar se referindo à interferência de uma pessoa: a sogra. Boatos incessantes vêm atribuindo a um dos membros da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto do novo Código a idéia de inserir um dispositivo que evitasse a ingerência de pessoa estranha ao núcleo familiar na sua comunhão de vida. E a causa seria exatamente essa: a má convivência que tal senhor teria tido com a sua própria sogra e o trauma que tal situação gerou em sua vida.
É claro que os problemas de relacionamento familiar não podem ser resolvidos mediante simples elaboração de artigo de lei, ainda mais quando não há nenhuma punição prevista para quem infringir a proibição de interferir na “comunhão de vida instituída pela família”. No entanto, à parte os comentários jocosos e quiçá infundados, cabe analisar o porque de tamanho horror à sogra. Quem é ela, afinal?
A sogra é entendida, de maneira geral, como a mulher de mais idade, que já criou os filhos e não tem ocupação fora do lar. Nessas circunstâncias, ajuda a criar os netos e dá amparo à filha (ou filho).
Por vezes, a participação da sogra na vida de um casal é mal recebida, mas, como regra geral, ela é de muita ajuda ou mesmo essencial à estabilidade familiar. É evidente que existem pessoas amargas e destrutivas por natureza, mas essas características não são exclusivas da sogra.
A sogra é discriminada por ser mulher e ser idosa. Tanto que ninguém implica com o sogro nem faz piadas discriminatórias com ele. A sociedade patriarcal não reconhece devidamente o valor dos serviços gratuitamente prestados pelas esposas, mães e avós, essas últimas, também sogras. A mulher é enaltecida, como objeto de consumo, enquanto é jovem e bonita. Quando envelhece, na opinião dos machistas, deve ficar sujeita a dispositivos legais restritivos…
O artigo 1.513 do novo Código Civil, merece, então, um reparo. Não em virtude das supostas intenções de seu criador, que não podemos assumir como verdadeiras, mas em razão de sua inutilidade. Inutilidade tão grande que deu margem a mais uma interpretação preconceituosa contra a mulher.
Luiza Nagib Eluf é procuradora de Justiça de São Paulo e autora do livro A paixão no banco dos réus, entre outras obras.